terça-feira, 5 de novembro de 2013

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «Os textos traduzidos e os originais gregos revelam aos homens de cultura um mundo grego e helenístico extremamente tentador. Os homens raciocinavam sem entraves e sem escrituras sagradas»

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O Gharb al-Andalus
«(…) Mas, se o Corão e a em segundo lugar a Suna constituem a fonte da explicação do mundo e das normas de vida, desde logo uma questão se coloca. Como interpretar o Livro? Atendo-nos ao sentido literal ou, pelo contrário, tentando compreender o seu sentido verdadeiro, o sentido espiritual, a haqiqat? Segundo uma tradição ou hadit que remonta ao Profeta, O Corão tem uma aparência externa e uma profundidade oculta, um sentido exotérico e outro esotérico. Por sua vez, este sentido esotérico encerra outro sentido esotérico (cada nível contém outro nível à imagem das Esferas celestes, embutidas umas nas outras). E assim sucessivamente até sete sentidos esotéricos (sete níveis de profundidade oculta). O xiismo, o ismaelismo, o ismailismo fatimi e o sufismo activeram-se particularmente ao sentido esotérico do Corão. A apreensão desse sentido profundo exige guias, os imãs ou homens de Deus, os inspirados. E só quando chegar o Mahdi (o Imã oculto, o Imã esperado) se alcançará a plena revelação do esoterismo de todas as revelações divinas.
Assim a interpretação do Livro abriu caminho às ciências que Al-Farabi classificava como ciências religiosas: os comentários do Corão e dos hadices, a teologia, o direito, os estudos linguísticos, em particular a gramática árabe, a língua sagrada. A procura do conhecimento constitui uma obrigação de todo o muçulmano, quer o conhecimento das ciências religiosas quer o das ciências ditas estrangeiras, para usar ainda a classificação de Al-Farabi. Mas todas elas, em particular o conhecimento filosófico, tinham à partida os limites impostos pelas verdades reveladas pelo livro sagrado. Os tratados de direito sunita, que omitem os ritos xiitas, enumeram dezoito ritos ou escolas jurídicas. A primeira das escolas, a hanafíta foi desenvolvida por Abu Hanifa (+767) que introduziu a opinião pessoal como fonte de direito e considerava que a proibição canónica do vinho só devia entender-se como condenação da embriaguês e não do consumo moderado. A escola maliquita de Malik b. Anas (+795), adoptada no Andalus ao tempo do emir al-Hakam I (796-822), valoriza o consenso dos juristas medinenses, mais conservadores, e introduz na interpretação dos textos o princípio da utilidade comum.
Ao longo do século VIII, surgiram no Oriente novas formas de pensamento filosófico e religioso, proporcionadas no interior do Império Islâmico pelos espaços culturais marcados por concepções religiosas diferenciadas. O cristianismo e o mazdeísmo eram as religiões dominantes, a que se juntavam como minoritárias no império o budismo, o judaísmo e o maniqueísmo. Daí as discussões sobre os atributos de Deus e a natureza de Cristo, sobre a predestinação e o livre arbítrio, a revelação e a razão. A estas discussões juntavam-se as concepções zoroatristas e judias sobre o fim último do homem, a que se acrescentava a especulação hindu. Entretanto, neste mesmo século VIII e até ao X, em Bagdad, sábios cristãos, entre eles Huanayn ibn Ishaq (+877), e muçulmanos traduziram, directamente do grego ou a partir do siríaco, muitas obras de autores gregos e helenistas. Os textos traduzidos e os comentários de originais gregos revelam aos homens de cultura um mundo grego e helenístico extremamente tentador. Os homens raciocinavam sem entraves e sem escrituras sagradas.
De Aristóteles traduzem a Metafísica, a Física, De coelo et mundo, De Generatione Animalium, De Generatione et Corruptione, Meteorológicos, De Partibus Animalium, Parva Naturalia, De anima, Retórica, Poética, Categorias, Primeiros e Segundos Analíticos, Tópicos, Elencos e Ética a Nicómaco, não conheceram a Política. De Platão, vertem a República, as Leis, o Timeu, o Criton, o Fédon. Dos autores helenistas traduzem Alexandre de Afrodísia e Porfírio que consideram comentaristas de Aristóteles. Traduziram ainda para língua árabe o Almagesto de Ptolomeu, obras de Galeno e Dioscórides, a Geometria de Euclides e alguns fragmentos de Demócrito e Crisipo. Uma das obras mais populares foi a Teologia do Pseudo-Aristóteles cuja fonte principal são as Eneadas de Plotino e Porfirio e o Liber de Causis de Proclo. A simples enumeração dos textos traduzidos mostra que a filosofia aparece ligada à ciência, à gnose, à teologia, à mística e ao esoterismo.
Os autores que utilizam as traduções medievais recebem-nas moldando-as ao recipiente, no caso à formalização escolar neoplatónica dominante no mundo helenístico romano dos séculos I a VI da nossa era. No entanto, no novo pensamento islâmico, bem como no cristão e judaico, a filosofia surge envolta na teologia e sob a tutela das autoridades, em particular Aristóteles, que representará um papel canónico fundamental. No Andaluz, a primeira obra traduzida do grego, o tratado de Dioscorides Matéria Médica, remonta à primeira metade do século X, aos tempos do califa Abderramão III. Foram tradutores o monge Nicolás, enviado pelo imperador de Bizâncio, Constantino VII, que o verteu para latim e uma equipa integrada pelo médico judeu Hasday ibn Saprut que decifrou o nome de algumas plantas desconhecidas. Não havia então no Andaluz ninguém que soubesse grego. Em Portugal, a mais antiga Escola de tradutores, agora do árabe para português, remonta ao governo do rei poeta Dinis I que encarregou o mouro Maomé e o cristão frei Gil Peres da tradução da Crónica do mouro Arrazí, geógrafo e historiador islâmico peninsular do século X». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de I.Camões/JDACT