sexta-feira, 8 de setembro de 2023

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Um inesperado grito de batalha lembrou-o de Vermandois. Olhou pelo canto do olho, para trás de si, e viu-o manipular uma acha contra um homem armado de espada, voltando a defender-se»

jdact

A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Será então como dizeis, Rocheblanche, insistiu o picardo, mas espero que no momento em que esta impressão se transformar numa ameaça tenhais ao vosso lado um companheiro ousado para vos apoiar.

O cavaleiro evitou replicar e permaneceu em silêncio até entender ter chegado o momento de virar para leste. Então, afastou-se com Robert da companhia de Filipe VI, para enveredar pela estrada que o conduziria a casa. E, como acontecia sempre que cavalgava por aquele percurso, sentiu-se invadir por um profundo fascínio.

Era a via do rei. A que se dirigia a Reims, onde os soberanos de França eram consagrados regentes ungidos com o óleo sagrado de São Remígio, na mística catedral.

Acordou de repente, mas não se mexeu. Ouvira um rumor. Abriu os olhos, encontrando-se estendido ao lado da fogueira apagada, sentiu o frio da terra em contacto com os membros, as roupas entranhadas da humidade da noite. Depois de dois dias de viagem, Rocheblanche e Vermandois tinham acampado ao ar livre para recuperar as forças e haviam adormecido. Reims já estava perto.

De novo aquele rumor, desta vez mais próximo. Maynard mexeu cuidadosamente os olhos, lembrando-se de que adormecera com o punhal na mão. Ainda não era madrugada, mas a abóbada estrelada iluminava a clareira e a mata à sua volta com um luar prateado. Foi portanto com grande clareza que avistou um vulto negro inclinado sobre si próprio.

Aterrorizado, pôs-se de pé, forçando a perna esquerda, com o resultado de se estatelar na relva. O vulto reagiu recuando e, depois, avançou de repente, assumindo uma forma elegante. Maynard entreviu o relampejar de uma lâmina curta e deslizou de lado, mesmo a tempo de evitar um golpe, respondendo ao ataque erguendo o punhal. Sentiu-o raspar contra a lâmina inimiga.

Um inesperado grito de batalha lembrou-o de Vermandois. Olhou pelo canto do olho, para trás de si, e viu-o manipular uma acha contra um homem armado de espada, voltando a defender-se. Transpôs a distância que o separava do agressor e pôs-se em guarda, apontando o punhal e suportando o peso com a perna direita. Desconhecia a identidade dos dois visitantes nocturnos, mas de certeza que não se tratava de meros salteadores. Não era porém o momento certo para fazer perguntas. E quando das trevas surgiu um novo ataque, não se deixou apanhar desprevenido. Virou o tronco para se esquivar e entrou nas defesas do adversário para lhe assestar uma forte cotovelada. A figura envolta na capa acusou o golpe e encolheu-se, embatendo no tronco de uma árvore». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Marcello Simoni, Literatura,  Conhecimento, Itália,