quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Dirigiu-se ao estranho. Permita-me que o cumprimente, a pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. O meu nome é Jean»

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«(…) Os navios mais pequenos já só são necessários porque lá para o fim da fila já nem se consegue ver o navio-almirante! Por isso, os pequenos servem para retransmitir os sinais das bandeiras, e de resto para mais nada. Compare lá a montanha que é este navio com aquelas corvetas ali. Tem noção de que só neste couraçado está reunida uma floresta inteira de carvalhos? E depois mais uns quantos milhares de quilos de ferro dos canhões. A tripulação, os víveres, a pólvora, o chumbo… É um milagre que o navio flutue com tamanha segurança. O bote deteve-se. Ali estavam eles. Os remadores recolheram os remos. Pelas escadas de corda que o comandante mandara prender à amurada a bombordo treparam os guardas portuários para o navio. Seguiu-se-lhes o fiscal da Inquisição (maldita). Conhecia-o? Antero examinou de passagem o rosto dele. Não. Enquanto os marinheiros andavam descalços e até mesmo os oficiais do navio mais não tinham nos pés do que calçado simples com atacadores, os sapatos dos três homens exibiam dispendiosas e brilhantes fivelas. Ambos os guardas portuários recolheram os respectivos chapéus debaixo do braço e esboçaram uma vénia diante do comandante. Bem-vindo a Lisboa, senhor comandante. Enquanto isso, o terceiro homem retirou do bolso, preso a uma corrente prateada, o seu relógio e, com um ar carrancudo, olhou para o mostrador. As unhas dos seus polegares eram pontiagudas e compridas. Antero olhou para ele com atenção. Aquele relógio era semelhante ao seu, do mesmo modo que um ovo se assemelha a outro. Foi como se um prego em brasa se lhe cravasse no cérebro. Tudo o que nele havia do francês de há pouco evaporou-se por instantes. Era apenas e só o contrabandista, a ratazana que é perseguida e encurralada. Tinham enviado um discípulo de Malagrida.
Um lobo à caça, foi o pensamento que passou pela cabeça de Antero. À excepção das invulgares unhas dos polegares, a impressão criada pelo homem era a de alguém civilizado. Tanto o jaquetão como o colete exibiam uma fila de botões de formato semiesférico. Das mangas da sua casaca saíam punhos de renda, e em redor do pescoço havia um lenço branco. Os discípulos de Malagrida tinham de se apresentar bem vestidos, afinal de contas era nos melhores círculos que se moviam. Não deixavam, porém, de ser, na verdade, feras sob disfarce. Por baixo do calção trazia vestidas meias até ao joelho imaculadamente brancas. Usava ainda uma peruca. Não, o cabelo era mesmo dele! Um homem que quisesse dar-se ao respeito jamais saía à rua sem uma peruca. A opinião das pessoas não era com certeza algo que o preocupasse. Tinha autoconfiança e era senhor de si mesmo. Antero não admitia atribuir este encontro ao acaso. Dirigiu-se ao estranho. Permita-me que o cumprimente, a pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. O meu nome é Jean. Sou passageiro deste navio e esta é a minha primeira visita a Portugal. Que será que devo fazer quando chegar ao porto? Deverei comunicar a minha presença algures? O olhar impassível do estranho ficou preso no seu rosto. Que quer dizer com isso? Em Portugal, segundo se diz, a Inquisição (maldita) anda sempre no encalço das pessoas. Pronuncia-se sobre todo e qualquer passo que se queira dar. Não quereria, logo de início, começar por fazer qualquer coisa mal. Os marinheiros, agitados, faziam-lhe sinais. Os seus rostos estavam lívidos. Antero não vacilou sequer. Acrescentou ainda: ouvi dizer que qualquer um me pode denunciar. O meu próprio criado, o meu notário ou qualquer pessoa que passa na rua, gente que eu nem sequer conheço. Isso é verdade? Melhor será que se mantenha de boca fechada, homem, o estranho dirigiu-se ao comandante. Nome e nacionalidade do navio? Chama-se Fortune, respeitável senhor, e é sob pavilhão britânico que navegamos. O comandante Wrightson trouxe a manga até junto da boca e tossiu. O nome do proprietário? Adam Bromley. Número de passageiros? Número de tripulantes? Um passageiro, trinta e quatro marinheiros. Religião? Somos todos protestantes, à excepção de Robert Scott, o grumete, esse é católico. O estranho inspirou vigorosamente». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «O bote passou junto de um batelão carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser transportados para a margem»

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«(…) A luz do Sol causava na água, de um verde-azulado, a cintilação própria de um diamante. Entre os imponentes bojos dos navios, as gaivotas baloiçavam sobre as ondas, como se estivessem à espera de alguma coisa. Os guardas portuários olhavam atentamente para o navio que tinham em frente. Conseguiam ver Antero, de pé, encostado à amurada. Eis que chegara a hora decisiva. Teria agora mesmo de se fazer passar por um viajante francês, forçando o contrabandista ao exílio nos recantos mais profundos da sua consciência. Antero respirou fundo. Como veria um visitante de França o porto de Lisboa? Um visitante que aqui tivesse vindo pela primeira vez? Com um ar curioso, debruçou-se sobre a amurada. Olhou em redor, enquanto assobiava baixinho uma melodia francesa. Em redor do Fortune estavam fundeadas embarcações de carga, holandesas, chamadas fluyts e esbeltas pinaças francesas. Para as bandas do porto militar, conseguia ver fragatas e um couraçado recheado de canhões. Mais atrás, quatro corvetas eram embaladas pelas vagas. Ao longe, a frota do Brasil aguardava. Seriam possivelmente uns cinquenta navios, sobretudo galeões, cujos castelos da popa se erguiam em altura, bem acima do nível das águas. Ao pé destes, as naus e caravelas, mais pequenas e mais antigas, tinham um aspecto miserável. Nas proximidades, a escolta, formada por oito imponentes navios de guerra, velava por todas essas embarcações. Quando vinha do Brasil, um comboio daqueles deveria valer alguns sete ou oito milhões de coroas de ouro. A protecção da escolta era uma necessidade. Só formando uma flotilha poderiam os navios resistir aos ataques dos piratas.
A Companhia do Comércio do Brasil trocava pau-brasil por farinha, vinho, peixe seco e azeite, que depois eram levados para o Brasil. Outros comerciantes, que, com os seus navios, se haviam juntado ao comboio, traziam açúcar das plantações de cana, para além de cacau, peles de bovinos e ouro. Os bens que abasteciam um território inteiro eram transportados por mar. Antero conhecia bem esse negócio. Voltava-se sempre à discussão sobre se não seria melhor acabar de vez com o comboio. As desvantagens daquele procedimento eram óbvias: quando os navios chegavam a Portugal, eis que o mercado ficava por algum tempo saturado com os produtos vindos do ultramar. Quem ousasse encetar a viagem sozinho, numa outra altura do ano, poderia, com os mesmos produtos, ver os seus ganhos multiplicados. Ou então quem ousasse contrabandear, ao arrepio de todas as determinações, proibições e cobranças de impostos. Antero forçou-se a reprimir tais ideias. Não poderia agora, enquanto desempenhava aquele papel, cometer quaisquer deslizes. Distendeu os membros e fingiu observar o bote dos guardas portuários sem qualquer medo, sem se deixar tomar pela sensação que nem sequer deveria olhar nessa direcção.
O bote passou junto de um batelão carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser transportados para a margem. Os guardas portuários examinaram-nos com um ar severo. Os tonéis poderiam conter fosse o que fosse: peles, vinho, especiarias, azeite, ou cereais, mercadorias descarregadas de um navio mercante. Ou estavam vazios e iriam ser enchidos com água potável e provisões. Está a ver aquele couraçado ali?, o carpinteiro de bordo chegou-se junto dele. Três cobertas, noventa e oito canhões. É uma loucura, não é? Em tempos, ainda se faziam abordagens aos navios inimigos em alto mar. Hoje em dia, navegam por aí esses colossos. Mas ainda acontecem abordagens, os piratas… Disparate! Já ninguém pensa em abordagens. As frotas colocam-se uma em frente da outra, formando duas longas filas de navios, colocou as palmas das mãos uma junto da outra. Depois desatam as bocas-de-fogo a disparar, até que um dos lados se retire, por já ter os mastros a voarem-lhe junto das orelhas. Ah, sim… Surpreendente». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Não restava um tabique, um fio de bragal; o fogo apenas poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinham rolado sobre os charcos do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo»

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«(…) Porém, Maria precipitou aquele enredo, escapulindo-se de casa, para reclamar o seu lugar no novo lar que lhe competia. Não recebeu aplausos por isso, se bem que Francisco Teixeira não resistisse a aceitá-la com honras de noivado. Ele desacompanhava-a muito, deixava-a sozinha na casa, que ela percorria vagarosamente, empunhando a candeia, cuja luz vacilante aplicava nos recantos, no patamar da adega, onde se situavam as talhas do azeite, sobre calços de vimieiro. Se ele não chegava, deitava-se sem cear; se ele vinha e dizia, com uma voz acobardada: já comi, Maria ia lançar o seu caldo no bocal de madeira esbeiçado de lavagens e que comunicava com a pia dos porcos, em baixo, sob a cozinha que estava em construção. Porque a casa tinha totalmente ardido. Não restava um tabique, um fio de bragal; o fogo apenas poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinham rolado sobre os charcos do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo que acorria com escudelas de água e cântaros que pareciam pairar magicamente à cabeça das mulheres. Acontecera pouco tempo depois da chegada de Maria. Ela sentara-se, exausta, na velha mó de lagar de azeite que estava meio tombada na margem da eira, e olhara os escombros donde o fumo subia misturando-se com a névoa da madrugada. Tinha apenas uma saia mal acolchetada sobre a camisa, e tiritava. Os moços moviam-se à sua frente, enfarruscados pelo travejamento que desabara e sobre o qual pulavam, e que ardia ainda com um serpear de lume no cerne seco; Narcisa Soqueira, vizinha muito afecta à casa da Vessada, chorava, cirandando, seminua, um ombro esquálido aparecendo pelos rasgões do velho chambre.
Ah, mulher, mulher! Isto foi a amiga do teu Chico, que é fêmea que o diabo enjeitava, disse-lhe, muito sufocada de aflição. Cantés, murmurou Maria. E voltou o rosto das paredes calcinadas, junto das quais a grande meda de palha centeia se consumira, ficando apenas a armação de ferro onde a velha pintura escamara, derretendo em gotas vermelhas sobre as lajes. Francisco Teixeira não voltara ainda. E ali estava aquela jovem mulher, cujas feições contraídas, porém, frias, se desenhavam na esverdeada luz da madrugada; não confiava uma emoção à turba que a rodeava, que ia e vinha, num afadigado fervor de auxílio, que se aproximava na timidez daquela dor que não sabia como aliviar, e se afastava sem ter proferido senão palavras bruscas e banais, vexada pela própria impotência, desejando apenas distrair-se da desgraça que não podia vencer. Maria não chorava. Com a palma da mão arrepiava às vezes os cabelos frisados das fontes e que lhe descaíam sobre os olhos; o seu coração estava fechado, porém na expectativa de alguma coisa que nele renovasse a felicidade, pois ela pertencia a essa casta rara e invencível dos que, a par da mais crua teoria do pessimismo, se mantêm fiéis à esperança, e que mesmo na morte não sucumbem. Francisco Teixeira veio então, sem se apressar muito em se chegar, alisando-lhe as pregas do xaile, como se, com esse gesto humilde e repetido, quisesse definir um arrependimento.
Eu tinha pensado já fazer umas obras..., disse. Ainda bem que estou aqui para vigiar isso, contestou Maria. O seu tom possuía a nota irónica que nela testemunhava bom humor e generosidade. As contas estavam saldadas. Assim, ela confessava que o amava através de todos os incidentes e catástrofes, todos os esquecimentos e abandonos. Morreria muito velha e, com a idade, a mente havia de se debilitar, provocando-lhe arrazoados vagos, atropeladas recordações, esse viver retrospectivo cheio de visões passadas, de factos e pessoas mortas. Mas o seu homem estava sempre presente junto dela, vivendo as suas seduções, fazendo-a vibrar em cuidados e penas, como quando ela era jovem e se entregava às suas íntimas batalhas de cólera e de perdão. Que culpa tinha ele de ser bonito?, dizia, tomada duma filosofia gracejadora e doce. E, avistando da janela o filho que tomava o caminho dos lameiros, num dia outoniço em que chovia, alarmava-se, julgando que era Francisco Teixeira que partia desprevenido de abafos. Vai-se molhar todo, o meu Chico. Levem-lhe um capote, porque se vai molhar. No entanto, havia quarenta anos que ele tinha morrido». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente qualquer solução»

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«(…) Partiam estafetas com ordens e avisos, e, entre suspiros de cólera, as vendedeiras salgavam nos alguidares de barro os tremoços, dispondo, nas mesas adornadas com um ramo de cravos bravos da Índia, os copos embaciados onde vertiam limonadas e refrescos de aguardente. Os foguetes explodiam, deixando no ar pompons de fumo alvo que lentamente se deslocava e diluía. Quem é o homem?, disse Isidra. Fechara o leque sobre o regaço, repuxando as suas mitenes de malha de seda preta. Olhava Francisco Teixeira, viu como ele, esgotando os adversários, se detivera no largo varrido, verificando a solidez do varapau, que varava o ar com silvos prolongados. Depois, calmo, afastou-se por entre a multidão, e nem uma vez se voltou. Isidra ficou-se na escada até tarde, batendo, absorta, com o leque nos joelhos, fixando os copinhos de papel escarlate que balançavam suspensos por barbantes e às vezes ardiam, despenhando-se as fagulhas sobre a praçazinha coalhada de povo. Na sala, atrás de si, as senhoras bebericavam chá, comunicando-se as receitas dos acepipes que provavam com suaves estalinhos de língua, de aprovação, de entendimento, de gula. Eram mulheres que se espartilhavam em barbas de baleia, sinistramente iguais, e que usavam ganchos bafientas sobre os cabelos que pareciam brunidos, penteados com o único intuito de ficarem arrumados. Vem para dentro, menina. Olha esse relento. Sobre os tremós cintilavam os pingentes dos candeeiros onde se derretiam as velas. Um largo espelho de caixilho de esmalte branco com filetes de oiro reflectia aquela reunião, os homens medonhos, com coletes acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e da política, as santas criaturas que cochichavam agravos de parentela e de criados, empinando pelas ventas dedadas de rapé. Isidra entrou na sala, mordiscou uma cavaca, chegou-se ao piano, onde apoiou o indicador, experimentando uma escala. Vida estuporada!, disse. O fidalgo de Lago, negro como um moiro e que explicava o loiro dos filhos pelo processo de lhes banhar a cabeça com cerveja quando nasciam, observou-a de través. Odiava os de Borba, parentes seus, rivais na opulência das casas, na excentricidade, nas espaventosas histórias de cavalos e de mulheres. Famoso ninho que tais pegas dá, falou, para si, como costumava dizer, com essa espécie de espírito que era como um atributo da sua cólera. Isidra captou a frase, sem a ouvir. Quando, logo depois, ele lhe perguntou, com um ressaibo de velha galantaria, quase lânguido, se ela gostava de versos, Isidra disse-lhe, com uma arrogância fria, sem mesmo o olhar: versos? Meta-os pelo rabinho acima… O de Lago passou a temê-la, o que, dizia Isidra, era muito melhor do que se a respeitasse. Caprichou a moça nos seus amores com Francisco Teixeira. Era fogosa e indomável, e, passados os primeiros arroubos da conquista, ele fatigou-se dos seus repentes de despeito, das suas juras que previam desagravos de traições, das suas corridas pela quinta, que ela atravessava noite alta para comparecer aos encontros, embuçada numa mantilha de renda de lã negra, os cabelos escorrendo-lhe pelas costas, pesados, trazendo enredadas as gavinhas secas que se desprendiam dos lódãos. Ela não o amava, apenas se lhe entregava por desafio ao nome que comprometia, pois à vertigem da sua queda sucedera a preocupação pelo seu orgulho. Francisco Teixeira enfadou-se depressa daquele temperamento tão viril, daquela voz ferina e fria que lhe impunha ordens e que, no fim de contas, o desfrutava. Gostava das mulheres submissas, mansas, que o admirassem sem jamais adquirirem a confiança de especificar, decompor, calcular, essa admiração. Mas Isidra ia ser mãe, e ele receava-a. Talvez para evitar a tentação daquela imperiosa criatura cujos ardores, cujos olhares terríveis o venciam e cuja fortuna lhe parecia um subsídio notável para uma vida de camarilha com arruaceiros e ciganas, ele casou precipitadamente com Maria. Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente qualquer solução, e o facto de se ligar irremediavelmente a Maria representasse um golpe de defesa que corrigiria muitos dos desvarios a que se sabia sujeito. Este traço do seu carácter transmitiu-se depois a quase todos os filhos, e podia definir-se pelo estilo hamletiano, o choco de indecisão, a cobardia da violência, que se resgatam de súbito com um acto que transcende toda a razão». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Mas a luta embraveceu, magotes como vagas chocaram-se, confluindo das margens do largo, ouvia-se entre gritos o seco rumor dos paus que embatiam»

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«(…) Sua mãe, nascida numa dessas fidalguias broncas onde os rebentos fêmeas sofrem o desprezo paterno, criara-se pelos casebres dos caseiros, entre a canzoada dos perdigueiros e filhotes de labrego, na promiscuidade das cozinhas térreas onde a fumaça se enovela para a cura do fumeiro, onde a vida do campónio se concentra, onde se come, se projectam tarefas, se louvam e se maldizem os amos, o tempo, as crias, o próprio Deus. Só com dezoito anos a rapariga foi chamada ao solar, a coabitar com os irmãos. Era analfabeta, e tinha como divertimento predilecto o aproximar-se à socapa dos cães que lambiam nas escudelas o caldo de abóbora, e cortar-lhes com um podão as caudas que abanicavam. De resto, bonita, de pele clara, com sinaizinhos negros distribuídos com mimo pelas faces. Dizia milhão em vez de milho, vestia-se como uma imagem de andor, com muito gosto pelos vidrilhos, as sedas bordadas, não hesitando em retalhar as velhas colchas orientais, para franzir uma saia. Ainda não atingira a maioridade, apareceu grávida. O pai zurziu-a a rebenque de baleia, cruzando-lhe vergões empolados e azuis, dos ombros até às ancas; os seus uivos atravessavam as enormes salas consecutivas cujos reposteiros de damasco as crianças tinham denegrido, e as servas ficavam-se nos corredores, arrepiadas de susto, rezando baixo e correndo em debandada quando ouviam no patamar o estrupir das botifarras dos fidalgos novos que chegavam da caça, um tanto bêbados, altercando entre si. Um ano depois, a moça foi entregue em casamento a um proprietário rico que a aceitou, escurecendo o percalço havido com o dote fabuloso que a acompanhava. O povo recordava ainda a baixela de prata que carregava uma cibana e cujo peso fazia oscilar o andamento dos bois. Não foi feliz, a pobre. Sete anos depois nascera-lhe Isidra, e, um pouco além dessa data, ela morrera, no recolhimento da sua alcova, assistida apenas pelo capelão, um homenzinho untuoso e triste e que mascava tabaco, bufando escarros negros nas bacias onde boiavam compressas sujas de vinagre. A clausura fizera-a doente, vivia mergulhada em banhos de farelos, o seu hálito tinha um odor de drogas, e os dentes tinham-lhe caído. O marido chamava-lhe senhora, fingindo desconhecer que ela troçava dele e lhe punha alcunhas sórdidas, porque sempre lhe foi odioso e gostava de o vexar lançando-lhe em rosto a sua fidalguia, a sua casa de Borba, enorme, com salões revestidos de chumbo e carrancas de pedra na extremidade das varandas. Dizia-se que um dos próprios irmãos a desflorara e que ela o amava ainda, com desafio, e, pronunciando-lhe o nome, chorava, revendo a sua galhardia, o seu talento para esporear cavalos, fazendo-os caracolear, com placas de espuma sanguinolenta sob a espora de prata.
Isidra, com vinte anos, era designada como boa estampa, pelo avô. Era grande, com esses olhos sombrios e um tanto vítreos que a palidez dum rosto favorece. Fora sempre relutante à educação, falava mal, gostando de desorientar os homens com a sua bruteza de linguagem e rindo-se quando eles, tolhidos de espanto, enrubesciam. Conhecera Francisco Teixeira numa tarde de romaria que ela presenciava da sacada aberta sobre o largo da povoação em festa: vestida de tafetá negro, sem jóias, a trança dos cabelos um tanto solta nas espáduas, abanava-se com um grande leque de moiré e azeviche, contemplando com o olhar indolente a procissão que descia do adro, as torres dos andores oscilando, com as suas fitas e as suas palmas de papel tremendo e voando entre as copas poeirentas das acácias. Subitamente, um redemoinho de desordem ferveu, alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do poviléu, e o escândalo ainda morno, ainda lento, das mulheres, que reajustavam na nuca os lenços de algodão e buscavam no poial das portas um degrau seguro para abrigadamente presenciarem. Mas a luta embraveceu, magotes como vagas chocaram-se, confluindo das margens do largo, ouvia-se entre gritos o seco rumor dos paus que embatiam, estalavam, eram lançados longe, caindo sobre as tendas ou os arraiais das louceiras. E, então, numa clareira que se foi desenhando mais vazia, mais circular, destacou-se o pequeno vulto de Francisco Teixeira que avançava, grave e tranquilo, repelindo à sua volta o eriçado dos marmeleiros que combatiam, iam cedendo, recuavam, dispersando-se nas alas da multidão que se agitava, ondulando como um corpo que voga na maré. Havia sangue; os andores tinham parado na ladeira e os anjos choravam, não se atrevendo a abandonar o posto, suados sob as vestes debruadas com pele branca, de coelho, as botas amarelas de dusaque muito atufadas na poeira. Sob o pálio, o abade, recolhido, mansamente esperava, entre as opas vermelhas cujas pregas o sol riscara de violeta e as filas de crentes ajoelhados sobre os lenços de bolso. Então essa guarda?, impacientavam-se os mesários». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «E eu não tenho medo do Juízo Final. Por Alá, o que estás para aí a dizer? Peço-te que te levantes!»

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«(…) Com uma tigela de açorda na mão e de rosto coberto por um véu azul-celeste, Aischa dirigia-se ao casebre de Abdalah, que ficava encostado à muralha, perto da bâb al-khawkha, a Porta situada nas imediações da muralha interior da alcáçova e que abria para o arrabalde ocidental. Abdalah cegara totalmente e sentia-se tão fraco, que raramente deixava o leito. Lá chegada, Aischa abriu a porta e entrou na única divisão do casebre de madeira. Vieste outra vez, meu anjo?, perguntou Abdalah do seu catre, estendendo-lhe as mãos, que ela afagou nas suas. Alá o Misericordioso manda um anjo alimentar-me! Deixa-me aquecer-te a açorda. Depois de se livrar do véu, a moça sentou-se num mocho em frente à lareira. Com uma tenaz, espalhou as brasas e pousou a tigela de barro sobre elas. O dia do Juízo Final aproxima-se, balbuciou Abdalah. Alá o Sublime vai julgar entre os vivos e os mortos. Eu estou preparado. Aischa arrepiou-se. Irei ao encontro de meu pai, prosseguiu o ancião, com um sorriso nos lábios. E juntos percorreremos as ruas da Qurtuba antiga, onde viviam os sábios e os ricos em ruas iluminadas durante toda a noite, onde se tecia seda com fios de ouro, onde se manufacturavam baixelas de ouro e prata...
Enquanto ele assim pairava e a açorda aquecia, os pensamentos de Aischa tornaram a concentrar-se na história que o irmão Rashid lhe tinha contado: no dia em que os cristãos descobriram a grande matmúrâ, um dos cruzados aproximara-se sozinho do esteiro, a fim de lavar as mãos e a cara! Rashid e os seus companheiros, por sobre as muralhas, nem queriam acreditar no que viam. Alguns estiveram mesmo prestes a disparar as suas setas. Mas a calma e a coragem que o maju demonstrara, acabara por lhe salvar a vida. Ninguém se atreveu a disparar sobre um homem mal armado e que, pelo menos naquela altura, não mostrara qualquer instinto agressivo. Limitaram-se a observá-lo. Ali ficou ele, dissera Rashid, momentos infinitos, com os olhos fixos na Porta Férrea, até a água da maré cheia lhe chegar aos joelhos. Os cabelos compridos brilhavam-lhe como ouro ao sol! Estas palavras teimavam em não sair da cabeça de Aischa. Perturbavam-na tanto, que chegou a sonhar que havia subido às muralhas e deparado com a figura do estrangeiro de cabelos de ouro e as pernas enfiadas na água. E mal acordou, vieram-lhe as palavras da mãe à ideia: irás pertencer a um cruzado e vós os dois devereis guardar a cruz...
O sibilar de gotas de açorda fervente caindo sobre as brasas tirou-a daquele torpor. Com a ajuda de um farrapo, pegou na tigela e, depois de pôr uma segunda almofada atrás das costas de Abdalah, sentou-se sobre o catre e ajudou-o a comer. Entre colheradas, ele continuava a balbuciar sobre o fim do mundo e o tribunal de Alá. A açorda já estava quase no fim, quando ela notou uma excitação fora do comum na cidade. Cobriu-se de novo com o véu, chegou-se à porta do casebre e viu guerreiros que se precipitavam sobre o lanço de escadas que, junto à bâb al-khawkha, conduzia ao adarve. Do lado de fora das muralhas, vindos do arrabalde, ouviam-se gritos. Seria um ataque dos cristãos? E o que haveria ela de fazer? Abrigar-se no casebre? A periclitante construção de madeira não oferecia grande protecção, o melhor era fugir dali. Mas..., deveria deixar Abdalah sozinho? Aproximou-se dele e perguntou-lhe: consegues levantar-te com a minha ajuda? Desconfio que os cristãos abriram as hostilidades e estarias mais seguro em minha casa. Viu perplexa que Abdalah sorria e não fazia o mínimo esforço para deixar a enxerga. A que é que achas graça?, inquiriu. Não temos nada a temer. Como não? Tu és um anjo descido dos céus. E eu não tenho medo do Juízo Final. Por Alá, o que estás para aí a dizer? Peço-te que te levantes! Puxava-o pelos braços, mas não adiantava. Sozinha, seria incapaz de o arrancar dali. Resolveu ir procurar ajuda e tornou a cobrir-se com o véu azul-celeste. Os soldados que enchiam as ruas não lhe prestavam atenção, tão ansiosos estavam em alcançar o adarve ocidental. Alguns deixavam mesmo os seus postos noutros pontos da cidade. Aischa sentiu uma curiosidade enorme de ir ver o que se passava, mas não se atrevia. O melhor era mesmo regressar a casa. Abdalah era conhecido em toda a cidade e, se corresse perigo no seu casebre, alguém haveria de... Aischa?! Deu meia-volta e, ao deparar com o seu noivo Amir, o coração disparou-se-lhe. Amir ficava tão garboso na sua cota de malha, de espada à cinta, o elmo com protecção nasal e a besta na mão. Ele era até conhecido pela sua pontaria. Amir estava ainda hesitante, pois o véu tapava a cara da moça: és mesmo tu Aischa? Que estás aqui a fazer? Pensei que as mulheres estivessem todas abrigadas em casa». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Contava-se que Jesus Cristo lhe aparecera na noite anterior a uma batalha contra os mouros e lhe prometera a vitória»

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«(…) Já ninguém acalmava os cruzados eufóricos. Konrad e Hadwig suspiraram conformados. A cidade esconderia mesmo um tesouro subterrâneo? Iria o rei português autorizar um saque? Ninguém sabia respostas para estas perguntas. Mas todos estavam resolvidos a não arrancar pé dali, enquanto Lusbuna não estivesse sob poder cristão. El-rei convocou uma reunião com os quinze mil cruzados e os guerreiros portugueses. Como a sua mensagem seria traduzida pelos clérigos, que se espalhariam pelo campo, os estrangeiros deixaram as primeiras filas aos locais. Konrad misturou-se porém entre estes últimos. Não lhe interessava tanto a mensagem, como o homem por quem eles iriam lutar. Os súbditos de Afonso Henriques já o tinham elevado ao estatuto de lenda. E não só por ele se ter libertado do jugo de seu primo Afonso VII, que se intitulava imperador de toda a Hispânia. Contava-se que Jesus Cristo lhe aparecera na noite anterior a uma batalha contra os mouros e lhe prometera a vitória. Por isso os portugueses se lançaram à luta, apesar de o seu exército contar com menos de metade dos guerreiros das tropas inimigas, comandadas por cinco reis mouros... E venceram!
Konrad conseguiu um lugar nas primeiras filas, que se apertavam em frente de um pequeno morro, o púlpito improvisado para o discurso. El-rei surgiu montado no seu cavalo castanho de sangue árabe. A seu lado, encontrava-se o bispo do Porto, Pedro Pitões, que traduziria as suas palavras em latim. Os fidalgos portugueses e estrangeiros posicionaram-se atrás deles, em jeito de escolta. A montada real estava coberta por uma manta branca, ornada em todos os quatro cantos com uma cruz azul, o brasão português. Em cima do cavalo, Konrad viu um homem alto e forte, que apesar do calor se apresentava completamente armado. Na sua cabeça pousava o elmo cónico com protecção nasal, que deixava o rosto livre. Konrad deu-se assim conta de um olhar escuro e autoritário e de um bigode preto. Em cima dos ombros largos caíam cabelos ondulados. A cota de malha, que quase lhe chegava aos joelhos, estava polida e reluzia debaixo da cota de armas branca, desprovida de mangas, e que apresentava sobre o peito a cruz azul de Portugal. O manto real, igualmente azul, era segurado sobre o ombro direito por uma fíbula de ouro. Botas de couro e acicates brilhantes completavam a figura do monarca. Esta aparição logo silenciou os portugueses, subjugados à veneração, transbordando de confiança cega. Este povo, pensou Konrad, atirar-se-ia para as labaredas eternas do inferno, fora esse o desejo de Afonso Henriques. Ele próprio admitia que a simples presença do homem impunha mais respeito do que a de outros vociferando palavras ameaçadoras. E quando Konrad ouviu a voz real, teve a certeza de que ela atravessava o vasto campo, troava sobre as cabeças de milhares de homens, ouvindo-se até às últimas filas. Como ele entendia um pouco do latim que o bispo do Porto emanava, traduzindo as palavras do seu soberano, percebeu que Afonso agradecia aos cruzados pela ajuda e prometia recompensas, glória e poder. Lembrou que o papa Urbano II, na sua pregação pelas primeiras cruzadas há cinquenta anos atrás, chamara a atenção para o facto de que o combate contra os mouros na Hispânia não poderia ser menos importante do que a conquista de Jerusalém. Afonso Henriques explicou como as tropas se deveriam distribuir no terreno e no fim Konrad, apesar de não ter entendido nem metade, quase jubilou com os outros, entusiasmado com o carisma e a voz do rei. Mas só quase! Ali, longe das muralhas e do feitiço que Lusbuna havia exercido sobre ele, aquele cerco representava uma perda de tempo nos seus planos.
Desobedecendo às ordens do pai, Aischa escapulira-se de casa. As mulheres estavam proibidas de sair, desde que os cruzados tinham chegado, mas a moça não achava que houvesse grande perigo. Apesar dos majus já se encontrarem junto à foz do Wâdi Tâjuh há uma semana, ainda não tinham montado cerco. Desconfiava-se até que não se entendiam com os portugueses, embora já tivessem desferido um rude golpe nos habitantes da cidade, ao descobrirem a maior matmúrâ que havia fora de muros. Agora, já ninguém conseguiria ir lá buscar as preciosas reservas, o que se podia revelar trágico em caso de cerco prolongado» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Quando nela entrou, Konrad arregalou os olhos. Os portugueses não tinham exagerado. Encontravam-se ali várias cargas de trigo e cevada, cântaros enormes de azeite, uvas-passas e figos secos»

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«(…) Era Lusbuna que o chamava? Que segredos esconderia a Porta majestosa? Assomava-se-lhe convidativa, dava-lhe a entender que se abriria, fosse ele suficientemente corajoso para se aproximar dela... Konrad! Deu-se conta da voz alarmada de Hadwig: enlouqueceste ou quê? Não te ponhas ao alcance dos besteiros mouros, homem! São conhecidos pela sua pontaria. Konrad virou a cabeça. O amigo estacara a umas trinta jardas dele, não se atrevia a avançar mais e insistia aflito: anda daí, antes que te espetem uma seta na barriga! Foi ao encontro de Hadwig, que suspirou de alívio e, achando que ele andava lento demais, o puxou colina acima, até alcançarem os outros, que seguiam agora para norte. Desceram até à ribeira que rodeava a próxima colina pelo poente, atravessaram-na e, em plena encosta, escondida atrás de umas silvas, lá estava a entrada para a tal matamorra. Quando nela entrou, Konrad arregalou os olhos. Os portugueses não tinham exagerado. Encontravam-se ali várias cargas de trigo e cevada, cântaros enormes de azeite, uvas-passas e figos secos. Estes últimos impressionaram especialmente os cruzados, pois nas suas terras os figos, assim como as laranjas que tinham visto nos pomares, eram raridades caras, só servidas às mesas de reis e fidalgos. Quanta riqueza, murmuravam os homens. Novamente cá fora, Konrad perguntou a Hadwig: também estás impressionado? Aqui há alimentos que cheguem para meses. Achas que nos podemos alimentar só de uvas-passas e figos? Os grãos só nos são úteis transformados em pão, assim só servem para dar às galinhas. E o que é que fazemos com o azeite? Bebemo-lo? Nós passámos por muitas aldeias, onde existem moinhos e fornos. Lá terias o teu pão fresco. E no rio há peixe com fartura, que certamente sabe bem frito em azeite. Quem é que pensa aqui em comida?, atirou Gunther, que acabara de sair do depósito. Se os habitantes dessa Lisbona guardam coisas tão preciosas fora das suas muralhas, o que não haverá lá dentro? É isso mesmo, concordou um outro companheiro. Os portugueses dizem que os mouros têm caves em casa, onde guardam tesouros. A cidade brilha, está cheia de tesouros, gritaram vários. Temos que ir buscá-los! Valha-vos Deus, vociferou Konrad. Acaso esqueceis que nem mesmo o rei admitiu saber quão ricas são as gentes de Lisbona?
Mas sabemos todos que os infiéis têm jeito para o comércio, atalhou um outro. E também lá vivem muitos judeus, acrescentaram uns quantos. Konrad tentava lembrar-lhes que em toda a Cristandade viviam judeus, não era uma novidade de Lusbuna, mas a sua voz foi engolida pelas outras: não esqueçamos as salinas! Não é o sal tão valioso como ouro? Ouro em pó encontraremos nós na areia, gritou Gunther. Assim como ela brilha! Sim, concordaram vários, ouro, à mão de semear! Enquanto os homens vociferavam esgazeados, Konrad perguntou a Hadwig: mas que bicho lhes mordeu? Imaginam eles tudo isso, ou têm razão? Quem sabe? Já ouvistes?, guinchou um soldado, que acabava de se juntar ao grupo. Os portugueses e os ingleses acham que Lisbona esconde um tesouro enorme! Temos que entrar nessa cidade e procurar o tesouro! Konrad resolveu novamente intervir: o rei português não quer ouvir falar de nenhum saque. E depois? Como é que ele nos poderá impedir de saquear a cidade, assim que os mouros estejam derrotados? É isso mesmo. Porque é que haveríamos de nos aventurar numa viagem perigosa, durante meses, se tudo com o que sonhamos está aqui ao nosso alcance? Fiquemos aqui! Conquistemos essa Lisbona!» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Sim, um dia reinariam em Córdova, mas Zulmira sabia que esse dia ainda não chegara. Às portas de Coimbra, ainda não tinham poder político e força militar…»

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Coimbra, Julho de 1116
«(…) Um dia, agregariam à sua volta as taifas de Sevilha, Badajoz, Mérida, Valência, Saragoça, Silves, e fariam renascer o magnífico califado andaluz. Zulmira sorrira no escuro, agradada. Agora, em Córdova já ninguém lhe virava a cara, como quando decidira casar-se pela segunda vez. Os influentes locais não haviam gostado, as principais famílias estavam satisfeitas com as benesses que recebiam do califa almorávida de Marraquexe e não desejavam perturbações. Hixam Hisn Abi Cherif, o primeiro marido de Zulmira, só fora tolerado pelos berberes almorávidas devido ao seu bom senso e à sua ausência de ambições, mas verem a viúva dele, e mãe das suas filhas, regressar à política de Córdova era uma intensa preocupação. A família de Hixam devia manter-se afastada do poder e da glória, pois o seu nome e as memórias que despertava eram uma trepidação desnecessária. O califado de Córdova desmoronara-se oitenta anos antes numa guerra civil sangrenta, a fitna, estilhaçando-se em pequenos reinos muçulmanos, que só os almorávidas, vindos de Marraquexe, haviam colado outra vez. Ressuscitar o velho califado era uma quimera louca e perigosa, resmungavam muitos cordoveses. Porém, Zulmira não pensava assim. As suas filhas Fátima e Zaida tinham origens reais. Do seu lado, eram bisnetas de Al-Mutamid, o rei-poeta de Sevilha; e do lado de Hixam eram ainda mais importantes. Embora o marido tivesse morrido, as filhas mereciam aspirar ao esplendor. Por isso, quando Taxfin, actual governador de Córdova, lhe começara a fazer a corte, Zulmira aceitara casar com ele. Com o seu segundo matrimónio, a família de Hixam reentrava no palco principal da antiga capital do califado. O Azzahrat abriu-se para ela de novo, como no passado longínquo, quando o seu pai governara a cidade. Zulmira ainda se recordava do harém de Ismail; dos núbios que esfregavam as costas de sua mãe, Zaida, em honra de quem dera o nome à sua segunda filha; dos mil criados que as cercavam; do brilho daquela vida faustosa. Depois da felicidade curta e pacífica que vivera ao lado de Hixam, na serra Morena, regressar ao Azzahrat como mulher do wali Taxfin era a prova irrefutável de que o destino podia ser imprevisível e duro, mas um dia erguia-a de novo ao lugar a que tinha direito.
Que se calassem os invejosos! Ela era neta de Al-Mutamid! Ela era filha de Ismail, antigo wali de Córdova! Ela era a mulher do actual governador, o wali Taxfin!. Ainda mais importante do que tudo isso, no passado ela casara com Hixam Hisn Abi Cherif, de quem tivera duas filhas! Fátima e Zaida eram as herdeiras dos árabes da Andaluzia, provenientes do Iémen e da Síria, que tinham erguido a mais fabulosa civilização que o mundo vira! Os seus antepassados haviam construído setecentas mesquitas em Córdova, entre as quais a maior do mundo árabe, e tinham sido os arquitectos do Azzahrat, que a todos fascinava! Haviam fundado bibliotecas com mais de cem mil livros e trazido a prosperidade às cidades da Hispânia, criando uma cultura rica e aberta, onde até os judeus podiam viver livremente junto de árabes e cristãos! Cem anos antes, Córdova fora o coração de uma maravilhosa época e Zulmira e as filhas eram as representantes dessa glória perdida!
Sim, um dia reinariam em Córdova, mas Zulmira sabia que esse dia ainda não chegara. Às portas de Coimbra, ainda não tinham poder político e força militar para se revoltarem contra o califa Ali Yusuf, ou para o matar. Era cedo. Contudo, era preciso saber ler as estrelas: esta súbita decisão de levantar o cerco e partir de Coimbra seria excelente para as suas ambições e de seu marido, Taxfin. O almorávida Ali Yusuf abandonava a cidade cristã sem a tomar e perdia prestígio e apoiantes. Fora esse o pensamento que tivera logo pela manhã, quando começaram os preparativos para a partida, e agora que via aquela tremenda confusão a tomar conta do acampamento, Zulmira sentia um secreto contentamento dentro do seu coração. Quanto mais balbúrdia, mais o califa Ali Yusuf se perdia. Um dia, contar-se-iam histórias sobre o fiasco que fora a expedição almorávida a Coimbra!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Tens porventura conhecimento do auto que levou a cena com o nome El-Rei Seleuco? Quer-me parecer que aí foi Luís Vaz longe de mais»

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Catarina Ataíde. Oaço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Certa tarde de Outono, bordava eu com as demais damas da infanta dona Maria na sala velha do Paço de Almeirim quando de súbito, e a propósito de nada, Sua Majestade, a Rainha, me perguntou: que novas tens desse teu poeta, dona Catarina Ataíde? Fiquei em sobressalto e as cores tingiram-me o rosto de uma vermelhidão tal que todas as damas repararam. Foi por Deus que as espirituosas e doutas irmãs Sigeia, Ângela e Luísa, bem como a minha boa amiga Paula Vicente, filha do mestre Gil, vieram em meu auxílio. Vendo-me assim alvoraçada, Ângela Sigeia e Paula Vicente foram de prestes buscar o alaúde, pondo-se a tanger bem alto, a fim de distrair a Rainha. Dona Catarina é astuta e tem por uso conhecer já a resposta para tudo o que pergunta. Entretinha-se, portanto, a pôr-me à prova. Acabado o recital, deu uma festa ao seu podengo Bejayo, que batia ruidosamente com a cauda no soalho, e tornou à conversa. O que sabes tu de Luís Vaz? Díz-me! Ora, Alteza, quase nada sei, além dos sonetos que me escreve e de que vós tendes conhecimento. Vistes por vossos olhos, Alteza, quão galante é Luís Vaz a poetar. Com efeito, dona Catarina Ataíde, não é porém à poesia que me refiro, mas ao carácter. Tens porventura conhecimento do auto que levou a cena com o nome El-Rei Seleuco? Quer-me parecer que aí foi Luís Vaz longe de mais. Fui colhida de surpresa. Luís Vaz nada me contara de tal auto. Só me falara a respeito de Lilodemo e dos Enfatriões e até me representar partes inteiras, como se estivesse no Pátio das Comédias, que muito bem me dispuseram.
Olhei de relance para Luísa Sigeia. Iria defendê-lo? Luísa dominava o latim e o grego e terminara havia pouco um poema, Sintra. Eu já prometera levar-lho a Luís Vaz, para que o lesse e sobre ele opinasse, mas não foi Luísa quem me salvou. Eu estava na sala, irrompeu Paula Vicente, com uma vénia. E se Vossa Alteza me permite, terei de discordar. Luís Vaz não pretendeu outra coisa que não levar a cena uma comédia à moda de Plutarco. São bem caçadas as personagens: Ambrósio, Lançarote, Frolalta, Martirn Chinchorro..., bem gostaria de ter estado em palco, actuando, como no tempo do senhor meu pai, o Plauto Português. Como ousava Paula Vicente contrariar a Rainha? Estás enganada, Paula Vicente, o senhor teu pai, o nosso muito querido mestre e amigo Gil Vicente, como bem sabes, posto que te encontras agora a compilar as suas obras, não pretendia magoar ninguém. No Auto da Visitação, por exemplo, celebra o nascimento de El-Rei, meu marido. Mas mesmo nas Barcas, em quem Tem Farelos, na Farsa de Inês Pereira, ou no último auto que escreveu, Amadis de Gaula, sabia fazer-nos rir com o picaresco saber popular das suas farsas e comédias. Lembro-me bem de como, a um tempo reproduzia a gíria atrevida das gentes desta terra e usava belas e saborosas alegorias que nos levavam a reflectir. Não é assim com Luís Vaz: disse-me a minha cunhada, a infanta dona Maria, que, tal como vós, assistiu à representação, que aquilo que ali se passou foi uma afronta. Veio de lá toda enxofrada! Confidenciou-me que o poeta escreveu o auto de um dia para o outro, em cima do joelho e por encomenda de Estácio Fonseca. Com tantos assuntos para levar a cena, foi precisamente dramatizar o tema doloroso do filho apaixonado pela mulher do pai». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «… esta foi a celeste fermosura da minha Circe, e o mágico veneno que pôde transformar meu pensamento»

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Catarina Ataíde. Oaço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Passei o mês de Março a rezar agradecida pelo milagre da Ressurreição, porém não foi Cristo que em mim venceu a morte, fui eu que das chagas fiz luz e da luz um lugar em que me aprazia flutuar. Luís Vaz mandou-me um soneto. Antes de o poder ler fui obrigada a entregá-lo à camareira-mor, que depois o levou ao mordomo, para o fazer chegar à Rainha. Afortunadamente, a Rainha não lhe viu mal algum, antes uma arte sublime de grande poeta, sobejando-lhe em talento o que lhe escasseava em linhagem. Pude por isso guardá-lo para mim. Sei-o de cor, verso por verso, palavra por palavra.

«Um mover d'olhos, brando e piadoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

um desejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;

um encolhido ousar; uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

esta foi a celeste fermosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento».

E nem os sábios conselhos de Joana me demoveram. Aquela sugestão de amor em tão delicado soneto que de mim fazia Circe, a feiticeira de Homero, foi transformando também meu pensamento. Todos os pretextos me serviam agora para me deslocar ao palácio dos condes de Linhares Estranham1ente, das duas vezes em que com ela me cruzei, lançou-me a condessa um olhar tão altivo e desdenhoso que quase me fulminou. Quando primeiro a vi, ainda me rugiu: então és tu Catarina, a filha de António Lima e de dona Maria Boccanegra, dama de Sua Majestade? É a ti que elogiam a beleza serena? Os seus olhos subiam-me e desciam-me dos pés ao toucado, detendo-se em particular nos seios e na cintura. E quando cuidei que era terminada a inspecção, percebi que me enganara: não se dando a condessa por satisfeita e desejando certificar-se com maior minúcia, sacou de uma lupa e tornou a mirar-me de alto a baixo, como a uma escrava em dia de mercado. Vacilei, mas ainda assim consegui responder-lhe: sim, senhora condessa, sabeis bem quem é meu pai: camareiro-mor do infante Duarte.
Tentei apagar da memória aquele encontro, mas o que não apaguei nunca foi o desassossego que senti em casa dos condes de Linhares: o jeito intenso, desalvorado e experimentado com que Luís Vaz me tocava com as costas da mão no rosto, segredando-me: de quantas graças tinha, a Natureza, fez um belo e riquíssimo tesouro; e com, rubins e rosas. neve e ouro, formou sublime e angélica beleza. E chamando-me depois ora Laura ora Beatriz, como Petrarca ou couro Dante, e conduzindo-me para junto da namoradeira no vão da janela, frente ao rio, e trazendo-me o brilho do rio para dentro dos olhos... Luís Vaz valia todos os riscos e perigos». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.


Cortesia de OdoLivro/JDACT

domingo, 18 de fevereiro de 2018

A Fugitiva. Anais Nin. «Quantas vezes o chamado era respondido, e as armas apresentadas à passagem de sua mão!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Alguém poderia pensar que Maman estava privada do gozo mais pessoal de tal prazer, mas não era assim. Os clientes de sua casa consideravam-na apetitosa e conheciam suas virtudes e vantagens sobre as demais mulheres. Maman sabia produzir um suco verdadeiramente delicioso para os banquetes do amor, que a maioria das mulheres tinha que fabricar artificialmente. Maman sabia dar ao homem a ilusão completa de uma refeição suculenta, algo muito macio para os dentes e húmido o suficiente para satisfazer a sede de qualquer um. Os clientes muitas vezes conversavam entre si sobre os saborosos molhos nos quais Maman sabia como envolver os seus petiscos rosados como concha, o retesamento de suas oferendas, que lembrava o couro de um tambor. A pessoa podia dar uma ou duas pancadinhas na concha redonda, era o suficiente. O aromatizante delicioso de Maman aparecia, algo que suas meninas raramente conseguiam produzir, um mel que tinha odor de conchas do mar e tornava a passagem para dentro da alcova feminina no meio de suas pernas um deleite para o visitante masculino. O basco gostava dali. Era emoliente, saturante, cálido e aprazível, um banquete. Para Maman, era um dia festivo, e ela dava o máximo de si. O basco sabia que ela não precisava de uma preparação longa. O dia inteiro Maman havia se nutrido com as expedições dos olhos, que jamais deslocavam-se para cima ou para baixo do corpo de um homem. Estavam sempre no nível da abertura das calças. Ela apreciava as amarrotadas, fechadas muito às pressas depois de uma rápida sessão. As bem-passadas, ainda não amassadas. As manchas, oh!, as manchas do amor! Manchas estranhas, que ela podia detectar como se carregasse uma lente de aumento. Ali onde as calças não haviam sido arriadas o bastante, ou onde o pén…, nas suas movimentações, havia retornado ao lugar natural no momento errado, ali jazia uma mancha preciosa, pois tinha minúsculas partículas cintilantes, como um mineral que houvesse derretido, e uma qualidade açucarada que engrossava os tecidos. Uma bela mancha, a mancha do desejo, ali borrifada como perfume pela fonte de um homem, ou colada por uma mulher muito ardorosa e aderente. Maman gostaria de começar onde um acto já havia ocorrido. Era sensível ao contágio. A manchinha a fazia ferver no meio das pernas enquanto andava. Um botão solto fazia com que ela sentisse o homem à sua mercê. Às vezes, em grandes multidões, ela tinha coragem de ir em busca e tocar. A sua mão movia-se como a de um ladrão, com incrível agilidade. Jamais era desajeitada ou tocava o lugar errado, mas ia directo ao lugar abaixo do cinto onde repousavam macias proeminências roliças e às vezes, inesperadamente, um bastão insolente. No metropolitano, em noites escuras, chuvosas, nos bulevares apinhados ou nos salões de baile, Maman deleitava-se em avaliar e chamar às armas. Quantas vezes o chamado era respondido, e as armas apresentadas à passagem de sua mão! Ela gostaria de ter um exército parado em formação daquele modo, apresentando as únicas armas que podiam conquistá-la. Em seus devaneios ela via esse exército. Ela era a general, marchando, condecorando os compridos, os bonitos, fazendo uma pausa diante de cada homem que admirava. Oh, ser Catarina, a Grande, e recompensar o espectáculo com um beijo de sua boca ávida, um beijo bem na ponta, apenas para extrair a primeira lágrima de prazer! A maior aventura de Maman fora um desfile dos soldados escoceses em certa manhã de Primavera. Enquanto bebia no bar, ela ouviu uma conversa sobre os escoceses. Um homem disse: eles pegam os jovens e os treinam para andar daquela maneira. É um passo especial. Difícil, muito difícil. Há um coupe de fesse, um balanço, que faz os quadris e aquela bolsinha que usam na frente do saiote balançar de um jeito certo. Se a bolsa não balança, é uma falha. O passo é mais complicado que os de um bailarino. Maman ficou pensando: cada vez que a bolsa balança e o saiote balança, os outros pendentes também devem balançar, ora essa. E o seu velho coração emocionou-se. Balanço. Balanço. Todos no mesmo compasso. Aquele era o exército ideal. Ela gostaria de acompanhar um exército daqueles em qualquer posição. Um, dois, três. Ela já estava emocionada o bastante com o balanço dos pendentes, quando o homem do bar acrescentou: e você sabe, eles não usam nada por baixo. Não usavam nada por baixo! Aqueles homens robustos, homens tão empertigados, vigorosos! Cabeças erguidas, pernas fortes nuas e saiotes, aquilo os deixava vulneráveis como uma mulher, ora». In Anais Nin, A Fugitiva, L&PM Pocket, Brasil, 2012, ISBN 978-852-542-654-3.

Cortesia de L&PM/JDACT

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A Fugitiva. Anais Nin. «Ela sugeria certas combinações. Era uma especialista, como um provador de luvas»

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«Era uma noite chuvosa, as ruas pareciam espelhos, reflectindo tudo. O basco tinha trinta francos no bolso e sentia-se rico. Tinha gente dizendo que, com o seu estilo ingénuo e tosco, ele era um grande pintor. Não percebiam que ele copiava de cartões-postais. Tinham dado os trinta francos pela última pintura. O basco estava eufórico e queria celebrar. Estava procurando uma daquelas luzinhas vermelhas que significavam prazer. Uma mulher maternal abriu a porta, mas uma mulher maternal cujos olhos frios deslocavam-se quase que imediatamente para os sapatos do homem, pois a partir deles ela julgava quanto ele podia pagar pelo prazer. A seguir, para a sua própria satisfação, os olhos repousavam por um instante nos botões da calça. Rostos não lhe interessavam. Ela passava a vida lidando exclusivamente com aquela região da anatomia dos homens. Os seus olhos grandes, ainda radiantes, tinham um jeito penetrante de olhar dentro das calças, como se pudessem avaliar o peso e o tamanho dos dotes do homem. Era um olhar profissional. Ela gostava de formar os pares com mais acuidade do que outras mães da prostituição. Ela sugeria certas combinações. Era uma especialista, como um provador de luvas. Ela conseguia medir o cliente mesmo através das calças e empenhava-se em conseguir para ele a luva perfeita, um encaixe bem-feito. Não se obtinha prazer se havia muito espaço, nem se a luva era apertada demais. Maman achava que as pessoas hoje em dia não sabiam o bastante sobre a importância do encaixe. Ela gostaria de ter disseminado o conhecimento que possuía, mas homens e mulheres estavam cada vez mais descuidados, eram menos exigentes do que ela. Hoje em dia, se um homem se encontrava flutuando dentro de uma luva larga demais, movendo-se como se dentro de um apartamento vazio, fazia o melhor que podia. Deixava o membro adejar por ali como uma bandeira, e saía sem o verdadeiro enlace apertado que aquecia as entranhas. Ou o enfiava com saliva, forçando como se estivesse tentando enfiar-se por baixo de uma porta fechada, espremido pelos arredores estreitos e encolhendo-se ainda mais só para ficar ali. E se acontecia de a garota rir folgadamente de prazer ou fingindo prazer, ele era imediatamente expelido, pois não havia espaço livre para a dilatação do riso. As pessoas estavam perdendo o conhecimento das boas combinações. Foi só depois de cravar os olhos nas calças do basco que Maman o reconheceu e sorriu. O basco, é verdade, compartilhava com Maman a paixão pelas nuances, e ela sabia que ele não era fácil de agradar. Tinha um membro caprichoso. Confrontado com uma vagina de caixa de correspondência, ele revoltava-se. Confrontado com um tubo constritivo, ele recuava. Era um connoisseur, um gourmet de porta-joias femininos. Gostava deles forrados de veludo e aconchegantes, afectuosos e aderentes. Maman deu-lhe uma olhada mais prolongada do que a normalmente destinada aos outros clientes. Ela gostava do basco, e não era por causa do perfil de nariz curto, clássico, dos olhos amendoados, do cabelo negro lustroso, do andar deslizante e suave, dos gestos casuais. Não era por causa do lenço vermelho e do boné assentado sobre a cabeça num estilo de malandro. Não era por causa dos modos sedutores com as mulheres. Era por causa do pendentif majestoso, do nobre volume, da receptividade sensível e infatigável, da afabilidade, cordialidade, expansibilidade daquele pingente. Ela jamais vira um como aquele. O basco às vezes o colocava em cima da mesa como se estivesse depositando um saco de dinheiro, dava pancadinhas com ele como se para pedir a atenção. Tirava-o para fora naturalmente, como outros homens tiram o casaco quando estão com calor. Ele dava a impressão de que a coisa não ficava à vontade trancada, confinada, que era para ser exibida, admirada.
Maman entregava-se continuamente ao hábito de olhar os dotes dos homens. Quando saíam dos urinoirs, terminando de se abotoar, ela tinha a sorte de pegar o último relance de um membro dourado, ou moreno-escuro, ou de ponta estreita, seu preferido. Nos bulevares, com frequência era gratificada com a visão de calças mal-abotoadas, e seus olhos, dotados de visão aguçada, conseguiam penetrar pela abertura velada. Melhor ainda era se ela pegava um vagabundo aliviando-se contra a parede de algum prédio, segurando o membro pensativamente na mão, como se fosse a sua última moeda de prata». In Anais Nin, A Fugitiva, L&PM Pocket, Brasil, 2012, ISBN 978-852-542-654-3.

Cortesia de L&PM/JDACT

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Saberia a dama da nossa chama? Saberia ela das noites em claro? Deste filho que gero e que tanto poderá ser dele como de meu marido?»

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Violante Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Acrescia que dona Joana, talvez por ser feia e peluda, aperfeiçoara outras mestrias: era a dama mais informada da Corte de dona Catarina. Mal a vi deslizar sobre o soalho, como um cisne, tentando cumprir as regras do decoro, escondendo os chapins de seda, tive o cuidado de me certificar de que ninguém escutava às portas, o que por aqui é coisa muito usual. Passei a explanar-lhe o plano: precisava de tirar a limpo se Luís Vaz cedia aos encantos e graças femininas, apartando-se dos seus deveres. Não me referia, claro está, às graças e desgraças das rameiras, mas às mais delicadas e tentadoras graças feminis. Pelo semblante de dona Joana percebi que me tinha feito entender. As altas funções que confiara a Luís Vaz na instrução do morgado não eram harmonizáveis com dispersões de distinta natureza. Não era a má fama do poeta Trinca-Fortes que me assustava, era uma outra coisa que não tinha ainda por certa mas que o alheava das obrigações que o prendiam..., ao pequeno Antoninho.
Contei-lhe que Luís Vaz perdia muito tempo a compor sonetos e elegias, éclogas e sextilhas na medida nova, anotando-as todas num caderno. E disse-lhe que tudo aquilo não eram meras suposições, que o havia confirmado com o meu irmão mais novo, quase da mesma idade do Antoninho. Sucede que meu irmão Francisco assiste bastas vezes às lições do mestre, acostumando-se até a copiar as rimas do poeta no cancioneiro que anda a fazer. Diz que as acha graciosíssimas e plenas de chiste e frescura e pasma com a rapidez com que Luís Vaz as compõe, num estalar de dedos, sem uma hesitação, uma quebra que seja, como quem está embriagado por uma arrebatadora paixão. Pousei no regaço de dona Joana um saco de moedas e rematei: quero ver se ele te resiste.
Dona Joana abriu muito os olhos, espantada com o meu inusitado gesto. Primeiro hesitou; depois, decidida, afastou o saco. Não, senhora, de forma alguma, jamais o aceitaria, mas estais certa em vosso pensar. Mordeu o lábio e, gaguejando, prosseguiu: Luís Vaz anda alvoraçado e, tal como bem pressentis, não são as noites de má fama em Alfama, ou o tempo que consome a versejar, ou mesmo o Mal-Cozinhado, que o viciam: é a paixão que o domina. O chão escapou-se-me por debaixo dos pés. Saberia a dama da nossa chama? Saberia ela das noites em claro? Deste filho que gero e que tanto poderá ser dele como de meu marido?
Encorajei-a a que prosseguisse, mas as mãos tremiam-me e as cores fugiam-me do rosto. Chama-se Catarina Ataíde, é a minha melhor amiga e, tal como eu, dama da Rainha. Até aí cuidara não ter coração, só quando ali se quebrou me apercebi de que o tinha. E não se quebrou de uma só vez, foi-se quebrando aos pedaços, em tortura aguda e lenta». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.

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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Novos Cátaros para Montségur. Saint-Loup. «En primavera vamos a Mosset, al Mas de la Coume, de un pau llamado Kruger, un bellísimo pau! Otto Rahn se sobresaltó. Un pau? Qué es un pau?»

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Luz Azul
«El hombre emergió de súbito de los matorrales de moreras y masas de boj, finos robles y hayas, que todas las primaveras dan verdor a la fortaleza abandonada. A los ojos de los ocho jóvenes que acababan de transportar la poterna, apareció grande, delgado y de rostro juvenil, pupilas claras de vendedor de sueños, cabellos peinados hacia atrás bajo un casco, y al mismo tiempo viejo a juzgar por la ropa: camisa de scout arrugada, botas de montaña y pantalones cortos knickerbockers, de los que en todas partes, menos en Inglaterra, la moda de 1937 intentaba desembarazarse. El grupo de visitantes permaneció estático junto al torreón truncado. Qué actitud adoptar ante la aparente amenaza de un hombre solitario que caminaba lentamente en su dirección surgido de las profundidades de la ruina donde casi nadie se había aventurado en siete siglos? Sus facciones no revelaban hostilidad. Parecía sumamente contrariado, como un amante sorprendido en flagrante delito o un eremita sobresaltado en el momento más elevado de su ascesis. El sol del mediodía proyectaba sobre el grupo la sombra de la muralla meridional. Instalados cómodamente en las oquedades de los robles que los matorrales impedían crecer, los mirlos trinaban. Al llegar a unos pocos pasos de los visitantes, desapareció del rostro el velo de sueño que lo tenía apartado del mundo de los vivos. Sonrió, extendió la mano al muchacho más cercano y simplemente dijo: me llamo Rahn. Y yo Barbaïra. Otto Rahn! Roger Barbaïra! Las pupilas del joven dejaban entrever una mirada no acostumbrada al sol meridional; parecía recibir la luz dulce y compacta de un lago escandinavo en alguna hora incierta del Solsticio de Invierno. Los cabellos castaños hacían más singular su acento languedociano que, pese a todo, concordaba con la altura media, las piernas algo cortas y el tronco huesudo desarrollado en fuerza.
Es alemán, Otto Rahn? Ah! Lo adivino? Carezco casi de acento. Y el señor? También es alemán? Belga? Danés? Roger Barbaïra se encogió de hombros. Qué le parece? Nací en Carcasona. Vivo a doce kilómetros, cerca de una aldea que tiene mi nombre… Bueno… yo soy el que poseo el nombre de la aldea. El silencio colocó de nuevo una barrera entre el grupo de jóvenes y el hombre solitario. En las hondonadas donde la aldea de Montsegur mostraba las pizarras de los tejados que el sol recocía en rojizas perspectivas, un cuco marcaba los segundos con repetición precisa. Otto Rahn hizo una señal en dirección al grupo quieto detrás el joven Barbaïra como un pelotón de soldados tras su jefe, y preguntó: y sus camaradas? Son ajistes de aquí, de la región. Perdón… Ajistes?! Imagine!, una palabra francesa que desconocía… Barbaïra sonrió. No es una palabra francesa, más bien es un barbarismo! Ajiste es lo mismo que usuario de los albergues de juventud. Ah, ya!... Wandervögel? Los conozco de sobra. Fue un profesor alemán, Richard Schirman, quien creó los primeros albergues de juventudes en Europa, allá por 1907 Sabemos eso! Replicó con sequedad Roger Barbaïra.
Los jóvenes se instalaron en los peñascos que soportan la muralla sur de la fortaleza, que ganaba impulso para enseguida perderlo en el interior, en el plano horizontal, enlosado caótico cubierto de musgo. Sacaron de sus bolsas algunas escuetas provisiones. Otto Rahn se instaló junto a ellos, inducido por un sentimiento que revelaba una cierta complicidad. Con ocasión de ese encuentro, entonces con treinta y tres años, entraba en la familia de los Wandervögel. Preguntó a los primeros: entonces, son ajistes?... Por el relieve que dio a sus palabras, se adivinaba que poseía un perfecto conocimiento de la lengua francesa, pero se tropezaba con un término desconocido y, a la manera de M. Jourdain, pensaba con un ligero complejo de inferioridad: cómo se puede ser ajiste? Sí, replicó Jordi Couquet con la boca llena. Nos encontramos los sábados en algún albergue de juventud aquí de la región. En invierno es en Carcasona, en un AJ llamado À l’Ombre de la Cité… Eso, en los días lluviosos! En primavera vamos a Mosset, al Mas de la Coume, de un pau llamado Kruger, un bellísimo pau! Otto Rahn se sobresaltó. Un pau? Qué es un pau?» In Saint-Loup, Novos Cátaros para Montségur, Nouveaux Cathares pour Montesegur, Presses de la Cité (1969), 2003, Huguin Editores, Lisboa, Eneese, Las Españas, 2010, Wikipédia, ASIN B0000DOUIU.

Cortesia de Neese/LasEspañas/JDACT

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Em suma, dificilmente chegavam aos cofres do Estado os tributos que lhe eram devidos: ou porque não eram cobrados, ou porque eram previamente surripiados»

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«(…) Esses cristãos serão a desgraça do império! Os cristãos e os impostos, Lucídio! Não sei o que é pior!, asseverou Sabino, enquanto se deliciava com uma fatia de presunto. Os cristãos são uma confraria fechada, com ares de superioridade. Mas os cobradores de impostos, esses não! Entram-nos pelas casas adentro, como se fosse tudo deles! Malditos cobradores de impostos!, afiançou Lucídio Danígico Tácito, tragando a terceira taça. Bom vinho este, hein?! Sabino sorriu e aproveitou para verter também a ânfora na sua taça de prata. Cultivo-o na Villa Marecus! Sabino era um eterno ufano das suas vinhas que produziam um néctar encorpado da cor dos rubis. E então: conta-me o que se passou com os tabularii. Acertei com eles os limites do cadastro da Villa Aseconia! Acreditas que queriam quase duplicá-los, para recolherem mais impostos?! Velhacos! Cuidado com essa gente! Muito cuidado! Ouvi dizer que torturam familiares e servos para lhes arrancarem falsas declarações contra os proprietários. Já me constou…, lastimou-se Lucídio. Ithacio, que veio de Roma com esse propósito, é capaz disso e muito mais! Lucídio e Sabino desfiavam o rol de lamentações que atormentavam os proprietários provinciais do império. À míngua de ofícios e comércio florescentes, tidos como actividades menores, os homens considerados eram os que viviam do produto da terra. E daí refugiarem-se frequentemente nos seus domínios, nas villae. Era o caso daqueles dois irmãos, ricos terra-tenentes, provenientes de uma família indígena galaica, cujas origens se perdiam até aos tempos em que Décimo Júnio Bruto irrompeu Galécia adentro, cruzando para sempre o rio do esquecimento.
Ithacio, de quem falavam, natural de Ossonoba, no sul da Lusitânia, viera em comissão de serviço da velha capital romana, nomeado curator civitas, o responsável pela arrecadação de impostos. Segundo constava, a sua fama quadrava com os males do império: corrupção e delacção. Probidade não era propriamente um valor que abundasse desde os confins do oriente até à Hispânia. Falava-se de desvios dos soldos no exército, exploração dos viajantes pelos administradores da posta, roubo de trigo pelos encarregados da anona, corrupção nos tribunais. E, claro, dos cobradores de impostos a aproveitarem-se dos contribuintes. Em suma, dificilmente chegavam aos cofres do Estado os tributos que lhe eram devidos: ou porque não eram cobrados, ou porque eram previamente surripiados por mãos ávidas do alheio. Mas, acima de tudo, Lucídio, cuidado com os delactores! Desde Tibério que esse mal nunca mais se exterminou no império. Parece que Ithacio tem vários espiões, e é muito sensível a acusações de magia e bruxaria. A sério?! Sim, e mesmo sem qualquer prova. Faz tudo para cair com toda a sua voracidade sobre a desgraçada vítima. Olha lá, não é por estes dias que Priscila te dará o primeiro filho?, perguntou Sabino, com a boca cheia. É verdade, Sabino! Eu nestas andanças e nem sei se já serei pai…, respondeu Lucídio, nublado de preocupação». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT