O
Gharb al-Andalus
«(…) Mas, se o Corão
e a em segundo lugar a Suna constituem a fonte da explicação do mundo e
das normas de vida, desde logo uma questão se coloca. Como interpretar o Livro? Atendo-nos ao sentido literal ou,
pelo contrário, tentando compreender o seu sentido verdadeiro, o sentido
espiritual, a haqiqat? Segundo uma tradição ou hadit
que remonta ao Profeta, O Corão tem uma
aparência externa e uma profundidade oculta, um sentido exotérico e outro
esotérico. Por sua vez, este sentido esotérico encerra outro sentido esotérico
(cada nível contém outro nível à imagem das Esferas celestes, embutidas umas
nas outras). E assim sucessivamente até sete sentidos esotéricos (sete
níveis de profundidade oculta). O xiismo, o ismaelismo, o
ismailismo fatimi e o sufismo activeram-se particularmente ao
sentido esotérico do Corão. A apreensão desse sentido profundo exige guias, os
imãs ou homens de Deus, os inspirados. E só quando chegar o Mahdi (o Imã
oculto, o Imã esperado) se alcançará a plena revelação do esoterismo de
todas as revelações divinas.
Assim a interpretação do
Livro abriu caminho às ciências que Al-Farabi classificava como ciências
religiosas: os comentários do Corão e dos hadices, a
teologia, o direito, os estudos linguísticos, em particular a gramática árabe,
a língua sagrada. A procura do conhecimento constitui uma obrigação de todo o
muçulmano, quer o conhecimento das ciências religiosas quer o das ciências
ditas estrangeiras, para usar ainda
a classificação de Al-Farabi. Mas todas elas, em particular o
conhecimento filosófico, tinham à partida os limites impostos pelas verdades
reveladas pelo livro sagrado. Os tratados de direito sunita, que omitem
os ritos xiitas, enumeram dezoito ritos ou escolas jurídicas. A primeira
das escolas, a hanafíta foi desenvolvida por Abu Hanifa (+767)
que introduziu a opinião pessoal como fonte de direito e considerava que a
proibição canónica do vinho só devia entender-se como condenação da embriaguês
e não do consumo moderado. A escola maliquita de Malik b. Anas (+795),
adoptada no Andalus ao tempo do emir al-Hakam I (796-822),
valoriza o consenso dos juristas medinenses, mais conservadores, e introduz
na interpretação dos textos o princípio da utilidade comum.
Ao longo do século VIII,
surgiram no Oriente novas formas de pensamento filosófico e religioso,
proporcionadas no interior do Império Islâmico pelos espaços culturais marcados
por concepções religiosas diferenciadas. O cristianismo e o mazdeísmo
eram as religiões dominantes, a que se juntavam como minoritárias no império o budismo, o judaísmo e o maniqueísmo.
Daí as discussões sobre os atributos de Deus e a natureza de Cristo, sobre a predestinação
e o livre arbítrio, a revelação e a razão. A estas discussões juntavam-se as
concepções zoroatristas e judias sobre o fim último do homem, a que se
acrescentava a especulação hindu. Entretanto, neste mesmo século VIII e até ao
X, em Bagdad, sábios cristãos, entre eles Huanayn ibn Ishaq (+877),
e muçulmanos traduziram, directamente do grego ou a partir do siríaco,
muitas obras de autores gregos e helenistas. Os textos traduzidos e os
comentários de originais gregos revelam aos homens de cultura um mundo grego e helenístico
extremamente tentador. Os homens raciocinavam sem entraves e sem escrituras
sagradas.
De Aristóteles traduzem a
Metafísica, a Física, De coelo et mundo, De Generatione Animalium, De
Generatione et Corruptione, Meteorológicos, De Partibus Animalium, Parva
Naturalia, De anima, Retórica, Poética, Categorias, Primeiros e Segundos
Analíticos, Tópicos, Elencos e Ética a Nicómaco, não conheceram a Política. De Platão, vertem a República,
as Leis, o Timeu, o Criton, o Fédon. Dos autores
helenistas traduzem Alexandre de Afrodísia e Porfírio que consideram
comentaristas de Aristóteles. Traduziram ainda para língua árabe o Almagesto
de Ptolomeu, obras de Galeno e Dioscórides, a Geometria de Euclides
e alguns fragmentos de Demócrito e Crisipo. Uma das obras mais populares foi a Teologia
do Pseudo-Aristóteles cuja fonte principal são as Eneadas de Plotino
e Porfirio e o Liber de Causis de Proclo. A simples enumeração dos
textos traduzidos mostra que a filosofia aparece ligada à ciência, à gnose, à
teologia, à mística e ao esoterismo.
Os autores que utilizam
as traduções medievais recebem-nas moldando-as ao recipiente, no caso à
formalização escolar neoplatónica dominante no mundo helenístico romano dos
séculos I a VI da nossa era. No entanto, no novo pensamento islâmico, bem como
no cristão e judaico, a filosofia surge envolta na teologia e sob a tutela das autoridades,
em particular Aristóteles, que representará um papel canónico fundamental. No Andaluz,
a primeira obra traduzida do grego, o tratado de Dioscorides Matéria
Médica, remonta à primeira metade do século X, aos tempos do califa Abderramão
III. Foram tradutores o monge Nicolás, enviado pelo imperador de Bizâncio,
Constantino VII, que o verteu para latim e uma equipa integrada pelo médico
judeu Hasday ibn Saprut que decifrou o nome de algumas plantas
desconhecidas. Não havia então no Andaluz ninguém que soubesse grego. Em
Portugal, a mais antiga Escola de tradutores, agora do árabe
para português, remonta ao governo do rei poeta Dinis I que encarregou o mouro
Maomé e o cristão frei Gil Peres da tradução da Crónica do mouro Arrazí, geógrafo e historiador
islâmico peninsular do século X». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das
Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999,
IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.
Cortesia de I.Camões/JDACT