«Honestamente,
não percebo o que querem as pessoas dizer quando falam sobre a liberdade da
vontade humana. Tenho a sensação, por exemplo, de desejar uma coisa ou outra;
mas não consigo compreender a relação que existe entre esta sensação e a
liberdade. Tenho a sensação de desejar acender o meu cachimbo e faço-o; mas
como posso relacionar esta vontade com a ideia de liberdade? O que está por
trás do acto de desejar acender o meu cachimbo? Outro acto de vontade?» In Albert Einstein, ‘Artigo’
quinta-feira, 31 de julho de 2014
Sátira no 31. Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «El-Rei borrou-se, rebentou de varizes, tremeu de medo pânico. E mal chegou aos seus aposentos, correu ao cofre dos cilícios, fez desaparecer seu frasquinho de arsénico entre a colecção de venenos que tinha. Porque o fez a ninguém disse»
«(…) Por entre alas de vultos negros, cada qual com sua tocha
tremeluzente, o cadáver tremebundo. O ataúde segue pela nave sonora, detém-se
na charola agora preparada com grandes panejamentos negros. Sobre o caixão, o
escudo, o elmo e o pendão do próprio defunto. Um bispo faz elogio, exagera como
manda a praxe, não conta a verdade deste rei feito de egoísmo e avareza, mas
refere qualidades fingidas de generosas caridades impensáveis. Chamaram El-Rei
adiante para que visse. El-Rei olhou. E borrou-se de pavor tão pânico e tanto
se amedrontou que ia morrendo por seu turno. Foi nesse dia que se lhe arrebentaram
ainda mais as pernas com varizes. É que viu: o tal João perdera as carnes sem se descompor, seco, enxuto, a epiderme
perfeita, a barba branca e os cabelos brancos tão em seu lugar e à luz tremenda,
mortiça e dançante de três lâmpadas de prata que o alumiam, parece respirar
mansamente, um sono que adia justiças...
No caixão, o tal João
dormia incorrupto. E só havia duas possibilidades: uma, a de ser santo, coisa
que a ninguém parecia, pois nunca o fora, apunhalara até seu primo, mandara
degolar a outro primo, e distribuíra a eito muito veneno para erradicar
inimigos, e assim sendo, santo não seria. A outra possibilidade era que algum
veneno entrara nele, para o despachar. E todos sabiam que o sintoma da intoxicação
pelo arsénico era por vezes o mesmo: a carne secava, a pele engelhava, mas o
corpo ficava depois da morte como que a denunciar...
El-Rei borrou-se, rebentou de varizes, tremeu de medo pânico. E mal
chegou aos seus aposentos, correu ao cofre dos cilícios, fez desaparecer seu frasquinho de
arsénico entre a colecção de venenos que tinha. Porque o fez a
ninguém disse.
A bruxa entrou no palácio vestida de freira, modo engenhoso que Gil
encontrou para a desaperceber a olhos indiscretos. Mais freira menos freira num
mar de hábitos, ninguém suspeitaria... Não foi fácil convencê-la todavia a, salvo
seja!, tomar o dito hábito. Alegava que a sua reputação sairia comprometida
de tal aventura e que as raivas de padrecas e sorores se lhe colariam à pele
para todo o sempre. No entanto, a heresia, múltipla heresia, acabou por
cometer-se e nem o beneplácito régio salvaria a pobre se alguém da igreja assim
a topasse. Tremia de medo dentro da fatiota e diante do palácio até soltou
flatulências medrosas, tal era o pavor que a percorria.
Era uma mulher roliça, muito providinha de carnes até, nem tão velha
que os cabelos já tivesse descoloridos, eram encaracolados e loiros
naturalmente, vingando nela um olho azul perspicaz, combinação que fazia crer
que algum labrego de paragens nórdicas se tinha posto em sua avó ou mãe,
deixando-lhe tendências de fora e dotes de bruxaria no sangue misturado, nem
tão nova que se julgasse moça, mas ainda muito própria de fazer pensar e querer».
In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
Cortesia de CLeitores/JDACT
História no 31. O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa: Carl Erdmann. «É verdade que João Peculiar podia já então apresentar oito privilégios papais de Pascoal II, Calisto II, Inocêncio II, Lúcio II e Eugénio II, em que estes “três bispados eram confirmados à metrópole de Braga”»
A luta contra o primado de Toledo
«(…) Como tinha sido possível este êxito brilhante, que lança na sombra tudo o que o
arcebispo João Peculiar
conseguira até então? Certamente teve a sua parte nisto a habilidade do
arcebispo que, como o próprio papa, havia pertencido à congregação dos cónegos
regrantes; porém, também veio em seu auxílio o acaso. A vida do rei Afonso VII
caminhava, para o fim naqueles dias; morreu a 26 de Agosto de 1157, e deve-se ter sabido três semanas
antes, quando o arcebispo João Peculiar se encontrava na
Cúria, da doença e do fim iminente do imperedor
de Espanha. Após a sua morte teria de desfazer-se o império; pois ele
determinara que Castela e Leão deveriam ser divididos pelos seus dois filhos
Sancho e Fernando. Com isto estava malogrado o pensamento duma monarquia
espanhola unitária e consequentemente também perdera a sua razão de ser o
primado de Toledo. Especialmente, a sujeição de Braga a Toledo perdia todo o
sentido, visto que Portugal deixava de confinar com Castela, para
ter fronteiras comuns com Leão, e o jovem reino de forma nenhuma poderia
reconhecer a soberania de Castela, mas quando muito a de Leão. Que o último
caso se não daria, podia deduzir-se da relação das respectivas forças; a independência
de Portugal estava de momento assegurada. Desta mudança de situação não
tirou, na verdade, a Cúria imediatamente as consequências requeridas, de pôr de
lado completamente a primazia de Toledo. Deixou-a antes em teoria persistir,
mas, como os factos o demonstram, prescindiu por agora duma imposição enérgica
dos direitos de primazia e tornou assim possível ao arcebispo de Braga, e
também posteriormente, feliz oposição.
Mais difícil era certamente a discussão das pretensões de Compostela
aos bispados de Coimbra, Viseu e Lamego. É verdade que João Peculiar podia já
então apresentar oito privilégios papais de Pascoal II, Calisto II,
Inocêncio II, Lúcio II e Eugénio II, em que estes três bispados eram confirmados à
metrópole de Braga; mas nem estes privilégios bastavam juridicamente
para resolução do processo, nem se podia resolver definitivamente um litígio de
tal importância política com a simples apresentação de diplomas. O mais
provável é porém que Adriano IV deixasse adormecer a questão material e se
contentasse com absolver o arcebispo João Peculiar da sentença do cardeal
Jacinto, para contudo lhe impor para, com o arcebispo de Santiago outra
reparação». In Carl Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História
Portuguesa, Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora, 1935.
Cortesia de Separata do BIAlemão/JDACT
Poesia no 31.António Cândido Franco. «Mar com o calor do inferno debaixo do meu peito fervendo. Noite interior com um coração a fazer de sol. O meu peito é a linha da terra. Por baixo dele invisível e quieto»
Estâncias
«O
meu peito é a linha do horizonte.
Por
cima dele está o céu
e
por baixo o inferno.
Este
é uma lareira líquida.
Sinto
nas costas o fogo.
Tenho
a flor dos rins chamuscada.
Contorcem-se
chamas
por
baixo da minha pele.
Volteiam
labaredas
dentro
de mim.
Na
minha vida encosto
o
ouvido ao peito
como
se à terra o encostasse.
Crepitam
trevas
do
outro lado do mundo.
Ouve-se
a pulsação do fogo
contra
a pele.
Da
terra nada diferencia o corpo.
Por
baixo do peito
há
braseiros líquidos
que
fervem em línguas vorazes de lume.
Águas
queimando mais do que o fogo.
Mar
com
o calor do inferno
debaixo
do meu peito fervendo.
Noite
interior
com
um coração a fazer de sol.
O
meu peito é a linha da terra.
Por
baixo dele
invisível
e quieto
está
o caos da noite.
Há
neste abismo um céu.
O
seu nome é esquecimento.
Por
baixo da terra
há
um tumulto secreto de fogo
núcleos
ctónicos
a
devorar gases em brasa.
Caos
e fumos.
Lareiras
de lava
consumindo
o nada.
Tudo
tapado pelas pedras.
O
meu peito é a linha dessa fronteira.
Por
baixo está o inferno
as
suas línguas de lume revolvendo
e
por cima o céu.
Do
meu corpo crescem pontes.
Evaporam-se
órgãos.
Sublimam-se
ossos.
Poalha
de estrelas.
Está
tudo enxuto.
Nuvens
acumulando-se aos novelos.
O
mundo enxugando
a
sua matéria sólida.
Névoas
de matéria
bailando
no firmamento.
Sons
ondulando
em palavras.
É
esse o chão
onde
germinam as estrelas».
JDACT
Guitarradas no 31. Carlos Paredes. «Contemplando uma cascata, acreditamos ver nas inúmeras ondulações, serpenteares, quebras de ondas, liberdade da vontade e capricho; mas tudo é necessidade, cada movimento pode ser calculado matematicamente. O mesmo acontece com as acções humanas»
«Os
velhos são os verdadeiros rebeldes. Os jovens, por muito rasgados que estejam
os blusões de cabedal, querem sempre conformar-se com qualquer coisa. Querem
fazer parte dum movimento. Querem fazer parte de uma revolução ou de uma
comunidade. Os velhos só querem fazer partes. Os velhos não têm nada a perder.
Podem dizer e fazer o que lhes apetece. É por isso que os velhos, mais do que
os novos, dizem quase sempre a verdade. Nós é que podemos não querer ouvi-la.
Há-de reparar-se que aquilo que os velhos dizem é que a vida é uma chatice.
Nós dizemos que eles estão senis. Mas eles é que têm razão». In Esteves Cardoso, ‘As
Minhas Aventuras na República Portuguesa’
Música no 31. Christoph Poppen. «A doença é um estorvo para o corpo, mas não para a vontade se ela não o desejar. O ser-se coxo é um estorvo para as pernas, mas não o é para a vontade. Assim pondera, que só movido de vontade, não é estorvo de espécie alguma»
jdact
«Quando
uma literatura chega a ter êxito, aquilo que nela havia de mais activo em
momentos anteriores torna-se menos claro e é ultrapassado por aquilo que nela é
mero produto dessa actividade. É por isso que é bom olhar de vez em quando para
trás. Tudo o que em nós há de original conservar-se-á tanto melhor e será tanto
mais apreciado, quanto mais formos capazes de não perder de vista os nossos
antepassados». In Goethe, ‘Máximas e Reflexões’
quarta-feira, 30 de julho de 2014
O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média. Manuel Cadafaz Matos. «Ayras Nunes, por exemplo, apresenta-nos, no “Cancioneiro da Vaticana”, umas trovas votadas a Sant’Iago de Compostela, patrono da cidade onde exerceu o seu mester eclesiástico…»
Vias romanas do Centro de Portugal, ainda em uso na época da
peregrinação da rainha D. Isabel (segundo Mario Saa)
jdact
«(…) Pelo estudo da lírica trovadoresca que se encontra em
torno de peregrinações ou santuários como o de Santiago de Compostela,
poder-se-á, de igual modo, fazer um questionamento sobre os padecimentos ou
males físicos que à altura mais afectavam a população (essencialmente rural),
portuguesa ou espanhola. Dos males psíquicos aos físicos, das maleitas e
tratamentos da mais variada espécie, encontra-se aliás por estudar
detalhadamente tal problema nesta óptica. Afonso X foi a figura dominante da nossa lírica trovadoresca, dando assim o
nome a este rico e produtivo período da quase totalidade da segunda metade do
século XIII. Do período alfonsino
chegaram até nós, no entanto, e ainda graças ao Cancioneiro da Ajuda,
outros talentosos trovadores. Alguns deles legaram-nos, de igual modo, variadas
estrofes que constituem verdadeiras invocações ao Apóstolo Sant’Iago:
Apostolo Santiago
cavaleiro muito
honrado,
antre os mouros
muy esforçado...
Se vais a Santiago
compra-me um
santiaguinho,
não mo compres grande,
seja pequenino.
Mas se todos os referidos poetas, representados no Cancioneiro
da Ajuda, invocam com tal fervor ou ternura o Apóstolo de Compostela,
vários são os autores representados no Cancioneiro da Vaticana que homenageiam,
de igual forma, Sant’Iago. Do período alfonsino
pertencem a este cancioneiro trovadores como Ayras Nunes Santiago, Joham
Ayras Santiago (que cultivam com grande brilhantismo cantigas de amigo), Paay Gomes Charinho, bem como Pedro Amigo Sevilha,
deixando-nos todos eles versos alusivos ao culto jacobeu peninsular. Quanto a Ayras
Nunes Santiago, este apresenta-se-nos, segundo António José Saraiva
e Óscar Lopes, como procurando de
porta em porta e sem resultado uma Verdade que não existe em parte alguma, nem
nos conventos e mosteiros, nem na cidade santa de Santiago de Compostela.
Natural da Galiza, Ayras Nunes, que era um clérigo contemporâneo de Afonso
X e de seu filho Sancho IV, apresenta-se-nos ainda hoje como um dos mais
fecundos trovadores desse período.
Seu contemporâneo foi, de igual modo, o trovador Joham
Ayras Nunes (que, também natural da cidade de Santiago de Compostela, visitou várias cortes e veio a Portugal ou nos
fins do reinado de Afonso III ou nos primeiros anos do reinado de D. Dinis,
sendo também um dos mais ricos trovadores deste período alfonsino. Conservaram-se dele até hoje cerca de 50
cantigas de amigo, 25 de amor e 10 de escárnio e maldizer. Da sua peregrinação,
após a estada em Portugal, legou-nos estes significativos versos: Andey, senhor, Leon e Castela / depois
que m’eu d’esta terra quytey. Naturais da cidade que conserva as
relíquias do Apóstolo natural seria que tanto Ayras Nunes como Johan
Ayras Santiago, desconhecemos se havia qualquer tipo de parentesco entre
ambos, mantivessem nas suas trovas algumas alusões (mesmo que não muitas) ao
santo padroeiro da cidade que os vira nascer. Ayras Nunes, por exemplo,
apresenta-nos, no Cancioneiro da Vaticana, umas trovas votadas a Sant’Iago de
Compostela, patrono da cidade onde exerceu o seu mester eclesiástico,
significativas na sua qualidade poético-literária:
Em Sant’Iago seend’
albeergado
em mha pousada
chegaron romeus,
preguntey-os e
disserom: Par Deus,
muyto levadel’ o
caminho errado;
cá se verdade
quiserdes achar
outro caminho convem a
buscar,
ca nom sabem aqui d’ela
mandado.
In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao
longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade
do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património
Cultural, Lisboa, 1985.
Cortesia de IPPCultural/JDACT
Conhecimentos no 31. Breve História da Censura Literária em Portugal. Graça Rodrigues. «Em 1539, cinquenta anos após a impressão do primeiro livro de que há notícia impresso em Portugal: “O Tratado de Confissom”, impresso em Chaves a 8 de Agosto de 1489, aparece o primeiro livro de que há notícia ter sido sujeito a censura prévia: o “Ensino Cristão”»
Os Arquétipos. A Censura Inquisitorial
«(…) Em 1521, Leão X escreve ao rei Manuel I pedindo-lhe ajuda nas suas
instâncias junto do imperador para que os livros heréticos não sejam divulgados
em Portugal e Espanha. Em resposta escreve o rei Manuel I ao papa informando-o que
tomara previdências contra a heresia, o que Leão X agradeceu e louvou. Também o
monarca Sebastião em 1571 declarava
ao Sumo Pontífice que estava pronto a combater os luteranos. Aliás este rei
acrescenta que teria sido o conhecimento desta determinação do monarca
português que impedira os luteranos de atacar o reino de Portugal com uma armada
poderosíssima de sessenta ou setenta navios. Vemos assim os objectivos
coincidentes da censura portuguesa com os da Igreja: combater a heresia. A
censura vai exercer-se de dois modos: a censura preventiva e a censura repressiva.
A primeira consistia na censura prévia das obras, o que dará origem mais tarde
à elaboração de índices expurgatórios, e era exercida por três entidades: o Conselho
Geral do Santo Ofício, maldito, (censura papal), o Ordinário
da Diocese (censura episcopal) e, a partir de 1576, o Desembargo do Paço (censura real). Veja-se a aceitação
de que teria de gozar o autor para conseguir passar estes trâmites
burocráticos.
Temos o exemplo de Damião de
Góis, cuja Parte IV da Crónica de
D. Manuel, impressa a 25 de Julho de 1567, ainda não se encontrava à venda cinco anos e meio mais tarde
porque o bispo António Pinheiro tinha de emendar um pouco que estava errado
numa página. Ora, como sabemos, o bispo António Pinheiro não era amigo de
Damião de Góis. A censura repressiva exercia-se através do controle das alfândegas
e portos e visitas às livrarias públicas e particulares. O modo como a censura
foi organizada no século XVI está devidamente estudado por, entre outros, Sousa
Viterbo, António Baião, Silva Dias, Révah e é sintetizado, a partir dos estudos
que existiam à data, na obra de António José Saraiva, História da Cultura em Portugal.
O primeiro controlo que se começou a exercer sobre a imprensa foi através da
concessão de privilégios de impressão e venda que os livros em geral exibiam e
que eram a única garantia legal da propriedade literária e editorial. O
primeiro privilégio que se conhece data de 20 de Fevereiro de 1537 e foi outorgado por João III ao escritor
cego Baltazar Dias, natural da Ilha da Madeira, autor de autos populares e de
poemas narrativos. O privilégio foi concedido nos seguintes termos:
- Dom Joham etc. A quantos esta minha carta virem faço saber que Balltezar Diaz, ceguo, da Ilha da Madeira, me disse por sua petyçam que ele tem feito algũas obras asy em prosa como em metro, as quaes foram já vistas e aprovadas e allgũas dellas ymprimidas, segundo podya ver por hum publico estromento que perante mim apresentou.
Vemos, por este privilégio, que
antes de 20 de Fevereiro de 1537 já
tinham sido examinadas obras de literatura popular, em prosa e em verso, que se
viria a chamar de literatura de cordel. É provável que a instituição da censura
preventiva date do estabelecimento inicial da Inquisição (maldita) em 1536. Em 1539, cinquenta anos após a impressão do primeiro livro de que
há notícia impresso em Portugal: O
Tratado de Confissom, impresso em Chaves a 8 de Agosto de 1489, aparece o primeiro livro de que
há notícia ter sido sujeito a censura prévia: o Ensino Cristão, de autor anónimo, o qual trás no
frontispício, a seguir ao título, as palavras aprovado pela santa inquisição. Com privilégio real. No reverso vem uma provisão do cardeal
Infante Henrique, Inquisidor-Geral, em que diz:
- Que mandado ver a obra por letrados, e achando-a útil, dá licença para se imprimir e vender.
A
provisão é datada de 3 de Setembro de 1539.
Os termos da aprovação mostram, no entanto, que não havia ao tempo pessoa ou
pessoas especialmente encarregadas do exame dos livros. O segundo livro censurado,
impresso, como o Ensino Cristão,
por Luís Rodrigues, também em 1539,
foi a Grammatica da lingua portuguesa
com os mandamentos da santa mádre igreja de João de Barros,
impresso por autoridade da santa
inquisiçam (maldita). A censura
preventiva recebe no ano seguinte a 1540 uma organização estável. A 2 de Novembro o Inquisidor-Geral, o
Infante Henrique, confia a censura disciplinar dos livros a
três dominicanos: o prior do convento de S. Domingos de Lisboa, o vice-prior (frei
Aleixo) e frei Cristóvão Valbuena. Uma das incumbências que recebem é a de mandar noteficar a todos [os] empressores
que não imprimam novamente ninhuns livros sem primeiro serem vistos [e]
examinados per eles». In Graça Almeida Rodrigues, Breve História
da Censura Literária em Portugal, Instituto de Cultura Portuguesa, Série
Literatura, Biblioteca Breve, Amadora, 1980.
Cortesia
de ICP/JDACT
terça-feira, 29 de julho de 2014
Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «… chegou a ver-se os seus exércitos defrontando-se ao serviço de dois príncipes muçulmanos rivais, ou mesmo para proteger um muçulmano dos assaltos de um cristão. As terras do Islão são um campo aberto aos aventureiros»
A Chegada dos Cristãos. O Refluxo do Islão Espanhol
«(…) Em meados do século XI, a chama será erguida pela Toledo do prestigioso
al-Ma'mun (1045-1077), que alberga os artistas e sábios expulsos de
Córdova pelo desmoronamento do califado. Al-Andalus faz verdadeiramente
parte de um conjunto de elementos que se estende até ao Indo, onde circulam os
homens, as ideias e os livros, onde nunca se perdeu a memória das obras da
Antiguidade e onde nunca se interrompeu a tradição de leitura. Deste ponto de
vista, está-se a anos luz da Europa cristã. A Europa cristã, exactamente.
Durante muito tempo, Al-Andalus desprezou-a. E claro que foi preciso
fazer um esforço para repelir os exércitos de Carlos Magno, que penetraram até
Saragoça e Barcelona, mas finalmente haviam sido detidos e a maioria do terreno
perdido, reconquistada.
Durante muito tempo, pouco mais incómodo causaram aqueles grupos guerreiros das
Astúrias e da Galiza que a pouco e pouco se espalharam pelo grande planalto do
Norte. Ocupam Leão, a capital, e Santiago de Compostela, onde pretendem ter
descoberto o túmulo do apóstolo do mesmo nome; mas ainda há, bem pouco, os
raides de Almançor, o déspota de Córdova, puseram a ferro e fogo as suas
vilas e cidades. Todavia, ganham peso porque Al-Andalus divide-se.
Curiosamente, sempre lhe foi difícil dotar-se de um regime estável. Durante quase
cinquenta anos, dependera de Damasco. Em 756,
apresentara-se em Córdova um príncipe vindo do Oriente, o último dos Omíadas,
o último sobrevivente da família dos califas, massacrada e destronada num golpe
de estado sangrento. Instalara-se, tomara o título de califa e, de então para a
frente, a Espanha muçulmana era independente. Com dificuldade, entre revoltas
de governadores e intrigas de palácio, encontrara sempre um homem de pulso para
a manter unida, nem que fosse à custa de uma ditadura sanguinária.
Mas pouco depois do ano 1000,
o ano 1000 dos cristãos, ocorrera o
irreparável: Al-Andalus fraccionara-se em taifas, em principados
independentes e rivais, incessantemente virados uns contra os outros; Sevilha,
Toledo, Saragoça, Valência, Granada, Badajoz, para falar apenas dos mais
importantes e não falar desses Estados minúsculos que eram Huelva, Moron,
Arcos, Rueda, Denia ou Lérida, uma boa vintena no seu total. Como podia a alma dos verdadeiros crentes
não sofrer com esta escandalosa fragmentação? Tanto mais que os
cristãos beneficiavam com isso. Não estavam menos divididos: os
reinos de Leão, de Castela (em volta de Burgos e muitas
vezes unidos, esses dois), de Navarra (em redor de Pamplona), os condados
catalães (uma meia dúzia pelo menos, mas dominados pelo conde de Barcelona),
o pequeno
reino de Aragão, que estava a formar-se nos altos vales dos Pirenéus
centrais, invejavam-se ainda mais do que temiam os muçulmanos. Mas,
estendiam-se, e cada vez mais rapidamente.
Porque o aparecimento dos taifus
constituíra para eles uma bênção. Atraídos pelo ouro, eles que praticamente lhe
tinham perdido o uso, os seus soberanos haviam posto os seus exércitos ao
serviço dos reizinhos muçulmanos e haviam enriquecido consideravelmente. A
pouco e pouco foram-se tornando ousados e agora exigiam. Já não lhes era pedida
a sua protecção: eram eles que a impunham. Obrigavam a que lhes fossem dados
verdadeiros tributos, as parias,
que arruinavam os príncipes de al-Andalus e os seus povos. Pobre do que não pagava! Uma
razia em breve o obrigava a voltar à razão: al
Ma'mun de Toledo, al Muktamid
de Sevilha, o mais poderoso dos soberanos muçulmanos, haviam conhecido
essa experiência. Em contrapartida, os cristãos mantinham a sua palavra e
protegiam, de facto, os seus clientes contra o que quer que fosse: chegou a
ver-se os seus exércitos defrontando-se ao serviço de dois príncipes muçulmanos
rivais, ou mesmo para proteger um muçulmano dos assaltos de um cristão. As
terras do Islão são um campo aberto aos aventureiros. Célebre, entre eles, o Cid, Rodrigo Diaz Vivar.
Nobre castelhano, nascido em Burgos, ao serviço de Afonso VI, encontrava-se
numa embaixada em Sevilha para receber a paria
quando repeliu os exércitos granadinos que atacavam a cidade, comandados pelo
conde Garcia Ordoñez, também castelhano. Expulso da corte do seu senhor na
sequência de querelas políticas, colocou-se, com um exército sem dúvida composto,
pelo menos em parte, por vassalos seus, ao serviço do rei mouro de Saragoça,
por conta de quem esmagou (as crónicas dizem que capturou) o conde de
Barcelona. Daí passou a Valença, onde permaneceu durante anos, atacando uns,
exigindo tributo a outros, protegendo al-Qadir, o soberano da cidade, vassalo
de Afonso, contra os seus inimigos, tanto cristãos como muçulmanos». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT
Breve História da Censura Literária em Portugal. Graça Rodrigues. «A censura era pois uma arma de defesa empregada na luta contra as doutrinas declaradas heréticas ou simplesmente pouco respeitosas. Para além de queimar e condenar as obras, a Igreja condenava e queimava…»
Os Arquétipos
«A censura oficial actuou através
de dois modelos que bem podem ser considerados arquétipos desta instituição em
Portugal e padrões da sua actividade futura: a Censura Inquisitorial que
funcionou nos séculos XVI, XVII e na primeira metade do século XVIII; e a
Real Mesa Censória que a veio substituir em 1768, por providência do marquês de Pombal. Comecemos pelo
primeiro: a Censura Inquisitorial.
A
Censura Inquisitorial
Apesar dos estudos de que
dispomos apontarem para o facto de que a censura em Portugal foi a mais
rigorosa de todas as censuras inquisitoriais e aqui reveste-se, sem dúvida, de
características originais é importante fazer realçar que a censura não foi
inventada pelos portugueses. Começou a ser exercida no Império Romano após a
morte de César: As Memórias do seu lugar-tenente Labieno
foram confiscadas e destruídas pela polícia. Mais tarde, a censura passou a
fazer parte integrante da prática da Igreja Católica desde os seus começos e
foi através desta que passou a fazer também parte da civilização portuguesa. É
interessante lembrar aqui que o cristianismo, como sabemos, alicerçou-se já na decadência
do Império Romano. A censura foi
prática tradicional da Igreja desde os primeiros tempos do cristianismo. Assim
escreve o autor da História da Igreja
em Portugal:
- Uma das armas de defesa empregadas na luta contra a heresia foi a censura dos livros e a proibição daqueles que continham doutrinas heréticas ou simplesmente pouco respeitosas para com as verdades da religião. Desfazerem-se os cristãos dos maus livros era tradição que datava dos primeiros séculos da Igreja; e nunca os pontífices, os bispos e os concílios deixaram de exercer o direito de proibição da leitura de doutrinas falsas e perniciosas. Nos tempos primitivos, segundo refere Santo Anastácio, aqueles que de novo se convertiam à fé queimavam primeiro os maus livros de que se tinham servido. Em 325, o concílio de Niceia, condenou e proibiu os livros de Ario. Em 398, um concílio de Cartago proibiu aos bispos que lessem os livros dos gentios. Em 399, Teófilo, patriarca de Alexandria, condenou e proibiu os livros de Orígenes. Em 401 foram os livros de Nestório. Em 444, o papa S. Leão, num concílio de Chipre. Em 431, o concílio de Éfeso condenou e proibiu os livros de Nestório. Em 444, o papa S. Leão, num concílio celebrado em Roma, condenou e proibiu os livros dos maniqueus e mandou queimá-los publicamente. Em 451, o concílio de Calcedónia, condenou e proibiu os livros do heresiarca Eutiques. Em 494, o papa S. Símaco mandou queimar os livros dos maniqueus diante das portas da igreja constantiniana. O papa Hormisdas também mandou queimar os livros de maniqueus em 523.
A mesma tradição
se prolonga durante a Idade Média. A
censura era pois uma arma de defesa empregada na luta contra as doutrinas
declaradas heréticas ou simplesmente pouco respeitosas. Para além de queimar e
condenar as obras, a Igreja condenava e queimava também os seus autores. Silva
Dias aponta três casos de censura na Idade Média em Portugal, exercida pelo
Ordinário (censura
episcopal). Outros casos deviam ter ocorrido. Este tipo de censura, que se
exerceu sobre estes autores e outros declarados heréticos, tinha, no entanto, características
muito diferentes da que veio a ser exercida mais tarde. A motivação imediata
para a organização e exercício da censura adveio com a invenção
da imprensa por Gutemberg de Mogúncia no ano de 1436. A invenção da imprensa foi uma verdadeira revolução cultural.
Durante a Idade Média, tinha sido fácil vigiar e censurar as produções
intelectuais: os manuscritos eram raros e caros; as teorias consideradas
perigosas não se podiam propagar nem depressa nem longe. Para além disso, a teologia
escolástica reinava e dominava todas as escolas, os únicos centros de vida
intelectual. No começo do século XVI tudo muda. Quando os homens cultos do
Ocidente descobriram com entusiasmo as maravilhas da arte e do pensamento
antigo, no momento mesmo em que o espírito do livre exame penetrava no próprio
seio da Igreja e criticava as ideias que o princípio da autoridade tinha até
então impostas, uma invenção nova punha ao serviço dos pensadores e dos
estudiosos um meio espantoso de propagar as suas ideias. A arte da imprensa
pareceu tanto mais perigosa visto que já se estavam a servir dela para
subverter os princípios fundamentais sobre os quais assentavam as sociedades
civil e religiosa. Sobre os objectivos da censura em Portugal, também o autor
da História da Igreja em Portugal é bem explícito:
- A perfeita adesão à cadeira de S. Pedro foi sempre timbre dos monarcas e fiéis de Portugal, quaisquer que fossem os incidentes que uma ou outra vez embaciassem a cordialidade das relações oficiais. Essa tradição vinha das origens da monarquia, e era tão consistente, que por si só formava grossa barreira à introdução das depravações heréticas.
O mesmo autor prossegue declarando
que:
- Quando era mais aceso o fogo da heresia, nunca os monarcas deixaram de protestar a sua fiel adesão à Santa Sé, e de adoptar providências para que o reino fosse preservado do erro; nem os papas deixaram de contar com a ortodoxia do soberano e dos fiéis de Portugal, manifestando essa confiança em palavras de carinho paternal.
In
Graça Almeida Rodrigues, Breve História da Censura Literária em Portugal,
Instituto de Cultura Portuguesa, Série Literatura, Biblioteca Breve, Amadora,
1980.
Cortesia
de ICP/JDACT
O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Mas o deserto, autêntico ou imaginário, desempenhou um papel importante nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo. Representou os valores opostos aos da cidade»
O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Fronteiras do maravilhoso, enfim, que ameaçam o próprio maravilhoso,
que assim corre o risco de dissolver-se: são as diferentes formas de
recuperação. Reduzi-las-ia a três capítulos: a recuperação cristã em geral,
a recuperação científica, a recuperação histórica. A recuperação
cristã canalizou o maravilhoso, por um lado, para o milagre, por outro, para
uma recuperação simbólica e parenética. Entre muitos, escolhemos um exemplo
belíssimo. Trata-se da evolução das versões latinas do Physiologus.
Inicialmente, temos versões que nos contam maravilhas sem que delas nos sejam
apontados significados e explicações simbólicas. A seguir, e cada vez mais, as
explicações simbólicas e parenéticas devoram, por assim dizer, a substância do Physiologus,
enfraquecendo-o. Uma segunda forma de recuperação, muito interessante, é a recuperação
científica de um certo número de intelectuais, de estudiosos, que possuíam
verdadeiramente aquilo a que hoje chamaríamos o espírito científico.
Estes tendem a fazer dos mirabilia
fenómenos marginais, casos-limite, excepcionais mas não fora da ordem da
natureza e verdadeiros, embora não tenham o aval da Bíblia. O melhor exemplo
desta mentalidade é-nos proporcionado, parece-me, pelo próprio Gervásio Tilbury
que, no prefácio a Otia Imperialia,
desenvolveu longamente, em textos apaixonantes para a história do espírito
científico, esta tendência para ligar os mirabilia
como mundo natural e, por conseguinte, científico. Mirabiliavero dicimus quae nostrae cognitioni non subjacente etiam
cum sint naturalia.
A pari passu com esta recuperação
científica vai também a recuperação histórica. Trata-se do desejo de ligar os mirabilia a acontecimentos e datas. E,
com este estratagema, os mirabilia,
que só se tornam manifestos numa paragem do tempo e da história, são também levados
ao esvaziamento. Tenho a impressão de que em tudo isto se manifestam tendências
que, embora comuns a religiões como, por exemplo, o islamismo e o cristianismo,
parecem mais próprias do cristianismo: tendência para o simbolismo e para a
fixação ética, tendência para a racionalização científica e histórica.
Poder-se-ão identificar aqui e ali
correntes de fundo, inimigas ocultas do maravilhoso? Poderia ser essa
uma linha de ulterior pesquisa.
O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
Pretendeu-se por vezes pôr em relação ambiente desértico e fenómeno
religioso. Perguntou-se se haverá uma religião no deserto, se o deserto predisporá
para um determinado tipo de experiência religiosa de preferência a outro. De um
modo particular, pensou-se que o deserto favorece o misticismo. Há cerca de cem
anos, em 1887, na sua Histoire du peuple d'Israël,
Renan afirmava, não sem audácia: O
deserto é monoteísta. Estas teses, que, em última análise, se fundam
num determinismo geográfico um tanto simplista, não podem hoje ser aceites como
boas. Mas o deserto, autêntico ou imaginário, desempenhou um papel importante
nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo. Habitualmente,
representou os valores opostos aos da cidade
e, por isso mesmo, deve interessar a história da sociedade e da cultura. No
cristianismo medieval, a ideologia do deserto apresentou-se de uma forma
inédita: o deserto foi a floresta».
In
Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale,
Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval,
Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
Cortesia de E70/JDACT
As Regências na Menoridade do rei Sebastião. Elementos para uma História Estrutural. Maria do Rosário Azevedo Cruz. «… 11 de Junho de 1557, vendo quam orphaos ficavão os Reinos de Portugal, com hü herdeiro menino, que era seu neto o Principe Dom Sebastião deixou elle declarado em seu testamento, e rogado a Raynha sua molher que ella tomasse a seu cargo a criação de seu neto»
A Primeira Transmissão de Poderes- 1557. Os termos de uma definição de
regência
«(…) Ora, como observa Rebelo Silva, não podemos concluir que D. Catarina
tenha recusado a perspectiva política que lhe apontava o imperador, mas só que
se recusou a publicar a referida pragmática. Chamando a atenção para os termos
da correspondência de Borja com Carlos V, publicada por Gachard e citada por
Mignet, Rebelo Silva apresenta uma interpretação divergente da de Barbosa
Machado. Com efeito, o jesuíta escrevia na sua carta de 6 de Outubro de 1557 que en attendant, micer Agustino [Carlos V] peut être très satisfait e
dois dias depois acrescentava que
Catalina Diez [D. Catarina] obéirait à micer Agustino comme pourrait le faire
Santiago de Madrid [Filipe II]. E decerto se entendia que nas orientações
políticas gerais a colaboração era garantida entre a coroa portuguesa, enquanto
representada por D. Catarina, e a castelhana. Para Portugal seria impossível
esquecer a ameaça de uma ambição tão antiga como o reino e tão numerosas vezes
ensaiada. Posta tantas vezes à prova a segurança da sucessão do trono, tendo o
sucessor apenas 3 anos de idade, como se não inquietariam os portugueses à morte
do monarca João III, no desconhecimento total em que se encontravam de qualquer
acto ou disposições reais no
concernente à continuidade do governo? E essa inquietação, patente e
confessada pelos colaboradores de el-rei que acompanhavam o féretro de João III
até Belém, persistiu durante os primeiros tempos da regência, pois nenhuma
disposição geral foi tomada após a aclamação do rei Sebastião. Em 1558 Manuel Costa, professor de
Coimbra, insistia na necessidade de se criar direito claro sobre a sucessão na
coroa portuguesa; lembrava como surgiam litígios a tal respeito entre parentes,
não se resolvendo muitas vezes pelo direito e pelas leis, mas pela guerra e
pelas armas; sabia-se como tais casos ocorriam nos outros reinos, apesar de estes
problemas terem aí explicitação mais clara nos documentos legislativos.
O direito de sucessão à coroa portuguesa não foi a questão principal a
ser resolvida em 1557. Depois da
morte do rei, a primeira transmissão de poderes só aludiu aos problemas
imediatos do processo governativo, mas em breve eclodiria uma crise política em
que as soluções não seriam tão simples. O rei João III morreu numa sexta-feira,
11 de Junho de 1557, no Paço da
Ribeira de Lisboa. Rodeado pela rainha, pelo cardeal-infante, pela infanta D. Maria, infanta D. Isabel e
seus filhos, por Jorge Silva, filho do regedor de justiça, que, com o rei,
dizia o credo, por fr. Gaspar Casal, a quem se acabara de confessar, o rei
teria pedido a D. Catarina, antes de morrer, que regesse, e governasse este Reyno com muito amor, e sem escandalo, e
que ella com o Infante cardeal Henrique, seu irmão, com dès do Concelho fizessem
os despachos de mayor importancia.
A crónica, de autor anónimo, publicada por Luciano Ribeiro também se
refere a este pedido de João III ao morrer, declarando
a R.ª D. Caterina sua mulher […] por governador de Portugal q aceitou primeiro por
serviço de deus e bë destes reynos importunada por El Rey seu marido naquellas
horas chegadas à morte em q os rogos soem ser eficazes diante de quë com tanto
decoro sabrá guardar as ordens de seu marido e a obrigação q tinha a seus povos
e reynos de seu neto. A crónica juntava que ficava tambem antre outros do sangue o Infante cardeal Henrique irmão
del Rey difunto em q a Rainha regente podia librar parte de seus trabalhos no
governo. Nenhuma outra fonte alude a tal preocupação do rei nos seus
últimos momentos. António Castilho refere que o rei viera a falecer algüs dizião que sem testam. nê declaração
de guovernador do Rejno e titoria del Rei seu neto. Mas a crónica da
Biblioteca da Ajuda atribuída a mestre Afonso Guerreiro declara que ao tempo da morte del Rey Dom João que foi
aos 11 de Junho de 1557, vendo quam
orphaos ficavão os Reinos de Portugal, com hü herdeiro menino, que era seu neto
o Principe Dom Sebastião deixou elle declarado em seu testamento, e rogado a
Raynha sua molher que ella tomasse a seu cargo a criação de seu neto; não
precisa a data, nem do testamento, nem do pedido. Por seu turno, o escrito
sebastianista Discurso da Vida del Rey Dom Sebastião acentua o facto de Sebastião ter entregue o reino a sua
avó para que o criasse e governasse por ele.
Após a morte do rei, a rainha recolheu-se no seu oratório, decorrendo depois
as cerimónias fúnebres. O conselho foi convocado para o dia 13 de Junho,
domingo da Santíssima Trindade. Como narra Manoel Menezes, nesse dia, festa de
Santo António, se ajuntarão os do
Concelho, para tomarem acordo nas cousas tocantes ao governo do Reyno, e à paz,
e soccego delle, e para isto melhor se fazer tratárão de saber se deixára El
Rey Testamento, ou algüa lembrança, ou papel, em que se fizesse alguma
disposição, por onde elles se pudessem governar, e não se achou mais que hum
papel sem ser assinado por El Rey, o qual era instrucção, que deu o Chanceller
mòr Gaspar Carvalho, a qual El Rey lhe pedio, como conselho, se licitamête, sem
ser cõtra Direito, e sem hir contra sua consciência, poderia por sua morte, deixar
a Rainha por Governadora destes Reynos, em quanto o Principe não fosse de idade
para poder tomar posse, e reger por si os ditos Reynos. Sobre isto era a instrucção,
que o dito Gaspar Carvalho deu a El Rey, porém feita pela mão do Secretario.
Então o agente da sua divulgação teria sido Pero Alcáçova Carneiro». In
Maria do Rosário Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião,
Elementos para uma História Estrutural, Temas Portugueses, Imprensa
Nacional-Cazsa da Moeda, 1992, ISBN 972-27-0527-X.
Cortesia de INCM/JDACT
Onde Fica o Meu País? O exílio e a migração na ficção pós-apartheid de Nadine Gordimer. Anderson Martins. «Em certo sentido, a dificuldade de se traçarem fronteiras exactas entre o exilio e a diáspora e compensada pela possibilidade de se pensar que esta última pode trazer a experiência do exílio uma leveza…»
Aquele precário reino do
exilio
«(…)
Em seguida, o autor tenta traçar uma forma de diferenciar o exilio da diáspora.
Segundo Peters, o contraste-chave com a diáspora esta na ênfase desta
sobre relações laterais e descentradas entre os dispersados.
O exilio sugere um pesar (pining) pela ausência do lar; a diáspora sugere redes entre os
compatriotas. O exílio pode ser solitário, mas a diáspora e sempre colectiva. A
diáspora sugere relações reais ou imaginadas entre companheiros disseminados,
cuja noção de comunidade e sustentada por formas de comunicação e contacto tais
como o parentesco, a peregrinação, o comércio, a viagem e a cultura comum,
língua, ritual e escritura. Algumas comunidades na diáspora talvez se
movimentem para retornar ao país de origem, mas a norma que diz que o retorno é
desejável ou mesmo possível não faz necessariamente parte da diáspora hoje em
dia.
A
fim de melhor organizar o esforço conceitual apresentado até aqui, é possível
afirmar que uma das bases fundamentais do pensamento sobre o exílio e a
separação traumática, presente no pensamento de Suvin, na sua postulação
de que o exílio normalmente afasta qualquer possibilidade de retorno, mas que,
por sua vez, reflecte-se em sentido inverso sobre a noção de Peters da
presença permanente do desejo por este retorno. Trata-se de um desenrolar psíquico
da experiência do exílio, localizado nas fantasias compensatórias e mesmo nas
paranóias engendradas por toda forma de proibição e que, com frequência, interfere
nos projectos políticos aos quais muitos exilados se dedicam. Ambos, no
entanto, deixam de considerar os casos em que os exilados se adaptam de forma
tão absoluta ao novo país que deixam de ser exilados e comumente adquirem uma
cidadania substituta ou alternativa.
A
diáspora, por sua vez, representa um problema conceitual mais aberto. Segundo a
leitura feita por James Clifford do trabalho de Safran, ela encontra
traços comuns com o exilio em sua ênfase na sustentação de um mito da terra
natal, a pátria, e no desejo de retorno a esta pátria. Entretanto, se comparada
com a nomenclatura de Suvin, a diáspora pode congregar tanto os refugiados
quanto os emigrados, não apenas por seu carácter colectivo, que a diferencia do
exílio, mas também pelo facto de que sua origem pode ser tanto politica quanto
económica. Ainda segundo Suvin, o retorno é uma possibilidade remota para refugiados
e emigrados. Este ponto afasta os refugiados e emigrados, na análise de Suvin,
do conceito de diáspora formulado por Safran e citado por Clifford, ao mesmo
tempo em que os aproxima da noção de Peters, muito mais interessado em redes
formadas no país anfitrião pelas comunidades diaspóricas do que na fixação
sobre um projecto de retorno ao país natal.
O que se depreende das complexas
inter-relações apresentadas acima e que os exilados, refugiados e emigrados
podem, eventualmente, no âmbito de determinadas circunstancias, estabelecer
colectividades diaspóricas. Isto depende enormemente da forma com que os agrupamentos
formados no exterior interagem com as causas que os levaram a deixar a sua terra
natal e com as relações estabelecidas no país anfitrião. Em certo sentido, a
dificuldade de se traçarem fronteiras exactas entre o exilio e a diáspora e
compensada pela possibilidade de se pensar que esta última pode trazer a
experiência do exílio uma leveza que e negada toda-vez que o pesar
pela perda (temporária ou não) do contacto
com a pátria ocupa todo o espaço experiencial daqueles que vivem longe da terra
das suas memórias mais estruturantes. Por esta razão, muitos dos pensadores que
analisam os deslocamentos humanos tendem, hoje, a concordar com a noção de que
o exílio criou relações históricas com o nacionalismo, que pode se tornar o
companheiro ideal para a xenofobia, ao passo que a diáspora se aproximou, nas décadas
mais recentes, das relações transculturais e transnacionais. Enquanto o estudo
dos movimentos humanos sistematizou-se a partir do surgimento de novas
disciplinas no campo das ciências humanas, como a antropologia e a sociologia,
e do fortalecimento de outras mais antigas, como a história e a geografia, a
relação entre tais movimentos e deslocamentos e a literatura remonta à Antiguidade
ou, talvez, aos primórdios da escrita». In Anderson Bastos Martins, Onde Fica o
Meu País?, O exílio e a migração na ficção pós-apartheid de Nadine Gordimer,
Tese, Universidade F. de Minas-Gerais, Faculdade de Letras, Brasil, 2010.
Cortesia
da UFMGerais/JDACT
Ciência e Experiência. Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel. Moura Barbosa. «… acerca da unidade primordial, semelhante nostalgia, senão, pelo contrário, uma perfeita satisfação e quietude dentro daquela certeza que os levaria a ver um conhecimento no que não era mais que aparência. Na sua aparência, o real, onde tudo se reunia…»
«O
que vive é indestrutível, permanece livre em sua forma de servidão mais
profunda, permanece uno e, mesmo que o divida até o fundo, permanece
invulnerável, e mesmo que o despedace até a medula, seu ser escapará vitorioso
por entre as mãos». In Hölderlin
A
transformação do conceito de Natureza e a constituição da experiência moderna
«Outrora
tinham [os homens] um céu dotado de vastos tesouros de pensamentos e
imagens. A significação de tudo que existia estava no fio de luz que o unia ao
céu; então, em vez de permanecer neste [mundo] presente, o olhar deslizava além
rumo à essência divina: uma presença no além, se assim se pode dizer»
«Essa passagem do Prefácio da Fenomenologia
do espírito é um ponto de partida adequado para uma exposição da
concepção cosmológica dos antigos. O universo, em tal tempo antigo, possuía um
sentido determinado; nada na sua natureza lhe escapava, pois possuía o comum
em sua essência. A filosofia buscava essa essência transcendente e
significativa das partes na totalidade iluminada pela razão (lógos), a qual compartilhava da mesma
luz com as estrelas. Tudo o que o homem abarcava com sua visão possuía sentido
e era-lhe, ao mesmo tempo, espantoso e comum; a este comum, que
em tudo visava, denominou-se princípio
(arkhé). Dessa forma, a natureza possuía uma ordenação substancial
própria, o que lhe conferia não só uma harmonia, mas também uma beleza. Tal
ordenação e racionalidade garantiam a conformidade entre o pensar e o ser,
assim como entre o conteúdo e a forma, ou ainda, entre o espírito e a natureza,
conciliados de forma intuitiva e imediata no lógos. Por isso, não se
perguntava propriamente pela necessidade de tal síntese, pois esta era uma
evidência. Sendo assim, os filósofos
antigos não sentiam, como os românticos modernos, acerca da unidade
primordial, semelhante nostalgia, senão,
pelo contrário, uma perfeita satisfação e quietude dentro daquela certeza que
os levaria a ver um conhecimento no que não era mais que aparência. Na sua
aparência, o real, onde tudo se reunia, dava-se essencialmente: tudo é um, ou como afirmava Parmênides, o mesmo é pensar e ser, que seria a
própria experiência da totalidade.
O pensamento grego, que principiou com a experiência do espanto (tò thauma)
frente à unidade da multiplicidade na natureza, conferia à visão um papel
importante, como assinala Aristóteles na Metafísica, e talvez
nisso resida a gravidade estética do espírito grego. De modo que possui
a visão, por um lado, um sentido sensível, estético, no seu sentido clássico de
aísthésis, presente na relação em que o mutável e o contingente se
apresentam aos olhos; por outro lado, apresenta-se também como visão noética e
intelectiva do que subjaz e transcende à multiplicidade, como unidade da mesma.
A visão possibilita uma relação essencial entre o homem e o seu mundo, através
da contemplação (theoría) do imutável no mutável. Deste modo, a teoria
ou a contemplação consistiria em colocar diante do espírito a unidade do que se
mostra múltiplo aos olhos, como um movimento do sensível ao inteligível. Nessa
busca essencial pela unidade, a experiência grega frente à natureza se
constituiu numa ontologia, cuja pergunta principal é pela entidade do ente, ou,
como afirma Aristóteles, a ciência do ente
enquanto ente. Faz-se premente o estabelecimento das bases ontológicas do
pensar, em que a natureza possuiria a forma determinada de uma totalidade
ordenada objectivamente, constituindo-se propriamente como um Cosmo.
Para
Hegel, os gregos concebiam uma unidade imediata entre espírito e
natureza, o que constituiria uma forma essencial no seu pensamento, no plano teórico; e de sua
sociedade, no plano prático, tendo por si tal unidade consigo mesma, como uma
intuição do Cosmo, que possui não só o sentido de uma harmonia preestabelecida,
mas também belo.
Como identifica Hegel: a fase da consciência
grega é a fase da beleza, beleza esta que brota do Espírito como idealidade
e pensamento constituindo a relação entre homem e natureza. Com isto, a
experiência grega gira em torno de uma idealidade estética, segundo a qual a
subjectividade no seu modo de ser ainda se vincula
imediatamente à natureza e ao sensorial, ainda que o transcenda
intelectivamente. Tal vinculação finda por concluir que o espírito grego ainda
não se representa a si mesmo (auto-conscientemente)
e não se constitui num mundo para si mesmo, a não ser intuitivamente. Nessa
unidade imediata, essência espiritual não seria algo estranho à natureza, mas
algo essencialmente relacionado com ela, e mesmo subsumido nela. Afirma Hegel: os gregos têm como base, como essência a unidade
substância da natureza e espírito».
In
Alexandre Moura Barbosa, Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do
espírito de Hegel, Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN
978-85-7430-970-5.
Cortesia
de EUniversitária/JDACT