«(…) Os navios mais pequenos já só são
necessários porque lá para o fim da fila já nem se consegue ver o
navio-almirante! Por isso, os pequenos servem para retransmitir os sinais das
bandeiras, e de resto para mais nada. Compare lá a montanha que é este navio
com aquelas corvetas ali. Tem noção de que só neste couraçado está reunida uma
floresta inteira de carvalhos? E depois mais uns quantos milhares de quilos de
ferro dos canhões. A tripulação, os víveres, a pólvora, o chumbo… É um milagre
que o navio flutue com tamanha segurança. O bote deteve-se. Ali estavam eles.
Os remadores recolheram os remos. Pelas escadas de corda que o comandante
mandara prender à amurada a bombordo treparam os guardas portuários para o
navio. Seguiu-se-lhes o fiscal da Inquisição (maldita). Conhecia-o? Antero examinou de passagem o rosto dele.
Não. Enquanto os marinheiros andavam descalços e até mesmo os oficiais do navio
mais não tinham nos pés do que calçado simples com atacadores, os sapatos dos
três homens exibiam dispendiosas e brilhantes fivelas. Ambos os guardas
portuários recolheram os respectivos chapéus debaixo do braço e esboçaram uma vénia diante do
comandante. Bem-vindo a Lisboa, senhor comandante. Enquanto isso, o terceiro
homem retirou do bolso, preso a uma corrente prateada, o seu relógio e, com um
ar carrancudo, olhou para o mostrador. As unhas dos seus polegares eram
pontiagudas e compridas. Antero olhou para ele com atenção. Aquele relógio era semelhante
ao seu, do mesmo modo que um ovo se assemelha a outro. Foi como se um prego em
brasa se lhe cravasse no cérebro. Tudo o que nele havia do francês de há pouco
evaporou-se por instantes. Era apenas e só o contrabandista, a ratazana que é
perseguida e encurralada. Tinham enviado um discípulo de Malagrida.
Um
lobo à caça, foi o pensamento que
passou pela cabeça de Antero. À excepção das invulgares unhas dos polegares, a
impressão criada pelo homem era a de alguém civilizado. Tanto o jaquetão como o
colete exibiam uma fila de botões de formato semiesférico. Das mangas da sua
casaca saíam punhos de renda, e em redor do pescoço havia um lenço branco. Os
discípulos de Malagrida tinham de se apresentar bem vestidos, afinal de contas
era nos melhores círculos que se moviam. Não deixavam, porém, de ser, na
verdade, feras sob disfarce. Por baixo do calção trazia vestidas meias até ao
joelho imaculadamente brancas. Usava ainda uma peruca. Não, o cabelo era mesmo
dele! Um homem que quisesse dar-se ao respeito jamais saía à rua sem uma
peruca. A opinião das pessoas não era com certeza algo que o preocupasse. Tinha
autoconfiança e era senhor de si mesmo. Antero não admitia atribuir este
encontro ao acaso. Dirigiu-se ao estranho. Permita-me que o cumprimente, a
pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. O meu nome é Jean. Sou passageiro
deste navio e esta é a minha primeira visita a Portugal. Que será que devo
fazer quando chegar ao porto? Deverei comunicar a minha presença algures? O
olhar impassível do estranho ficou preso no seu rosto. Que quer dizer com isso?
Em Portugal, segundo se diz, a Inquisição (maldita)
anda sempre no encalço das pessoas. Pronuncia-se sobre todo e qualquer passo
que se queira dar. Não quereria, logo de início, começar por fazer qualquer
coisa mal. Os marinheiros, agitados, faziam-lhe sinais. Os seus rostos estavam
lívidos. Antero não vacilou sequer. Acrescentou ainda: ouvi dizer que qualquer
um me pode denunciar. O meu próprio criado, o meu notário ou qualquer pessoa
que passa na rua, gente que eu nem sequer conheço. Isso é verdade? Melhor será
que se mantenha de boca fechada, homem, o estranho dirigiu-se ao comandante.
Nome e nacionalidade do navio? Chama-se Fortune, respeitável senhor, e é sob pavilhão britânico que navegamos. O comandante
Wrightson trouxe a manga até junto da boca e tossiu. O nome do proprietário? Adam
Bromley. Número de passageiros? Número de tripulantes? Um passageiro, trinta e
quatro marinheiros. Religião? Somos todos protestantes, à excepção de Robert
Scott, o grumete, esse é católico. O estranho inspirou vigorosamente». In
Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN
978-972-462-047-3.
Cortesia Cletras/JDACT