domingo, 28 de setembro de 2014

Judeus. Inquisição. Sebastianismo. A Questão Judaica. Maria José Tavares. «… traduziam-se pela concessão de cartas régias que permitiam ao judeu fazer transportar-se em mula de sela e freio e a usar armas, sinais exteriores de uma hierarquia social superior à do povo comum»

Frontispício da bíblia sacra; século XV
jdact

A Questão Judaica (séculos XV-XX). Os Judeus em Portugal no século XV
A Sociedade Judaica
«(…) Na generalidade, elas integravam-se, lato sensu, no estrato popular, embora existissem famílias que viviam e se comportavam como nobres, usufruindo do estatuto de cortesãos e de vassalos do rei ou da família real. Integravam-se neste último grupo os arrabis-mores e suas famílias, de que destacamos os Negro (Ibn Yahia), ou os grandes mercadores/banqueiros, como os Abravanel ou os Palaçano. Na impossibilidade de conhecermos a estratigrafia social das comunidades, podemos dividi-la em função do privilégio pessoal, outorgado pelos monarcas portugueses, extensivo ou não, aos familiares e que não se compadecia com a queda em pobreza das famílias judaicas de linhagem antiga, dispersas pelo reino ou pela Península Ibérica, nem com a relativa secundarização do concelho onde algumas delas habitavam. E um facto que a proximidade ou o afastamento dos lugares preferidos pela corte de Quatrocentos era ocasião da maior ou menor incidência da protecção e favores régios e da nobreza cortesã. E estes manifestavam-se pela concessão dos privilégios, quer sociais, quer fiscais, quer de ambas as características. Daí que possamos dividi-los em judeus privilegiados e judeus não privilegiados, assimilados uns e outros aos poderosos/não poderosos e aos ricos e pobres, respectivamente. É provável que, apesar de o privilégio ser pessoal e de concessão régia, ele estivesse ligado ao prestígio de um dado indivíduo e da sua família, no interior da comunidade em que residia.
Sujeito à confirmação de rei a rei, pode ver o fim da sua existência com o falecimento do monarca outorgante ou do beneficiado, ou ainda com a queda em desgraça deste último junto daquele. Na generalidade, os nossos monarcas foram constantes nas suas preferências, pelo que temos dificuldade em detectarmos as quebras de protecção a um judeu favorito ou à sua família, como ocorreu por diversas vezes nos outros reinos Peninsulares, onde alguns judeus cortesãos chegaram a pagar com a própria vida o desamor régio. Em Portugal, o único caso conhecido respeitou à família de Isaac Abravanel, amigo dos duques de Bragança e de Viseu, pelo que foi acusado de conivente nas conjuras destes contra João II, ficando, por isso, com os bens confiscados, enquanto alguns dos seus membros fugiam para Castela. Os privilégios outorgados e definidores de qualidade social classificavam-se em dois grandes grupos:
  • privilégios de isenções fiscais e de aposentadoria, totais ou parciais; 
  • privilégios de distinção social.
Os primeiros isentavam uma minoria, geralmente rica e poderosa, do pagamento da totalidade ou não dos impostos que os indivíduos de credo moisaico deviam pagar ao rei, ao concelho e à comuna . Daí que eles se revelassem com um carácter opressivo para a comunidade que se via obrigada, através dos seus membros mais pobres, a repor os impostos devidos por aquela. Contra estes benefícios levantaram-se, ao longo de Quatrocentos, as vozes do povo miúdo das comunas e os nobres, usufrutuários dos direitos reais, que se sentiam, por vezes, lesados nos seus rendimentos com a concessão destas isenções fiscais. Aqueles lutavam por uma maior justiça distributiva no pagamento dos diversos tributos e encargos às comunas e aos concelhos. Com João I, os mesteirais e restante povo miúdo de algumas comunas importantes, como Lisboa e Évora, tinham obtido a permissão de elegerem dois representantes seus à câmara de vereação, de modo a estarem presentes na repartição dos impostos e à apresentação das contas pelos magistrados comunais. Por vezes, a oposição foi forte, como a que ocorreu em Lisboa, no tempo de Afonso V que forçou o monarca a revogar os privilégios concedidos.
Os privilégios de qualificação social tiveram o seu apogeu durante o governo deste soberano. Traduziam-se pela concessão de cartas régias que permitiam ao judeu fazer transportar-se em mula de sela e freio e a usar armas, sinais exteriores de uma hierarquia social superior à do povo comum, similar à da gente honrada. Recebem-nas os judeus cortesãos, privados do rei e da família real, e os servidores da nobreza ou do alto clero, além do grupo numeroso dos físicos e cirurgiões judeus. Nestes últimos, podemos ligar o privilégio à profissão desenvolvida; nos restantes, era, sem dúvida, uma distinção social, não só perante a sociedade judaica a que pertenciam, mas também perante a maioria cristã». In História de Portugal, João Medina, volume VII, Judeus, Inquisição e Sebastianismo, Maria José Pimenta Ferro Tavares, A Questão Judaica, SAPE, Ediclube, Alfragide, Mateu Cromo, Madrid, 2004, ISBN 972-719-275-0.

Cortesia de Ediclube/JDACT