segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A Igreja de São Domingos de Vale de Figueira, Santarém. Tiago Moita. «Entre o património então transferido encontravam-se os painéis de azulejo setecentistas, que revestem presentemente a nave da igreja, os retábulos colaterais, diversas esculturas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A edificação da Igreja Matriz

«(…) Dos retábulos, e dos seus oragos, encontra-se preciosa descrição, redigida pelo pe. Manuel Ramos, no inquérito nacional das Memórias Paroquiais (ANTT), em 1758: tem três altares, um mor em que preside o Santíssimo Sacramento, e os dois colaterais, um com o título do Senhor Jesus Crucificado, e outro de Nossa Senhora do Rosário. Significativamente, no mesmo inquérito o sacerdote menciona a existência de duas Irmandades dinamizando a vida da paróquia: a Irmandade do Santíssimo Sacramento e a Confraria de São Domingos. Foi especialmente a primeira que se encarregou do contínuo embelezamento do espaço da capela-mor da igreja, de que era a principal responsável, adquirindo, para o efeito, diversos bens móveis e integrados. Entre os bens adquiridos destaca-se o novo altar do retábulo principal da igreja, com nicho aberto no interior da mesa que mandaram fazer para nele porém a Santíssima Imagem do Senhor Morto para melhor culto da Sexta-feira da Semana Santa, para o qual requereram licença do Senhor Patriarca de Lisboa, dom José Manuel da Câmara (1686-1758), para que o pároco o pudesse benzer e dizer missa, licença que foi concedida por provisão eclesiástica de 9 de Março de 1757. Pensamos, por isso, que os azulejos azuis e brancos, de época setecentista, que animam o espaço arquitectónico intestino da capela-mor, com passos da vida de São Domingos, resultam igualmente de encomenda desta importante Irmandade. No anexo contíguo, situado na fachada lateral esquerda da igreja, com corpo elevado, tinha a Irmandade a sua Casa de Despacho, com acesso directo ao camarim do retábulo-mor, e à própria capela principal por escada no lado oposto.

A ruína causada pelo terramoto de 1755 foi extensa, tendo causado sérios danos na abóbada da capela-mor, abrindo um longo período de contenda entre o pároco e os fregueses, de que dá conta o registo da visitação realizada no ano seguinte. A reconstrução do templo ficou adiada por vários anos, estando ainda por resolver em 1758. Em 1766, a torre da igreja testemunha a aquisição de um novo sino, de bronze, enriquecido com inscrição na zona superior: S DOMIN GOS 1.766. O sino encontra-se hoje desactivado e deslocado para o interior do templo.

No final do século XVIII, a igreja deverá ter recebido uma nova campanha de melhoramentos, sobretudo no exterior, com a construção do novo janelão do coro e do nicho com a imagem pétrea. A leitura da pedra fundacional do Convento de Santa Maria de Jesus de Vale de Figueira, da Província da Arrábida, extinto em 1834, que se encontra hoje no anexo da igreja, relatando a trasladação da mesma para o adro deste templo em 30 de Dezembro de 1861, permite-nos supor ser esta a data em que parte significativa dos bens artísticos e cultuais pertencentes ao convento foram deslocadas para a igreja. Entre o património então transferido encontravam-se os painéis de azulejo setecentistas, que revestem presentemente a nave da igreja, os retábulos colaterais, diversas esculturas, pinturas, e alfaias litúrgicas, que os inventários remanescentes permitem aferir. Naquele mesmo ano, também a torre sineira será enriquecida com o mostrador do relógio, em pedra, com data gravada.

Pelo jornal O Século, de 10 de Agosto de 1928, sabemos que naquele ano se havia começado a preparar o terreno para a construção do muro em alvenaria que delimita o adro da igreja, contudo as obras só muito lentamente avançaram, com prejuízo para quem passava. Em 1982-1983, sendo pároco o pe. Diamantino Henriques Marques, foi integralmente substituída a cobertura de madeira do tecto da nave, perdendo-se a anterior, pintada, da qual subsiste o painel central, com heráldica do orago. Do mesmo modo, foram rebocadas e pintadas as paredes da igreja, que eram então revestidas de estuque pintado em fingidos de mármore, num jogo de cores rosa e branco, com molduras azuis». In Tiago Moita, A Igreja de São Domingos de Vale de Figueira, Santarém, 2019, Design Gráfico e Paginação, David Matos Branco, Depósito Legal 453685/19.

Cortesia de DGePaginação/DavidMBranco/JDACT

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A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Vossa majestade deve ter paciência e ser forte. Em breve, seu exército assediará este castelo e o conde de Nigredo será obrigado a libertá-la»

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«(…) Mãe luminosa, eu escrevo estas cartas em louvor a ti, que foste minha boa mestra e nutriz. Tua fábula sobre o jardim da alquimia não era uma mentira. Encontrei esse jardim na sombra do claustro, além do tétrico portal de Nigredo. Assim denomino a primeira etapa da Obra, pois a matéria a ser forjada se encontra ainda em estado de obscuridade e imperfeição. Essa obscuridade me lembra a lã bruta, a que faltam a forma e a graça. Ninguém pagaria nada por ela, embora esconda dotes maravilhosos. Um grande mistério se oculta em Nigredo, o ventre escuro da terra.

O cardeal Romano Frangipane franziu a testa numa expressão de dúvida e repôs a carta no estojo de onde a tirara, junto a outras ainda não lidas. Quem poderia ter escrito coisas tão delirantes? Certamente uma freira enlouquecida no claustro ou talvez uma beata. A vibração na pálpebra esquerda prenunciou a chegada de uma dor de cabeça. O prelado suspirou, resignando-se a acolher o incómodo, consequência inevitável de suas mudanças de humor. Embora ele sofresse daquelas crises desde a juventude, elas haviam se agravado ultimamente, obrigando-o a refugiar-se no escuro e no silêncio completo. No entanto, disse para si mesmo, o agravamento dos distúrbios nervosos era normal em certas situações, sobretudo na prisão. Fazia semanas que definhava naquela torre, ou talvez meses. As janelas se abriam para um céu cinzento, coberto de névoa e fumaça negra, que não permitiam acompanhar a sucessão dos dias e das noites. Era já um milagre poder conservar a lucidez e o raciocínio. Um ressoar de passos leves antecipou a entrada de uma dama de cabelos ruivos presos num coque. Frangipane saudou-a obsequiosamente e empertigou o copo maciço, cruzando sobre o ventre os dedos que exibiam seis anéis de ouro. Vossa majestade parece preocupada, observou o prelado. E como poderia não estar, eminência? O cardeal sentiu uma pontada na têmpora esquerda, seguida de pulsações que se ramificavam pela testa. Não desanime, minha senhora. Tu és Branca de Castela, rainha da França. Virão logo socorrê-la. A dama lançou-lhe um olhar de censura. Cardeal de Sant’Angelo, por favor, poupe-me dessa conversa enfadonha. Diante dessas palavras, a dor de cabeça do cardeal se intensificou, despertando em Frangipane a vontade de pegar aquela mulher pelo pescoço e estrangulá-la. Foi um impulso violento, como violenta era a aversão que nutria por ela, por seu ar de sensualidade e soberba. Não por acaso, na corte, chamavam-na de Dame Hersent, a loba do fabliau da raposa Renard. E ele a via assim naquele momento, uma mulher insolente e lasciva. Tomado por essa onda de emoções, o cardeal chegou a pensar em esbofetear a Dame Hersent como se ela fosse uma meretriz de quatro tostões, mas, contendo-se, cerrou as mandíbulas e esboçou um sorriso paternal. Vossa majestade deve ter paciência e ser forte. Em breve, seu exército assediará este castelo e o conde de Nigredo será obrigado a libertá-la.

Não é tão simples assim. Branca caminhou até ao prelado balançando os quadris sob o vestido azul. Ela ainda não completara 40 anos e, embora houvesse acabado de dar à luz seu undécimo filho, parecia fresca como uma rosa. Finge não entender? Nosso exército se dividiu e vaga perdido pelo Languedoque. Seu comandante, Humbert Beaujeu, foi encarcerado connosco nesta torre. O cardeal de Sant’Angelo teve de concordar, incapaz de desviar os olhos daquela mulher. A dor de cabeça lhe provocava uma leve vertigem, que acalmava a ira sentida pouco antes. Tinha agora outras fantasias. Imaginava percorrer-lhe o pescoço com toques suaves e depois ir descendo, sob o vestido... Comprimiu os lóbulos frontais com o indicador e o polegar, como para impedir que sua cabeça se partisse ao meio. Por que o atormentavam desejos que jamais concretizara? Se ao menos pudesse mergulhar o rosto em água gelada! Combateu aqueles impulsos doentios e esforçou-se para falar com firmeza: Outro logo substituirá Humbert Beaujeu, nosso lieutenant, e retomará as rédeas das milícias. Tomara que esteja certo, disse Branca, que não parecia notar o conflito interior do cardeal. Mas diga-me, nenhuma notícia de nosso carcereiro? Não foi visto até agora. Não entendo, suspirou Branca. O cardeal de Sant’Angelo assentiu com um gesto de cabeça. É uma situação estranha. O conde de Nigredo não revelou ainda suas intenções. Limita-se a manter-nos prisioneiros. Talvez isso lhe baste para alcançar seus desígnios. Quais seriam eles?» In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT

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domingo, 29 de agosto de 2021

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Airagne!, tentou gritar, lutando contra a sensação de asfixia que lhe apertava a garganta. Sentiu junto de si aquela criatura monstruosa quando o terror o invadiu e seu coração parou de bater»

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«(…) Seu nome é Jaloque, derivado do árabe šaláwq, vento do mar. Ganhei-o do califa al-Mamun, senhor do Magrebe, em troca de alguns tratados astrológicos. Os arqueiros berberes cavalgam em animais dessa mesma raça... Agora é seu. O jovem se inclinou, agradecendo, e aproximou-se do cavalo. Acariciou-lhe o focinho e o pescoço e só então notou que havia um arco de caça preso ao arção posterior. Mera precaução, explicou Galib, entregando-lhe uma aljava. Poderá ser útil. Uberto concordou com um aceno de cabeça. Prendeu a aljava ao flanco direito, pôs um pé no estribo e alçou-se à sela. O corcel bateu com as patas no chão por alguns instantes, depois ergueu a cabeça e bufou. As esporas são desnecessárias, hein, Jaloque?, sussurrou o jovem ao ouvido do animal, acariciando-lhe a crina. Parece mesmo impaciente para galopar. Galib, novamente sério, tirou um rolo da manga esquerda da batina e estendeu-o com certa pressa a Uberto. Entregue esta carta a Raymond Péreille quando chegar ao rochedo de Montségur. Por meio dela, peço-lhe que o ponha a par das informações de que dispõe sobre o conde de Nigredo e lhe dê uma cópia de um raro manuscrito de alquimia que possui: o Turba Philosophorum . Acho que poderá ser de muita utilidade a você e seu pai, para que se inteirem das manobras do inimigo. E vá tranquilo, o senhor de Péreille me conhece há bastante tempo. Não deixará de ajudá-lo. Farei isso, magister. Óptimo, filho. Agora escute: quando sair do castelo, não se dirija à porta principal da muralha, mas sim ao lado oposto. Siga a muralha até uma pequena cancela, onde o esperam dois guardas com quem fiz um acordo. Deu-lhe uma bolsa recheada de moedas. Entregue-lhes isto e o deixarão passar sem problemas. Uberto pegou a bolsa, sopesou-a e prendeu-a ao cinto, junto com a jambiya. Diga a meu pai que me espere em Toulouse, pediu o jovem. E, esporeando o cavalo, saiu a trote da estrebaria. O velho observou-o afastar-se, enquanto uma dor repentina no peito obrigava-o a ajoelhar-se no chão. Lembre-se, gritou apertando nervosamente um tufo de palha entre os dedos, lembre-se do Turba Philosophorum! Uberto, já distante, fez sinal de que entendera sem virar-se na sela. A silhueta do jovem cavaleiro, cada vez mais longínqua, desapareceu na noite.

Enquanto se esforçava para voltar a seu quarto, Galib concluiu que não teria mais muito tempo de vida. Um veneno misterioso devastava-lhe o corpo. Talvez o houvesse ingerido na ceia, misturado à sopa de centeio ou ao refresco de groselha. Ou lhe tivesse sido ministrado depois, durante o sono, antes do encontro secreto com Uberto. Fosse como fosse, a maldita substância começava a turvar sua percepção da realidade. A luz das tochas emergia das sombras com estranha intensidade, alongando-se pelo chão como rastros de caracol. O cheiro de resina e salitre chegava-lhe às narinas amplificado e nauseante; a vertigem impedia-o de continuar andando e a falta de ar aumentava a cada passo. Por isso apressara tanto Uberto, correndo o risco de parecer grosseiro e mesmo suspeito. Cerca de uma hora antes, notara os sintomas da intoxicação e sua experiência na matéria o induzira logo a atribuí-los ao envenenamento. Fora obrigado a agir enquanto estava ainda lúcido. E ele o fez. Tinha conseguido encaminhar o rapaz. Agora só lhe restava chegar ao seu alojamento e consultar algum livro para descobrir o antídoto apropriado, embora isso lhe parecesse um esforço quase inútil. Antes, porém, devia encontrar uma maneira de informar Ignazio das suas suspeitas.

A estrada que levava ao torreão parecia interminável, um calor opressivo no rosto e no peito forçava-o a parar a todo instante para recuperar o fôlego. De súbito, numa dessas pausas, viu-se diante de uma figura envolta numa capa preta. O encontro foi tão inesperado que o velho recuou um passo, arriscando-se a cair. Quem é você?, perguntou num primeiro impulso, mas logo emendou: Ah, eu o conheço... Muito bem, replicou o encapuzado. Assim ficará mais à vontade para me revelar aonde enviou o rapaz com tanta urgência. Maldito... O velho levou a mão ao peito. Então foi você quem me envenenou... É muito perspicaz, magister. Lê nas pessoas quase tão bem quanto nos livros. A figura avançou lentamente. E por falar em livros, deve imaginar o que estou procurando. Diga-me então onde está o Turba Philosophorum. Galib recuou mais um passo. Não lhe direi nada. Paciência, suspirou o encapuzado. Quer saber de uma coisa? A dose de veneno que lhe dei não seria mortal para um homem saudável, mas você está decrépito. Será talvez questão de minutos... Ao que parece, já tem dificuldade para respirar. O magister cambaleou, mas fez um esforço e se apoiou a uma parede. Foi então que, num último lampejo de lucidez, viu algo cintilar no pescoço do homem da capa: um pingente dourado com a forma de um insecto de oito patas. O símbolo de Airagne!, exclamou aterrorizado. Aquele lugar maldito... Sim, o castelo de Airagne, confirmou a sombra em tom ameaçador. Airagne, a morada do conde de Nigredo... Pois bem, mas agora você..., sabe muitas coisas, ou melhor, coisas demais. O encapuzado se aproximou. O velho, agora tomado pelo delírio, não viu uma figura humana avançar ao seu encontro, mas oito patas compridas e finas, providas de olhos bulbosos, que luziam na treva.

Airagne!, tentou gritar, lutando contra a sensação de asfixia que lhe apertava a garganta. Sentiu junto de si aquela criatura monstruosa quando o terror o invadiu e seu coração parou de bater». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

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A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Gosta de cavalos? Oh, sim, respondeu Uberto. O magister aproximou-se de um magnífico garanhão já selado, acariciou-lhe a crina e verificou se as rédeas e os arreios estavam bem firmes»

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«(…) Essas manchas no rosto... A respiração irregular... O que você tem? Nada de grave, assegurou-lhe Galib, apoiando-se à parede. Apenas uma leve indisposição. Na minha idade... Tentou sorrir. Depois que o velho se recuperou um pouco, Willalme se aproximou de Uberto e estendeu-lhe a mão. Faça boa viagem, amigo. E, com um gesto ao mesmo tempo inesperado e tímido, entregou-lhe o seu punhal árabe. Poderá ser-lhe útil. O jovem observou o objecto revestido na sua bainha de marfim. Mas é a sua jambiya! Não posso aceitar um presente desses... O francês colocou a arma nas mãos de Uberto, forçando-o a segurá-la. Não insista, detesto rodeios. A devolverá no nosso próximo encontro. O mercador lançou um último olhar ao vacilante Galib e em seguida abraçou o filho. Esse gesto simples, embora movido por sentimentos sinceros, foi difícil para ele. Manifestar afecto sempre lhe custava esforço e constrangimento. Uberto se desvencilhou. Pai, deixe disso, eu tinha 15 anos quando me abraçou pela última vez. Fique atento, filho, recomendou Ignazio. Se lhe acontecer alguma coisa, eu não me perdoarei jamais. Não se preocupe, serei rápido e cuidadoso. Nós nos veremos em Toulouse. É provável que eu já esteja lá quando chegarem. Se não, esperem-me ou deixem recado dizendo o lugar onde poderei encontrá-los. O mercador assentiu. Se houver algum contratempo, deixarei uma mensagem na hospedaria da catedral. Não me esquecerei. Galib interveio impaciente: É hora de partir.

Depois de uma derradeira saudação, Uberto pôs o alforje ao ombro e saiu do quarto atrás do magister. O velho e o rapaz deixaram o torreão, passando em silêncio pelos postos de guarda, até chegarem ao pátio, de onde puderam avançar em segurança protegidos pelas sombras da vegetação. Galib caminhava com dificuldade crescente e mais de uma vez Uberto se prontificou a ampará-lo, mas, vendo que o ancião recusava a sua ajuda, desistiu. No espaço de poucas horas, mudara repetidamente de opinião sobre ele. Como quase sempre lhe acontecia quando em presença de eruditos ou cortesãos, não conseguira compreendê-lo de início. Primeiro, julgara-o uma pessoa ambiciosa, empenhada em obter as boas graças do rei e em fomentar intrigas; depois, à mesa, achara-o medroso e inseguro, mas por fim soubera apreciar a sua inteligência e o afecto sincero que dedicava a Ignazio. Só agora fazia uma ideia precisa do ancião: Galib era obstinado e orgulhoso, não tímido, mas previdente, e, sobretudo, estava decidido a agir em prol do bem comum. Porém, Uberto desconfiava que estivesse escondendo alguma coisa. A silhueta do velho continuava avançando sobre a relva, cambaleando como um soldado ferido. Não estava encenando nada nem se entregando a um capricho de sábio entediado: aquela era uma missão que ele queria ver cumprida a todo custo. Por isso, e pela dignidade da sua atitude, o jovem confiava nele e resolvera ajudá-lo sem pedir muitas explicações.

Depois de percorrer um breve trecho, chegaram a uma pequena construção de pedra e argila. O magister se apoiou no portal, olhando em volta. Entre depressa, disse. Uberto entrou e logo sentiu o cheiro de feno e esterco. A luz do luar penetrava pelas fendas das paredes iluminando o recinto, onde se viam equipamentos de estrebaria, caça, guerra e desfile. O velho atravessou o recinto ordenando: Siga-me. Depois de passarem por uma espécie de antecâmara, chegaram ao interior de uma cavalariça. E, pela primeira vez desde que tinham saído do torreão, Galib virou-se para o jovem com um olhar de cumplicidade e disse: Gosta de cavalos? Oh, sim, respondeu Uberto. O magister aproximou-se de um magnífico garanhão já selado, acariciou-lhe a crina e verificou se as rédeas e os arreios estavam bem firmes. Com este viajará rápido. Era um cavalo de raça. Não um daqueles ginetes turcomanos enormes, importados da Espanha, capazes de suportar o peso de guerreiros encouraçados; lembrava antes um corcel árabe, embora tivesse o porte mais imponente e pernas mais robustas. Um esplêndido exemplar, admitiu Uberto. Galib sorriu com orgulho». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT

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sábado, 28 de agosto de 2021

António Lobo Antunes. Explicação dos Pássaros. «A doença boleara-lhe as arestas da voz, tornara-a doce, suave, delicada como o canto de um búzio: Mozart, la mer ou l’écho de vos rêves: reclame de uma marca qualquer de gira-discos franceses…»

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«(…) Um carro de pensos rebolou a guinchar no corredor, entrechocando como bilhas de leite as latas cromadas, cheias do silêncio fofo das compressas. Do quarto vizinho crescia um queixume rítmico, a ondulação de um gemido, um protesto que subia e descia de mulher: Tapem-me a boca para não gritar. Respondeu a contragosto: Ainda não, mãe, uma data de chatices na tipografia, as provas gatadas, pensando Lá vão os cínicos dos críticos cair-me em cima com a sua raivinha de impotentes, as resenhas minúsculas, anónimas, secas, sem retrato, nos jornais da tarde. Quando eu principiar a putrefazer-me considerar-me-ão primordial, entrevistar-me-ão, dissertarão sobre mim, seleccionar-me-ão para os aborrecidos cemitérios das suas selectas. Deu um passo em frente, afagou a mão da mãe: porosa, sem sangue, leve e dura como as raízes ocas das vinhas. As pessoas já não gostam de história, de poesia, suspira a prima por trás das agulhas de tricot, fabricando uma horrível camisola furta-cores, aos losangos, que ninguém vestiria (Muito obrigado mas agora não preciso, acho que o Francisco adorava). Não gostam de romances sem escândalos, sem palavrões, sem sexo: quanto mais porcaria melhor. O cheiro das casas de saúde, pensou ele, põe-me um peso na testa, um desconforto, uma dor esquisita: quando fui operado às costas vi o meu pus num balde e apeteceu-me vomitar aos arrancos, de bruços na marquesa, o oco das tripas. O cirurgião conversava com o ajudante à medida que lhe remexia a sumaúma do corpo, e ele notava-lhes as botas de pano idênticas às dos burros a fingir, formados por dois comparsas, no circo. Uma menina de saia de lantejoulas e sombrinha passeava num arame altíssimo, iluminada por um foco roxo e amarelo. Na plateia deserta, um palhaço rico, de boca vermelha, experimentava o saxofone.

O pai?, perguntou ele, e as palavras pairaram muito tempo, adiante dos lábios, como uma escala de música. O progenitor, de casaca e pálpebras sublinhadas a carvão, avançou até ao microfone em meneios miudinhos de mestre-de-cerimónias. Um cone de claridade azul, vindo do tecto, perseguia-o: Palavras para quê?, anunciou a alisar as farripas da calva entre os assobios fanhosos dos altifalantes. É um artista português. Muito trabalho no escritório, explicou a mãe. Deve passar logo por cá. A secretária dele já telefonou três vezes, esclareceu a prima, mandou aquelas flores embrulhadas em celofane com uma fita cor-de-rosa nos pés. A jarra de vidro facetado aumentou subitamente de tamanho: o pai estendeu a mão para um reposteiro coçado e ele e as irmãs saíram lá de dentro a correr, vestidos de tártaros, num turbilhão de cambalhotas e de pulos. Quietos, ordenou o pai, estou a ler o jornal. A careca severa, a cara fechada, o odor de água de colónia e de tabaco americano da roupa: e depois, de tempos a tempos, as viagens de negócios de que demorei anos a entender o motivo, a mãe trancada no quarto, estendida na cama (Uma enxaqueca, não é nada, vou já jantar), as visitas ao psiquiatra, o ioga, a macrobiótica, os jogos de cartas, a ginástica. E os meus olhos mudos a interrogarem-te nas costas Porque não voltas mais cedo para casa? Talvez passe cá logo, suspirou a mãe, talvez passe logo em toda a parte.

A doença boleara-lhe as arestas da voz, tornara-a doce, suave, delicada como o canto de um búzio: Mozart, la mer ou l’écho de vos rêves: reclame de uma marca qualquer de gira-discos franceses, lido numa revista no dentista. Aproximou-se da janela, espreitou para fora: uma mulher de avental depenava uma galinha na rua (a cabeça do bicho, dependurada, oscilava ao ritmo sem ritmo dos seus puxões), dois cães, instalados nas patas traseiras, contemplavam-na de longe numa avidez submissa. Os edifícios das Amoreiras vogavam, desgovernados e feios, na neblina: cidade de mer…, porque não me piro enquanto é tempo? O almocinho, gritou uma criatura jovial, de tabuleiro metálico nos braços: canja, pescada cozida com grelos, uma pêra, um pires ao contrário a proteger o copo de água. As irmãs sumiram-se numa cambalhota derradeira, o pai experimentou o microfone com a unha: Comida de doentes, vociferou para um público de primas remotas, que tricotava instalado em volta nas bancadas de pau». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

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sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Explicação dos Pássaros. António Lobo Antunes. «Os Novos Emissores em Marcha. Quando o Telefone Toca. Que Quer Ouvir? Pensa Como o teu cabelo era castanho, os gestos decididos, nesse tempo»

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«(…) Como é que se sente?, perguntou numa voz derrotada, enquanto observava a mãe a pensar As lágrimas estão já do outro lado dos teus olhos, deslizam por dentro da cabeça, para a garganta, num ardor ácido de bagaço. Não a achas com melhor aspecto?, perguntaram de súbito à sua esquerda e ele viu, sentada na única poltrona do quarto, entalada entre a cama e a janela, uma prima remota com um livro aberto nos joelhos: Aposto que és a única pessoa da família disposta a acompanhar um moribundo. Colados ao vidro os prédios feios, desbotados das Amoreiras: Ainda estaria viva quando chegasse a sua vez? Mais corada, confirmei eu, mais cheia. E para mim mesmo, envergonhado: Desculpa mãe. Quando eu era pequeno e adoecia de gripe trazias-me a velha telefonia Philips do pai para o quarto, e eu ficava a escutar os programas de discos pedidos no torpor morno da febre. Os Novos Emissores em Marcha. Quando o Telefone Toca. Que Quer Ouvir? Pensa Como o teu cabelo era castanho, os gestos decididos, nesse tempo. Nunca deixarias, imaginava ele, que nos acontecesse mal. Os miúdos?, disse a mãe da infinita distância de dois metros. Havia botijas ferrugentas de oxigénio à cabeceira, um aspirador de secreções ao pé do lavatório, um ramo de flores numa jarra de vidro facetado, sobre um naperon. Óptimos, mãe, óptimos. Sem problemas. Sempre que os vou buscar ao colégio perguntam por si, e assaltou-o a certeza de que a mãe se apercebera da pausa, do segundo de espera, da mentira. Entravam no carro de roldão, empurrando-se um ao outro, como cãezinhos, para o beijarem. A porteira da escola, gorda, com cara de toupeira, sorria, na boutique ao lado uma senhora alta e ruiva acariciava com as longas unhas vermelhas um frasco estreito de perfume: Que tes… me dás. Onde é que vocês querem ir almoçar? Ao Pónei. À Tasca. Mas a senhora ruiva veio à porta e a ternura dissolveu-se-lhe num ápice no furioso desejo daquele rosto de louça, da saia travada que aprisionava o leque de carne espessa das coxas. Através dos anos o colega de carteira do liceu sussurrou-lhe ao ouvido: É o que elas querem, pá: agarras-te ao colchão, apertas os dentes, e é para trás e para a frente, para trás e para a frente, percebes, até os quadros se virem na parede.

Devem estar enormes, afirmou a prima do fundo da cadeira, a retirar o tricot de um saco de plástico. A respiração da mãe tornara-se um assobio difícil, baixo, imperceptível. As falanges, azuis, moviam-se devagar no cobertor em reptações de insecto. Vou esta tarde para Tomar, mãe, ao congresso, volto no domingo à hora do jantar. Livre-se de se apaixonar pelo indiano manhoso do médico nestes três dias: não quero vacas sagradas na família. Que falta de humor, catano, nem uma piada de jeito te sai, recriminou-se ele, graças pesadas como os pingos de chumbo das banheiras da insónia, parvoíces tolas de revista: preciso urgentemente de me reciclar no Charlie Hebdo. A prima espalhava cuidadosamente os novelos no colo: São tão simpáticos, os indianos, tão delicados. Ó Fernanda, reparaste no bigode dele? Imensas metástases pulmonares, informou o doutor, um derrame monstro na pleura. (Parecia referir-se às anginas de um esquimó que nenhum deles conhecia.) O melhor é irem-se preparando para o que der e vier.

Mostrava radiografias, exibia análises, fornecia explicações pomposas. A perfeição do nó da gravata irritava-me ao rubro: desabotoar-lhe o colarinho com um puxão, amarrotar o excessivo cuidado da camisa: a minha mãe vai morrer e este cabr… nas tintas. Os olhos verdes fitavam-no impiedosamente da almofada. Já saiu o teu manual?, soprou ela a custo». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

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Explicação dos Pássaros. António Lobo Antunes. «Bom dia, mãe, disse ele e pensou logo Como tu emagreceste catano, ao mirar os tendões do pescoço, a testa demasiado pálida, as veias salientes dos braços…»

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«Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como uma baleia morta, disse-me ele na rua da clínica olhando os prédios desbotados e tristes de Campolide, os monogramas de guardanapo dos anúncios luminosos apagados, os restos de purpurina das boas-festas das montras, um cão que vasculhava, na manhã de Janeiro, o monte de lixo de um edifício demolido: caliça, pó, pedaços de madeira, bocados de tijolo sem alma. Vinha a pé desde a avenida dos eléctricos, a cheirar os caixotes de fruta das mercearias num apetite brumoso e sôfrego de gaivota, como em criança, de regresso da escola, farejava o aroma ácido das drogarias ou a penumbra castanha, cor de sangue seco, das tabernas, onde um cego, de copo na mão, o seguia com as órbitas alarmantes e imóveis dos políticos nos cartazes, e pensou Trazem-me para a casa de saúde, empurram por mim o fecho de latão do guarda-vento (Não se incomode, Não se incomode, Não se incomode), obrigam-me a esperar na sala repleta de cadeiras de couro com grandes pregos amarelos (cadeiras de velório, verifico eu), uma mesa de pernas em saca-rolhas, reposteiros pesados como arrotos de juiz e as visitas invisíveis do meu funeral cochichando gravemente pelos cantos, enquanto eles parlamentam em voz baixa com empregadas poeirentas que se devem limpar de manhã a si próprias com espanadores de penas, retirando das gavetas das barrigas maços de cartas antigas e caixas de costura de embutidos. A rapariga magrinha e feia do PBX, de cócoras atrás de um balcão de farmácia como uma coruja na sua gruta, desenhava corações enlevados num bloco: devia ter ido duas vezes seguidas ao cinema com o mesmo oficial de finanças míope, que morava num quarto alugado à Penha de França e tirava por correspondência cursos de inglês, curvado para um caderno com bonecos (my garden, my uncle) diante de uma bica vazia. Disse-lhe o nome da mãe enquanto a outra, de língua de fora, aperfeiçoava um coração enorme, idêntico ao rótulo dos frascos de arear metais da época da avó: um batalhão de criadas de farda cinzenta friccionava com energia as maçanetas do andar de baixo: Esteja quieto com as mãos, menino, senão vou fazer queixa às suas manas. Cheiravam a sabão azul e branco, a açúcar amarelo e a pão de segunda, e à noite primos soldados, de grandes dedos de pedra de camponeses ou de pastores, vinham tocar-lhes à socapa o peito no portão do jardim. Terceiro quarto à direita, informou a coruja a esboçar uma flecha de cupido num sorriso lânguido de postal: as orelhas do oficial de finanças deviam arder por cima de uma soma de repente impossível, e ele ultrapassou uma espécie de copa onde duas enfermeiras arrulhavam, encostadas a um armário, como um casal de pombos num beiral: uma delas comia um bolo, de mão em concha para aparar as migalhas, e o sol da janela conferia às batas engomadas a alvura lisa do giz. Um sujeito de meia-idade cruzou-se com ele a examinar um balão de urina que segurava à altura dos olhos, como um lacrau morto, numa curiosidade pensativa. O odor de álcool, de medo e de esperança dos hospitais avançava e recuava no corredor, idêntico ao de um mar adormecido no qual flutuassem os gemidos sem som dos doentes, afogados pelos suspiros aflitos da família: Não quero aqui ninguém quando chegar a minha vez: enxotá-los com as sobrancelhas para onde os não veja, aonde não chegue a sua insuportável amabilidade compungida, os seus cuidados excessivos, as pupilas amareladas pelo seu próprio pânico da morte. Ficar sozinho, de nariz no tecto, a esvaziar-me lentamente de mim: como me chamo, o sítio em que nasci, os anos que tenho, os filhos grisalhos que fornecem pormenores no corredor. Bom dia, mãe, disse ele e pensou logo Como tu emagreceste catano, ao mirar os tendões do pescoço, a testa demasiado pálida, as veias salientes dos braços, as íris verdes cravadas na almofada, redondas, a espiá-lo, o suor viscoso do nariz. A aliança dançava no dedo: Qual de nós a tirará daqui a pouco, a pousará no prato de louça da cómoda do teu quarto, sob o espelho, inundado de colares, de brincos, de anéis? Não tenho gravata preta para o enterro, só a de tricot cinzento de um Natal antigo, do tempo em que ainda usava casaco, se tomava a sério, escrevia intermináveis ensaios péssimos que ninguém leria, eriçados de conceitos prolixos, de teorias confusas, de aproximações absurdas. O dedo invisível do editor roçou-lhe o braço: Talvez alguma coisa se possa aproveitar desses estudos». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, A Arte, 

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A Noiva Ladra. Margaret Atwood. «Mais do que apreciava: criava. O porquê ainda é obscuro. Tony não sabe porque se sente compelida a saber. Quem se importa com o porquê, a essa altura?»

Que estejas em Paz. Do amigo.
Cortesia de wikipedia e jdact

«A história de Zenia deve começar por onde começou Zenia. Deve ter sido em algum lugar muito tempo atrás e muito distante no espaço, pensa Tony; algum lugar sofrido e bastante confuso. Uma tipografia europeia, colorida à mão, de uma cor ocre, com a luz do sol cinzenta e muitos arbustos, arbustos com folhas grossas e raízes emaranhadas e antigas, atrás dos quais, fora do alcance da visão, na vegetação rasteira, e aludida apenas por uma bota protuberante, ou a mão solta de alguém, algo corriqueiro mas apavorante está acontecendo. Ou essa foi a impressão com que Tony ficou. Mas tanto já foi apagado, tanto já foi enfaixado, tanto já foi propositalmente entrelaçado que Tony já não sabe mais com certeza qual dos relatos de Zenia a respeito de si mesma é verdadeiro. Ela dificilmente poderia perguntar agora, e, mesmo se pudesse, Zenia não responderia. Ou mentiria. Ela mentiria com seriedade, com um tremor na voz, uma vibração de tristeza contida, ou mentiria com hesitação, como se fizesse uma confissão; ou mentiria com uma raiva impassível, desafiadora, e Tony acreditaria nela. Acreditara antes. Escolha um fio qualquer e corte, e a história se desenreda. É assim que Tony começa uma de suas palestras mais intricadas, a que diz respeito à dinâmica dos massacres espontâneos. A metáfora é com tecelagem ou talvez com tricô, e com tesouras de costura. Ela gosta de usá-la: ela gosta do leve choque no rosto de seus ouvintes. É a mistura de imagem doméstica e derramamento de sangue em massa que causa isso; uma mistura que teria agradado a Zenia, que apreciava essa turbulência, essas contradições violentas.

Mais do que apreciava: criava. O porquê ainda é obscuro. Tony não sabe porque se sente compelida a saber. Quem se importa com o porquê, a essa altura? Um desastre é um desastre; aqueles que foram feridos por ele continuam feridos, os que foram mortos continuam mortos, os escombros continuam a ser escombros. Falar das razões é irrelevante. Zenia era um mau negócio e deve ser deixada de lado. Para que tentar decifrar seus motivos? Mas Zenia também é um enigma, um nó: se Tony simplesmente achasse uma ponta solta e puxasse, muita coisa seria descoberta, para todos os envolvidos, e também para ela mesma. Ou era isso o que ela esperava. Ela tem a crença dos historiadores no poder salutar das explicações. O problema é por onde começar, pois nada começa quando começa, e nada acaba quando acaba, e para tudo é necessário um prefácio: um prefácio, um pós-escrito, um gráfico de acontecimentos simultâneos. A história é um constructo, diz aos seus alunos. Qualquer ponto de entrada é possível, e todas as escolhas são arbitrárias. Porém, há momentos definitivos, momentos que usamos como referência, pois eles quebram nosso senso de continuidade, mudam a direcção do tempo. Podemos olhar para esses acontecimentos e dizer que depois deles nada foi como antes. Eles nos dão começos, e também finais. Nascimentos e mortes, por exemplo, e casamentos. E guerras. São as guerras que interessam a Tony, apesar de suas golas enfeitadas com rendas. Ela gosta de resultados claros. Zenia também, ou era isso o que Tony imaginava antigamente. Agora, ela não sabe ao certo.

Uma escolha arbitrária, portanto, um momento definitivo: 23 de Outubro de 1990. É um dia radiante, quente de forma atípica para a estação. É uma terça-feira. O bloco soviético está desmoronando, os mapas antigos se dissolvendo, as tribos orientais novamente se movimentam pelas fronteiras que se alteram. O Golfo passa por problemas, o mercado imobiliário está em queda, e um buraco enorme se formou na camada de ozono. O Sol entra em escorpião, Tony almoça no Toxique com duas amigas, Roz e Charis, uma brisa leve sopra sobre o lago Ontário, e Zenia retorna do mundo dos mortos.

Tony acorda às seis e meia, como sempre. West continua a dormir, roncando um pouco. É provável que em sonhos ele esteja gritando; nos sonhos, os sons são sempre mais altos. Tony examina seu rosto adormecido, o maxilar anguloso relaxado e suavizado, os olhos de ermitão, absurdamente azuis, fechados com tanta delicadeza. Está feliz por ele ainda estar vivo: as mulheres vivem mais que os homens, e os homens têm coração fraco, às vezes eles simplesmente desmaiam, e embora ela e West não estivessem velhos, não estavam nem um pouco velhos, ainda assim, mulheres de sua idade já tinham acordado de manhã e encontrado homens mortos a seu lado. Tony não considera tal pensamento mórbido. Ela é feliz também num sentido mais geral. Ela é feliz, de qualquer modo, por West estar nesse mundo, e nessa casa, e por ele dormir todas as noites ao lado dela e não em algum outro lugar. Apesar de tudo, apesar de Zenia, ele ainda está ali. Parece um milagre, na verdade. Há dias em que ela não se consegue esquecer disso». In Margaret Atwood, A Noiva Ladra, 1995, Editora Rocco, 2013, ISBN 978-853-252-696-0.

Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Margaret Atwood, Literatura,

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Arrancados da Terra. Lira Neto. «… agora, St' James Street sofre duas suaves inclinações à direita, mudando de nome e tornando-se, primeiro, Pearl Street (Rua da Pérola, assim baptizada graças às muitas ostras perlíferas encontradas na região pelos antigo, colonizadores)»

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Para viver o sem-fim da eternidade

«(…) Os poucos que têm oportunidade de entrar no local, com a devida autorização do reservado administrador oficial, constatam que, entre as covas remanescentes, a mais antiga está datada de 1683, portanto, decorridas quase três décadas da fundação do cemitério. A lápide original de pedra tosca, com epitáfio em versos hebraicos, foi posteriormente substituída por outra, de metal, com texto em ladino, língua semelhante ao espanhol arcaico falada pelos judeus sefarditas, isto é, os naturais de Sefarad, o nome citado no Antigo Testamento para uma terra que seria, segundo a tradição judaica, a Península Ibérica. Numa tradução livre, indica:

DEBAIXO DESTA LOUSA SEPULTADO,

JAZ BEN]AMIN BUENO DE MESQUITA.

FALECEU E DESTE MUNDO FOI TOMADO

NO 4 DE CHESHVAN, SUA ALMA BENDITA

AQUI DOS VIVENTES SEPARADA

ESPERA POR SEU DEUS, QUE RESSUSCITA

OS MORTOS DO SEU POVO COM PIEDADE

PARA VIVER O SEM.FIM DA ETERNIDADE

(1683)

O Cheshvan é o oitavo mês do calendário eclesiástico judaico. Além do idioma, o apelido do morto atesta a sua origem ibérica. Os que continuam a seguir por St' James com destino ao extremo sul de Manhattan mal desconfiam de que, talvez por não terem reparado no pequeno cemitério, deixaram para trás um dos possíveis limiares de uma história tão terrível quanto admirável, cheia de peripécias, reviravoltas e episódios trágicos que roçam o inacreditável, e, por isso mesmo, constituída por muitas incertezas, controvérsias e incógnitas.

Nesse ponto, o que mais chama a atenção são os grandes condomínios que se erguem dos dois lados da rua. É o caso do sinuoso Chatham Green, prédio de 21 andares e arquitectura modernista, construído em forma de S. Nada mais nas imediações remete para a época da instalação do cemitério. A ilha de Manhattan era atravessada por regatos, pântanos e quedas de água, ocupada por florestas de pinheiros, carvalhos e castanheiros imemoriais. Os copiosos estuários abrigavam colónias de mexilhões e mariscos. Alces e veados pastavam incautos pelos bosques, espiados por lobos selvagens' Os ursos também eram numerosos e ameaçadores. Cisnes, patos e gansos nadavam em rios cheios de salmões, trutas e linguados partilhando os alagadiços com mergulhões, garças e castores de pele lustrosa.

O pequeno núcleo habitacional existente no século XVII situava-se para além da área onde, agora, St' James Street sofre duas suaves inclinações à direita, mudando de nome e tornando-se, primeiro, Pearl Street (Rua da Pérola, assim baptizada graças às muitas ostras perlíferas encontradas na região pelos antigo, colonizadores); depois, Water Street (Rua da Água, pelo facto de, antes de os aterros centenários a terem distanciado cada vez mais das margens do East River, ela ter demarcado a costa da zona baixa a leste da ilha). Hoje, a rua dista cerca de 200 metros dos armazéns e barracões da antiga zona portuária, os mesmos que, revitalizados, abrigam hoje lojas de marca, restaurantes sofisticados e as instalações do museu marítimo da cidade. A velha Water Street, que antes margeava o rio, tornou-se um corredor de titãs arquitectónicos de vidro, cimento e aço. No ponto em que cruza a célebre Wall Street, chega-se por fim ao limite geográfico do que, em 1656, data da fundação da necrópole dos judeus, era então considerado o início da área urbana da Manhattan colonial». In Lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo Editorial, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

JDACT, Lira Neto, Literatura, Judeus, Narrativa,

Arrancados da Terra. Lira Neto. «É difícil imaginar que uma região feérica como esta se situou, um dia, ainda que há cerca de três séculos e meio, numa zona rural»

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Para viver o sem-fim da eternidade

«Quem segue a pé de Chinatown em direcção ao Distrito Financeiro de Nova Iorque tarvez passe distraído pero número 55 de St. James Place, pelos 22 metros de comprimento de um muro baixo feito de pedras sobrepostas, encimado por grades pontiagudas e enferrujadas. Por trás dele, nada de excepcional parece chamar a atenção no pequeno descampado estabelecido metro e meio acima da calçada, o solo coberto de musgo e ervas daninhas. À primeira vista, aparenta ser apenas um terreno baldio, simples vazio urbano dando para os fundos deteriorados de prédios populares de três e cinco andares. Assim de passagem, só mesmo uma singular dose de atenção e curiosidade discernirá a praça rectangular disposta no solo do outro lado, as letras em alto-relevo recobertas pela pátina do tempo:

PRIMETRO CEMITÉRIO

DA

SINAGOGA ESPANHOLA E PORTUGUESA

SHEARITH ISRAEL

DA CIDADE DE NOVA IORQUE

1656-1833

Shearith Israel, nome da congregação mais antiga de Manhattan, significa Remanescente de Israel, referência ao povo judeu, o povo que presumivelmente descende da personagem bíblica Jacob, o último dos patriarcas, que segundo a Torá, o livro sagrado do judaísmo, foi rebaptizado Yisrael (aquele que luta com Deus), depois de medir forças com um anjo guardião disfarçado de ser humano. Os seus doze filhos terão dado origem às doze tribos israelitas, ou seja, ao povo de Israel. Se atraído pela discreta tabuleta, o observador mais atento perceberá que os blocos cinzentos dispostos de modo simétrico no terreno, do outro lado do gradeamento, são na verdade velhos túmulos e lápides funerárias, alguns deles quase ocultos pela vegetação rasteira. As inscrições dos jazigos, obscurecidas por sucessivas camadas de fuligem e poeira, revelam na sua maioria caracteres em hebraico.

À esquerda, outra placa metálica, ainda mais afectada pela oxidação fosco-esverdeada que denuncia a ausência de manutenção, apresenta uma breve informação adicional. Cravado num recôndito pórtico de tijolos, meio oculto pela gambiarra dos fios expostos que saem da parede do prédio vizinho, o letreiro indica que ali está o que resta do primeiro cemitério judeu nos Estados Unidos, consagrado no ano de 1656, quando foi descrito como fora da cidade.

É difícil imaginar que uma região feérica como esta se situou, um dia, ainda que há cerca de três séculos e meio, numa zona rural. De facto, os registos históricos dão conta de que, muito antes de os nivelamentos, aterros e drenagens alterarem de forma radical a topografia da ilha, as catacumbas dos judeus se encontravam mesmo fora da cidade, jazendo no sopé da colina de uma quinta bucólica, com vista privilegiada e imediata para o East River. Hoje, as sepulturas de St. James Place são uma relíquia histórica quase ignorada. Até princípios do século XIX, as dimensões do espaço eram bem maiores, embora já não consigamos defini-las com precisão. A progressiva expansão urbana acabou por tragar todo o espaço em redor, inclusive os próprios sepulcros, forçando a paulatina exumação de centenas de restos mortais, transferidos para outros locais à medida que a cidade se agigantava.

Reduzido a menos de 200 metros quadrados de área, o terreno submergiu numa relativa obscuridade. O cadeado no portão impede a entrada espontânea de visitantes. O mau estado de conservação e a presença de eventuais consumidores de crach pelas redondezas apressam o passo dos transeuntes, inibindo olhares mais contemplativos». In Lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo Editorial, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

JDACT, Lira Neto, Literatura, Judeus, Narrativa,

terça-feira, 24 de agosto de 2021

As Três Sereias. Irving Wallace. «Já tomou o café? Ainda não. Estou-me vestindo. Espero por você, então. Tive de passar sem ele, esta manhã. Dormi de mais. Que quer que diga à Suzu?»

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«(…) Enquanto os fios de água desciam pelas curvas da sua carne cintilante, a sua mente voltou de novo à carta de Easterday. Que dissera ele acerca do vestuário usado nas Três Sereias? Os homens traziam sacos púbicos, presos frouxamente por fios. Decerto que isso não era realmente uma coisa chocante se se considerasse a maneira como os homens se vestiam nas praias durante o verão. Contudo, apenas aqueles sacos, e nada mais. Porém, eles eram nativos, e aquilo não podia deixar de ser decente, quase clínico. Vira centenas de fotografias de nativos, alguns deles sem qualquer saco púbico, e isso, neles, parecera absolutamente natural.

Ocorrera-lhe, uma vez que estava agora de pé no meio do quarto de banho, completamente nua, que era assim que teria de aparecer em público nas Três Sereias. Não, não era bem assim. Easterday escrevera que as mulheres usam curtos saiotes, sem qualquer roupa de baixo, e andam com os seios nus. Mas, céus, era quase o mesmo que mostrar todo o corpo.

Claire voltou-se para se mirar no espelho alto, da porta. Tentou imaginar o que pareceria dessa maneira, nua, aos nativos das Três Sereias. Tinha um metro e cinquenta e três centímetros de altura e pesava, conforme verificara aquela manhã, cinquenta e um quilos. O seu cabelo era escuro e brilhante, cortado curto, com as extremidades caídas sobre as faces. Os olhos em amêndoa pareciam de uma vaga casta do Extremo Oriente, faziam evocar as jovens submissas e recatadas da antiga Cathay, e contudo o efeito sofria o contraste da cor, azul-fumado; sexy, dissera uma vez Marc. O nariz era pequeno, com narinas bastante delicadas, os lábios de um vermelho profundo e a boca generosa, demasiado generosa. Do declive dos ombros e do peito, os seios desenvolviam-se gradualmente. Estes eram largos, cheios, como odiara que assim fossem na adolescência, todavia altos e jovens, o que constituíra uma fonte de saturação quando tinha vinte e cinco anos. As costelas mostravam-se um pouco, que pensariam os nativos?, mas o abdomem era quase liso, apenas ligeiramente arredondado, e as proporções das coxas e das pernas delgadas não pareciam más, realmente. Contudo, não se podia prever o que sentiriam outros povos, noutras culturas, os polinésios poderiam considerá-la magra, com excepção do peito. Então recordou-se do saiote. Trinta centímetros. Era fácil ver que trinta centímetros permitiam apenas dez de modéstia extra. Não falando do vento... Meu Deus, que aconteceria quando se curvasse ou levantasse a perna para subir um degrau, ou, também, como se sentaria? Decidiu discutir todo este assunto do vestuário com Maud.

De facto, uma vez que esta era a sua primeira viagem de estudo, devia perguntar a Maud o que se exigiria dela nas Três Sereias. Enquanto se enxugava, viu-se uma vez mais ao espelho. Como seria quando estivesse grávida? Realmente, tinha uma barriga tão pequena! Onde haveria espaço para outra pessoa, o seu bebê? Bem, havia sempre, a natureza tinha seus segredos, mas era absolutamente impossível prever, neste momento, o que aconteceria. Ao pensar na criança que teria, mas não tinha, franziu automaticamente a testa. Desde o princípio falara com paixão, e mais tarde com naturalidade, em ter um filho, mas Marc opusera-se a isto. Isto é, opunha-se por agora, disse sempre. As razões que o levavam a pensar assim pareciam importantes, quando as manifestava; porém, quando se encontrava só, com tempo para meditar nelas, pareciam-lhe sempre insignificantes. Devemos ajustar-nos primeiro ao casamento, afirmara ele uma vez. Devemos reservar alguns anos só para nós e evitar todas as responsabilidades que pudermos, declarara de outra. E por último acrescentara mais uma razão: era preciso que Maud se instalasse numa outra casa, se separasse deles, vivessem sós, os dois, antes de iniciarem uma nova família.

Agora, à medida que passava a toalha pelas pernas, perguntava-se se qualquer dessas razões era honesta, para não dizer válida, ou se dissimulava a verdade: que Marc não desejava um filho, que temia ter um, pois ele próprio era ainda uma criança, uma criança crescida, demasiado dependente para arcar com responsabilidades. Claire não gostou dessa momentânea suspeita e decidiu não especular mais.

Ouviu bater à porta, atrás do espelho. Claire? Era a voz de Marc. Teve um sobressalto de surpresa e sentiu-se culpada, devido a seus pensamentos, agora que Marc estava tão perto. Bom dia, volveu, com alegria. Já tomou o café? Ainda não. Estou-me vestindo. Espero por você, então. Tive de passar sem ele, esta manhã. Dormi de mais. Que quer que diga à Suzu? Alguma coisa especial? O costume. Muito bem... A propósito, a última comunicação sobre as pesquisas chegou já de Los Angeles. Novidades sensacionais? — Ainda não tive tempo de examiná-la. Vamos lê-la juntos, ao café. Muito bem. Depois de Marc se afastar, Claire pôs rapidamente o soutien, as calcinhas, colocou o cinto das ligas, calçou as meias e prendeu-as e vestiu a combinação cor-de-rosa. Ao sair da atmosfera quente do banheiro para entrar no quarto, mais fresco e claro, perguntou-se se a comunicação apresentaria qualquer facto novo. Dentro de alguns minutos saberia. Penteou-se apressadamente, pôs batom nos lábios, não usava cosméticos no resto do rosto, vestiu a saia leve de lã cor de cacau, em seguida o suéter de cachemira bege, abotoou-o, procurou uns sapatos de salto baixo, calçou-os, dirigiu-se imediatamente para o hall e desceu as escadas». In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, coleção Dois Mundos, 2000, ISBN: 978-972-381-025-7.

Cortesia de LBrasil/DMundos/JDACT

JDACT, Irving Wallace, Literatura, A Arte, 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A Segunda Dama. Irving Wallace. «Hum... Acabou de comer a sanduíche e inclinou a cabeça. Julgo que sim, substancialmente. Colocou a mão diante da boca e utilizou um palito para retirar resíduos de comida entre os dentes»

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«(…) Pelo menos, tanto como Rosalyrtn Cárter. Tem instintos extraordinários. Quanto a mim, nunca houve lá uma mulher tão atraente. Concordo. É lyn prazer trabalhar com ela. Tem-na visto com frequência, desde que se tornou Primeira Dama? Não. Tenho pouco em comum com a Ala Leste. Pertenço à fauna da Ala Oeste. Política presidencial, exclusivamente. Em todo o caso, ela mostrou-se amável ao ponto de me convidar para três ou quatro jantares oficiais. Eu não sabia que você figurava no seu passado. Um dia, não há muito tempo, ela mencionou-o. Sim? A que propósito? Disse que lhe salvou a pele na sua primeira reportagem no Los Angeles Times. Falou disso? Sim. Afirmou que lhe devia muito. Outro qualquer teria feito o mesmo. No fundo, como repórter, não passava de uma principiante que acabava de abandonar a universidade, com um par de trabalhos publicitários no seu activo. Kilday fez uma pausa. Que lhe revelou? Apenas os factos gerais. Pensa que você pode desenvolvê-los. Precisamos de material colorido para o livro. Continue. O primeiro trabalho para o jornal, por exemplo salientou Parker. Era muito importante para ela, e o administrador..., ignoro o nome... Dave Nugent. Obrigado. Incumbiu-a de entrevistar uma pessoa de relevo... O dr. Jonas Salk, da vacina contra a poliomielite. Deslocou-se de La Jolla para pronunciar um discurso em Los Angeles. Exacto. Por conseguinte, ela solicitou a entrevista e obteve-a. Salk mostrou-se cordial e forneceu-lhe material excelente. Billie sentou-se diante da máquina de escrever, compôs o artigo e entregou-lho, para que o apresentasse ao administrador. Ora, você considerou o texto horrível, próprio de uma principiante, menosprezando os pontos mais importantes, etc., e, sem lhe dizer nada, conservou-o em seu poder, pois sabia que se o editor o lesse a despedia imediatamente. Assim, confiou-o a um amigo, um veterano chamado Steve Woodson... Steve Woods corrigiu Kilday. Pois, obrigado. Ele reescreveu o artigo totalmente e devolveu-lho. Você mostrou-o então ao editor, que gostou e concedeu um lugar permanente a Billie, a qual ficou abismada com o que viu publicado. Foi ter consigo e você elucidou-a. Explicou que a entrevista fora conduzida de uma forma deplorável e indicou onde tinha errado, acrescentando que a entregara a Woods, para que a alterasse, tornando-se necessário rectificar os tópicos abordados para ficar aceitável. Ela demonstrou que podia aprender com rapidez e, a partir de então, procedeu em conformidade com as regras. Esta é a versão da Primeira Dama. Corresponde à verdade, substancialmente?

Hum... Acabou de comer a sanduíche e inclinou a cabeça. Julgo que sim, substancialmente. Colocou a mão diante da boca e utilizou um palito para retirar resíduos de comida entre os dentes. Só noto uma incorrecção, e deve-se ao facto de eu nunca lhe haver revelado a verdade. Não interveio nenhum Steve Woods. Na realidade, nunca existiu, de contrário eu não lhe mostraria o artigo para que ninguém soubesse que ela produzira uma borracheira no seu primeiro trabalho. Não queria que o facto chegasse ao conhecimento das altas esferas do jornal. O que aconteceu foi que o levei para casa e tratei de reescrever, sem que jamais lhe falasse nisso. Portanto, continua sem saber e você não se pode servir desse episódio. Revelo-lho apenas a título confidencial. Enquanto terminava o café, Parker reflectia que tinha na sua frente um homem curioso. Já não havia muitas daquelas pessoas do tipo altruísta, mesmo tratando-se da Primeira Dama como principal personagem envolvida. Sem dúvida assentiu, após breve silêncio. Por conseguinte, ela ingressou nos quadros do jornal e dedicou-se a entrevistas importantes durante cerca de três anos. Certo. E uma das últimas foi a um senador da Califórnia chamado Andrew Bradford, altura em que se iniciou verdadeiramente a sua história. com certeza. Gostava de recolher elementos sobre outras celebridades que entrevistou antes disso. Não vejo inconveniente». In Irving Wallace, A Segunda Dama, 1980, Editora Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 1983, ISBN 978-972-380-936-7.

Cortesia ELdoBrasil/JDACT

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A Segunda Dama. Irving Wallace. «Mas primeiro gostava de ouvir informações dos seus lábios. Que sucedeu na sua reportagem inaugural? E ela elucidara-o acerca do que conseguira evocar»

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«(…) Exacto. O Phileas Fogg de Verne fê-lo nesse lapso de tempo em ficção, enquanto Nellie Bly completou a viagem na realidade em 1889 e 1890. Circundou o mundo em setenta e dois dias. Por outro lado, antes disso, quando iniciava as actividades como repórter estagiária no World de Nova Iorque, efectuou uma reportagem sobre loucos que tinham sido isolados na Ilha Blackwell e a forma como eram tratados. Mas em vez de recolher elementos pelos meios ortodoxos, disfarçou-se com roupas andrajosas, assumiu uma expressão alucinada e conseguiu que a internassem lá. Inteirou-se assim, em primeira mão, das condições miseráveis e crueldade dispensadas aos companheiros. Quando regressou à liberdade, escreveu dois artigos de primeira página sobre a experiência que vivera. As revelações tornaram-na famosa de um dia para o outro. Portanto, voltando ao nosso assunto, tinham-me encomendado uma tarefa de rotina relativa a um centro de reabilitação de drogados em Santa Mónica, lembrei-me de Nellie Bly e cismei: porque não? Conseguiu ser admitida no centro como toxicómana?

Consumidora de cocaína. E resultou. Mesmo em cheio. Depois, escrevi a reportagem na primeira pessoa, do ponto de vista de uma paciente. Bem, não direi que foi sensacional (apareceu numa publicação pouco importante ao lado de anúncios de compra e venda de propriedades), mas fez incidir uma certa atenção em mim e alguns elogios. Em particular, da minha família. Meu pai adorou-a. Ficou mesmo tão impressionado, que enviou uma cópia a um amigo pertencente à administração do Los Angeles Times. Este também a apreciou, além da particularidade de ter sido escrita pela filha de Clarence Lane (meu pai era muito conhecido na altura, pelos seus inventos), e mostrou-a ao editor, o qual me convocou para uma entrevista e decidiu admitir-me nos quadros do jornal, à experiência. Que aconteceu? O meu primeiro trabalho foi um fiasco. Billie Bradford soltara uma risada. Tinham-me posto na rua passadas quarenta e oito horas, sem a intervenção de George Kilday. Era o responsável do departamento de reportagens e salvou-me a pele. Como?

Preferia não aprofundar o assunto. Pergunte-lhe, que não hesitará em o elucidar. Agora, trabalha aqui, em Washington, como chefe da delegação do Los Angeles Times. De qualquer modo, acho conveniente que o procure. Há-de fornecer-lhe muitos elementos acerca da minha incursão pelo jornalismo que já não recordo. Tem, realmente, um dado clínico, no que se refere a repórteres. Fale com ele. Não deixarei de o fazer, mrs. Bradford. Mas primeiro gostava de ouvir informações dos seus lábios. Que sucedeu na sua reportagem inaugural? E ela elucidara-o acerca do que conseguira evocar. Isto ocorrera há alguns meses e fora o momento em que Parker se inteirara pela primeira vez do modesto papel desempenhado por Kilday na vida de Billie Bradford. Em face disso, decidira encontrar-se com ele e, à terceira tentativa, achava-se finalmente sentado na sua frente, no café do Madison. Parker apressou-se a manifestar gratidão pelo espírito de cooperação do jornalista, que esboçou um gesto de protesto. A empregada reapareceu para receber instruções e, enquanto Kilday esquadrinhava a ementa e optava por canja de galinha e uma sanduíche de queijo e alface em pão de centeio, Parker observava-o dissimuladamente. Tinha sobrancelhas brancas espessas, nariz proeminente, queixo largo com dois pequenos cortes produzidos ao fazer a barba, numa cabeça apoiada num pescoço curto e corpo atarracado envolto num fato cinzento amarrotado.

Depois de encomendar por seu turno, indicou o gravador na mesa de plástico entre ambos e perguntou: Importa-se? De modo algum. Confesso que nunca utilizo essas geringonças. Acho-as uma perda de tempo. Dão muito trabalho na transcrição e a maior parte do material não é essencial. Mas não me importo absolutamente nada que se sirva de uma. Parker premiu uma tecla e as bobinas da cassette principiaram a girar. Há quanto tempo está em Nova Iorque? Fui transferido para cá no ano anterior ao ingresso de Billie Bradford na Casa Branca. Há três anos e meio, portanto. Mais ou menos. Orgulho-me muito dela. Incutiu uma aparência nova à Casa Branca. É elegante como Jacqueline Kennedy, inteligente e honesta como Betty Ford e mais criativa que ambas, assim como mais ao corrente das questões políticas». In Irving Wallace, A Segunda Dama, 1980, Editora Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 1983, ISBN 978-972-380-936-7.

Cortesia ELdoBrasil/JDACT

JDACT, Irving Wallace, USA, Rússia, Literatura, A Arte, 

domingo, 22 de agosto de 2021

Susanna Kearsley. Mariana. «Senti uma leve ponta de nostalgia pelo meu apartamento e pela minha vizinha do lado, Angie, com quem podia sempre contar para um café e dois dedos de conversa a meio da tarde»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Muito bem. A sua expressão desanuviou e desapareceu outra vez. Instala-se sempre um certo pânico, não é? Mr. Owen posicionou a minha mesa contra a parede da copa. Mas não há-de tardar a organizar tudo. Pois bem, acho que a mobília está toda. Só faltam os caixotes. Vou então buscar esses copos para o chá, certo? Era um homem estupendo, sem dúvida o homem mais organizado que já conheci, e valia bem o dinheiro extra que ia pagar pelos seus serviços. Quando comprara a casa três semanas antes, não reflectira muito sobre a questão da mudança da minha tralha de Londres para Exbury. Mas quando regressei ao meu apartamento em Bloomsbury e comecei a embalar os meus pertences, não tardei a perceber que precisava de ajuda profissional. Além do valioso conjunto de móveis do meu quarto, outra herança da tia Helen, tinha a mobília da sala e da cozinha, os materiais do meu estúdio, o meu estirador e as centenas de livros que tinha comprado em saldos e lojas de segunda mão durante os anos que vivi em Londres. Por recomendação de um grande amigo, tinha contactado mr. Owen e ele viera em meu socorro como um cavaleiro moderno.

No meu apartamento, os caixotes perfeitamente fechados e etiquetados tinham parecido enormes e opressivos. Aqui na casa, quase passavam despercebidos, eclipsados pelas meras proporções da arquitectura e pelas salas espaçosas e cheias de luz. Enchera-me de satisfação ter achado o interior da velha casa em tudo tão cativante como o exterior e adequado aos meus gostos tradicionais. Entrava-se pela porta principal para um grande átrio, apainelado a carvalho ricamente polido, século XVII, tinha declarado mr. Owen a um relance, e de excelente qualidade. Mesmo em frente, uma pesada escadaria de carvalho no centro do átrio subia vários degraus, detinha-se num patamar quadrado e descrevia então um ângulo de noventa graus para a esquerda, continuando a subida até ao primeiro andar. À esquerda e à direita do átrio, havia portas que abriam para a sala de estar e para o escritório respectivamente, enquanto à direita da escadaria um estreito corredor conduzia à cozinha. A sala de jantar, a cozinha e uma copa tradicional ocupavam a metade traseira do rés do chão, com largas e luminosas janelas que davam para a planície verde e ondulante com o seu tapete recente de precoces flores silvestres primaveris. Em cima havia quatro quartos. O maior, a todo o comprimento do lado norte da casa, sobre o escritório e a copa, fora a escolha óbvia para eu ocupar. Até tinha uma lareira que funcionava, bem como um armário de dimensão considerável encaixado no espaço por baixo das escadas para o sótão. Destinara o pequeno quarto das traseiras ao meu estúdio, e não me importara nada de deixar, entretanto, os dois quartos da frente por mobilar, servindo de espaços de arrumo até me instalar definitivamente. Entre o estúdio e o quarto, abrindo para o largo patamar, havia uma casa de banho completa: um autêntico luxo para uma casa mais antiga. Havia, naturalmente, fendas e rangidos, protestos das canalizações e a humidade esboroara o estuque em redor das janelas do andar de cima, mas não havia nada que não pudesse ser oportunamente reparado.

Tem aqui uma bela casa antiga, disse mr. Owen, expressando os meus próprios pensamentos, ao sentar-se nos caixotes ao meu lado, e passando-me um copo de esferovite. Construída na década de 1580, foi o que disse? Foi o que me disse o agente imobiliário, confirmei. Servi chá forte ao homem das mudanças e aos seus dois assistentes transpirados, e instalei-me no assento improvisado para saborear o meu chá fumegante. Infelizmente, não conheço muito bem a história da casa. Ah, a gente da terra há-de pô-la a par, com certeza, disse mr. Owen sabiamente. Estas casas antigas têm sempre um passado. Na maioria, interessante. Há-de ficar a saber mais a beber uma cerveja no pub do que a ler livros de História. Vou ter isso em mente. Os dois homens mais novos tomaram o chá num silêncio respeitoso, esperando pacientemente que mr. Owen acabasse de conversar e lhes fizesse sinal para retomarem o trabalho. Por fim, depois da segunda chávena de chá, ele levantou-se. Precisamente nesse momento, um estrondo terrível ressoou no átrio e eu pus-me de pé num salto. É só a porta de entrada, menina, disse um dos trabalhadores mais jovens. As dobradiças abrem para dentro, compreende, e o fecho não é muito resistente. Abre-se facilmente com uma forte rajada de vento.

Mr. Owen foi imediatamente examinar a porta, colocou uma capa de protecção no puxador interior para evitar mais estragos na parede apainelada e sugeriu que eu comprasse uma fechadura nova logo que possível. Todo o cuidado é pouco, foi o seu conselho paternal. Os três homens demoraram menos de uma hora a descarregar e a distribuir o resto dos meus haveres e às duas e meia dei por mim de pé à porta, dirigindo um último aceno à carrinha que se afastava e sentindo-me, pela primeira vez, muito insegura de mim mesma. E muitíssimo só. Fui de súbito atingida pela enormidade do que acabara de fazer, com uma força que nem o absoluto cepticismo do meu irmão nem os sermões mais brandos dos meus pais ao telefone haviam conseguido. Dissera a todos que podia trabalhar em Exbury tão bem como em Londres. Aliás, seria provavelmente mais produtiva em Exbury, longe das distracções da cidade. E comprar uma casa era, afinal, um investimento sólido. O facto de estar a trocar um ambiente familiar e um círculo de amigos estabelecido por uma comunidade de estranhos nunca me parecera muito importante. Até agora. Senti uma leve ponta de nostalgia pelo meu apartamento e pela minha vizinha do lado, Angie, com quem podia sempre contar para um café e dois dedos de conversa a meio da tarde». In Susanna Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.

Cortesia de EASA/JDACT

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