«(…) O meu declínio foi precipitado pelos cinquenta minutos que eu passei com Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, de Alexander Soljenítsin, na nova tradução de Gillon Aitken. Eu comecei a ler o livro assim que acabei Octopussy de Ian Fleming. A transição foi dura. Eu não sabia nada dos campos de trabalho soviéticos e nunca tinha ouvido a palavra gulag. Tendo crescido numa catedral, o que é que eu sabia dos cruéis absurdos do comunismo, ou de como homens e mulheres corajosos em lúgubres colónias penais afastadas de tudo eram reduzidos a pensar dia a dia em nada além da sua própria sobrevivência? Centenas de milhares transportados para as estepes siberianas por terem lutado pelo seu país numa terra estrangeira, por terem sido prisioneiros de guerra, por terem irritado um executivo do Partido, por serem executivos do Partido, por usarem óculos, por serem judeus, homossexuais, camponeses donos de uma vaca, poetas. Quem estava denunciando a perda de toda essa parcela da humanidade? Eu nunca me tinha incomodado com política antes. Não sabia nada das discussões e da desilusão de uma geração mais velha que a minha. E também não tinha ouvido falar da oposição de esquerda. Além da escola, a minha educação tinha-se limitado a um pouco mais de matemática e pilhas de romances em edições baratas. Eu era uma inocente e a minha sensação de ultraje era moral. Eu não usava, e não tinha sequer ouvido, a palavra totalitarismo. Eu provavelmente teria pensado que tinha alguma coisa a ver com totalidades. Achava que estava vendo o mundo através de um véu, que estava desbravando novas fronteiras enquanto mandava as minhas mensagens de um front obscuro.
Numa semana eu já tinha lido O primeiro círculo, de
Soljenítsin. O título vinha de Dante. O seu primeiro círculo do inferno ficava
reservado para os filósofos gregos e consistia, a bem da verdade, num agradável
jardim murado
cercado por um sofrimento infernal, um jardim de onde era proibido fugir
para entrar no paraíso. Eu cometi o erro do entusiasta, de presumir que todos compartilhavam
a minha ignorância anterior. A minha coluna virou uma arenga. Será que a
presunçosa cidade de Cambridge não sabia o que tinha acontecido, ainda estava
acontecendo, a cinco mil quilómetros a leste, será que ela não tinha percebido
o dano que aquela utopia fracassada de filas para comida, roupas horríveis e
viagens restritas estava causando ao espírito humano? O que é que se podia
fazer? Quis?
tolerou quatro rodadas do meu anticomunismo. Os meus interesses se
estenderam até O
zero e o infinito, de Koestler, Bend Sinister, de Nabokov, e
aquele belo tratado que é The Captive Mind, de Miłosz. Também fui a primeira
pessoa do mundo a entender 1984 de
Orwell. Mas o meu coração ficava sempre com o meu primeiro amor, Alexander. A testa que se erguia como uma
cúpula ortodoxa, a barbinha passa-piolho, a autoridade austera que o gulag tinha-lhe
conferido, a sua teimosa imunidade aos políticos. Nem as convicções religiosas
dele conseguiam me deter. Eu o perdoei quando ele disse que o homem tinha
esquecido Deus. Ele era
Deus. Quem podia estar à altura dele? Quem podia negar-lhe o prémio Nobel?
Encarando a fotografia dele, eu queria ser a sua namorada. Eu teria sido uma
criada dele como a minha mãe foi do meu pai. Guardar as meias dele? Eu teria
caído de joelhos para lavar os pés daquele homem. Com a língua!
Naquele tempo, martelar as iniquidades do sistema soviético era
coisa rotineira para os políticos do Ocidente e os editoriais de quase todos os
jornais. No contexto da vida e da política estudantil, era só um tantinho de mau-gosto. Se a CIA estava contra o comunismo, devia ter
alguma coisa boa no regime. Certas secções
do Partido Trabalhista ainda tinham algum amor pelos monstros de cara quadrada
lá no Kremlin e pelo seu projectinho
macabro, ainda cantavam a Internacional na conferência anual, ainda
mandavam estudantes em programas de intercâmbio. Nos anos de pensamento binário
da Guerra Fria não era possível ver-se
concordando sobre a União Soviética com um presidente americano que estava em guerra no Vietname.
Mas naquele chá no Copper Kettle, Rona, sempre tão educadinha, tão perfumada,
tão precisa, disse que não era a política da minha coluna que estava incomodando.
O meu pecado era ser franca. A próxima edição da revista dela não tinha mais o
meu texto. O meu espaço foi ocupado por uma entrevista com a Incrível Banda de
Cordas. E aí a Quis? Fechou». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012,
ISBN 978-853-592-121-2.
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