terça-feira, 31 de outubro de 2023

No 31. Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio Pereira Couto. «A Igreja Católica tentou conter a expansão cátara. Começou enviando missões de catequização formadas por monges cistercianos, a mesma Ordem de Bernardo de Clairvaux…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os Cátaros e o Segredo do Santo

Organização da Igreja cátara

«O segundo era o consolamentum, já citado, feito de forma espiritual, nunca com água que, como qualquer coisa material, é maldita. Era necessário passar por este para se tornar um perfeito. Acontecia em duas partes: o servitium era uma confissão geral feita pela assembleia; o paternoster era uma cerimônia em que o candidato se prostrava diante do bispo-chefe e rogava para que este o abençoasse e por ele intercedesse junto a Deus enquanto renunciava à Igreja romana e à cruz traçada na cabeça na hora do baptismo.

Essa cerimónia terminava com a troca de beijos entre os presentes, chamada de paz. Havia ainda dois outros sacramentos conhecidos: a penitência e a quebra do pão, uma espécie de comunhão, já que não acreditavam na material transubstanciação.

Cada igreja cátara tinha um bispo-chefe, que era auxiliado por dois perfeitos, identificados como filius maior e filius minor, que também recebiam a denominação de bispos. Quando o chefe morria, o cargo era automaticamente passado para o filuis maior.

As lendas do Santo Graal

Os cátaros coleccionaram, ao longo dos anos, muitas lendas que, segundo algumas fontes, estão registadas em documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano. Pela mitologia dos caçadores de tesouros, o Santo Graal estará ligado a dois grupos religiosos que têm sua existência comprovada historicamente: os cavaleiros templários e os cátaros ou albigenses. Em muitas das histórias contadas, os cátaros figuram como o grupo que possui o segredo da localização do Santo Graal e de outro Santo Sudário, que não o famoso de Turim. Isso despertou a imaginação de caçadores de tesouros com o passar dos anos.

Os templários são conhecidos por terem supostamente passado muitos anos acampados no Monte do Templo, em Jerusalém, e terem usado os estábulos de Salomão para fazer escavações. Eles teriam encontrado algo valioso sob as ruínas. Alguns escritores acreditam que eles teriam achado o Santo Graal, e outros creem que foi a Arca da Aliança. Há também outras suposições. De tudo o que se especulou sobre a posse de tesouros pelos templários, o facto é que jamais foram encontrados, e nunca se soube de qualquer registo histórico que comprovasse sua existência.

Os cátaros também eram tidos como guardiões e protectores de tesouros, mas isso varia de acordo com a versão da lenda que se propaga. Na verdade, o Santo Graal foi um dos supostos tesouros em seu poder. Fontes históricas francesas sugerem, sem nenhuma prova, que o cálice de Cristo passou das mãos dos templários para as dos cátaros e que foi levado para um local desconhecido quando houve o cerco à fortaleza de Montségur, em 1224. Não é preciso ser historiador para ver que a data desse acontecimento e a da queda de Acre não batem, pois o primeiro, acontecido por volta de 1291, seria posterior ao segundo.

Mas o que sabemos, hoje em dia, sobre os cátaros? Os arquivos da própria seita foram queimados durante o processo da Igreja Católica contra eles. As informações que temos vêm dos processos católicos contra os cátaros, registados pela Inquisição (maldita) que, por seu posicionamento ante os condenados, são claramente inclinados a distorcer as informações lá contidas. Foram esses processos que erradicaram os cátaros da região do sul da França conhecida como Languedoc por meio de uma cruzada, criada e orientada pelo papa Inocêncio III. O fascínio de suas doutrinas, entretanto, chegou até os dias de hoje e gerou movimentos que estão em plena actividade na mesma região da França.

Nos Arquivos Secretos há alguns documentos fascinantes a esse respeito, como o Pergaminho de Chinon, que absolve os Cavaleiros Templários da acusação de heresia. Porém, até onde se sabe, não foi encontrado, ou melhor, divulgado, nada que tenha absolvido os cátaros.

O Santo Graal nos romances

Dan Brown se aproveitou das várias lendas e da fascinação dos leitores sobre os históricos e trágicos personagens cátaros e templários para se valer dos contos em que os últimos teriam retirado o tesouro, seja ele Graal, a Arca da Aliança, seja outro qualquer, quando da queda da cidade de São João de Acre, na Palestina, capital dos cruzados por um século, após a perda de Jerusalém nas mãos dos muçulmanos, em 1291.

A Cruzada Albigense

A Igreja Católica tentou conter a expansão cátara. Começou enviando missões de catequização formadas por monges cistercianos, a mesma Ordem de Bernardo de Clairvaux, um dos maiores entusiastas dos templários e autor das regras que ditavam o comportamento dos monges cavaleiros. As conversões foram poucas, e os monges, apesar do esforço, foram recebidos com vaias nas ruas de Toulouse. A coisa começou a piorar quando um escudeiro do conde Raymond VI de Toulouse, seguidor cátaro, matou um enviado do papa Inocêncio III à cidade». In Sérgio Pereira Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

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JDACT, Sérgio Pereira Couto, Vaticano, Religião, Conhecimento, 

No 31. Volker Reinhardt. Alexandre VI. «… estava também fora de questão que ele, como pai de todos os cristãos, contanto que fosse para defender os interesses da Igreja, tivesse o direito de pôr limites nas acções do rei, seu antigo patrão»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«A nomeação de Rodrigo a bispo de Valência elevou ainda mais a sua posição e aumentou seus rendimentos. E, pouco depois, ao elevado posto dentro da Igreja, juntou-se também uma posição de liderança secular. Calisto III nomeou seu talentoso sobrinho, sem a menor cerimónia, como capitão das tropas papais na Itália. Um cardeal como general: isso foi uma ofensa para muitos. A enorme quantidade de postos atribuídos a outro sobrinho, Pedro Luís, irmão de Rodrigo, também provocou escândalos. Ele recebeu numerosos cargos no Estado Pontifício, entre eles a castelania do Castelo de Santo Ângelo. Como resultado, passou a comandar a inexpugnável fortaleza da cidade de Roma: uma prevenção para os tempos de crise.

Pedro Luís, que estava destinado a ser o herdeiro da aristocrática dinastia Bórgia, ganhou, acima de tudo, os feudos que tinham sido perdidos pelos barões romanos. Indo ao encontro desses propósitos, especialmente nos territórios dos Orsini, foram tomados todos os castelos, com seus respectivos direitos de jurisdição, tributação e recrutamento de tropas. A sua amargura foi ainda maior quando o cardeal Orsini, o fazedor de papas, contabilizou recompensas no lugar de desapropriações. Calisto derrotou os Orsini, mas o que ele queria mesmo era atingir seu patrão, o rei Afonso. As suas relações com Nápoles tinham piorado rapidamente.

A exigência do monarca de continuar a condescender com ele nos âmbitos políticos do clero, ou seja, nomear candidatos convenientes para o bispado e conceder lucrativos prestimónios ao seu protegido, foi considerada um atrevimento e, por isso, recusada. O papa já não tinha a menor predisposição para esses servicinhos de capelão. A situação progrediu de tal maneira que chegou a recusar favores a Afonso, favores esses que concedia em provocante abundância aos membros de sua família.

Divergências políticas importantes agravaram a contenda. Calisto acreditava ter identificado, na táctica dilatória de Nápoles, o principal obstáculo para a realização de seu grande plano, que era reprimir os otomanos. No Outono de 1457, o rei ameaçou o papa com concílio e deposição; este, por sua vez, ameaçou o rei com privação de enfeudamento. De repente, como em uma poderosa encenação teatral, no ápice do conflito, um dos dois protagonistas retirou-se do palco. Em 27 de Junho de 1458, morreu Afonso V, de cognome o Magnânimo. Mesmo com idade avançada, seu adversário começou a entrar em acção. Ele proibiu o filho ilegítimo de Afonso, Fernando de Aragão, mais conhecido como Dom Ferrante, sucessor designado para a região continental do sul da Itália, de usar seu título de rei. Revogou ainda o juramento de fidelidade de seus súbditos e assumiu o reino como um feudo que fora devolvido à Igreja.

Ao mesmo tempo, o papa concedeu a Pedro Luís a função de comandante supremo das tropas que liderariam a inevitável guerra contra Nápoles. Além disso, transferiu para seu sobrinho o vicariato de Benevento e Terracina, que tinha sido ocupado pelo falecido monarca. O nepote regia esse enclave romano no reino de Nápoles, como o título mesmo indica, literalmente como substituto do papa; a experiência demonstrou, contudo, que esses vicariatos, de facto, transformaram-se rapidamente em grandes domínios autónomos. Como já mostrado no drástico agravamento das relações com os Orsini, essa concessão demonstrava também o que os Bórgia realmente tinham em vista: o trono de Nápoles.

Isso revelava uma crescente cobiça e, ao mesmo tempo, um momento crucial na história do papado. No Verão de 1458, iniciou-se a fase do nepotismo territorial. A partir disso, foram muitos os papas dispostos a correr quaisquer tipos de risco para tentar conquistar um território cada vez maior e mais independente como estado de família e, com isso, precipitar o panorama político da Itália em um abismo de turbulências. Era a coisa mais natural do mundo para os contemporâneos daquela época que um papa deixasse de ser aquilo que tinha sido como cardeal, ou seja, um servo fiel de seu Senhor. Em outras palavras: ninguém contestou o direito de Calisto estabelecer novas bases para as relações com Nápoles. De acordo com as elevadas exigências de seu posto, estava também fora de questão que ele, como pai de todos os cristãos, contanto que fosse para defender os interesses da Igreja, tivesse o direito de pôr limites nas acções do rei, seu antigo patrão.

No entanto, um corte abrupto de todos os laços, uma ruptura tão grosseira de todas as esferas de lealdade, como sucedeu em Julho de 1458, quando o papa negou todo e qualquer apoio a Ferrante, violou não só o sentimento de justiça, mas também a decência política. Uma coisa dessas não se fazia assim tão facilmente. Isso não foi apenas uma violação a todas as normas de piedade, mas também contra o espírito de Lodi. Além do mais, por trás de tudo isso via-se um insólito véu de arrogância. Quem eram, afinal, esses Bórgia para se sentar no trono da casa real dos Aragão?» In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

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No 31. Coração Tão Branco. Javier Marías. «Não se encostava na parede, como costumam fazer os que esperam para não atrapalhar os que não esperam e passam; mantinha-se no meio da calçada, sem se mexer além de seus três passos medidos…»

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«No entanto, ao cabo de uns minutos de olhar sem ver, notei uma pessoa. Notei-a porque, ao contrário das demais, durante todos aqueles minutos não se movera nem passara ou desaparecera de meu campo visual, mas permanecera parada no mesmo lugar, uma mulher de uns trinta anos vista de longe, com uma blusa amarela de decote arredondado, uma saia branca e sapatos de salto alto também brancos, levando no braço uma grande bolsa preta, como as que as mulheres usavam em Madrid na minha infância, bolsas grandes penduradas no braço e não no ombro, como agora. Estava esperando alguém, sua atitude era de espera inequívoca, porque de vez em quando dava dois ou três passos para um lado ou outro, e no último passo arrastava ligeiramente e com celeridade o salto no chão, um gesto de contida impaciência.

Não se encostava na parede, como costumam fazer os que esperam para não atrapalhar os que não esperam e passam; mantinha-se no meio da calçada, sem se mexer além de seus três passos medidos que a levavam de volta sempre ao mesmo lugar, e por isso tinha problemas para se esquivar dos transeuntes, um lhe disse alguma coisa e ela respondeu com raiva e ameaçou-o com a volumosa bolsa. De vez em quando olhava para trás flexionando uma perna e com a mão alisava a saia justa, como se temesse que alguma prega lhe enfeasse a nádega, ou talvez ajustasse a calcinha insubmissa através do tecido que a cobria.

Não olhava para o relógio, não usava relógio, talvez se orientasse pelo do hotel, que estaria acima da minha cabeça, invisível para mim, com rápidas olhadas que eu não percebia. Pode ser que o hotel não tivesse relógio dando para a rua e ela nunca soubesse a hora. Pareceu-me mulata, mas eu não podia garantir de onde me encontrava.

De repente a noite caiu, quase sem aviso, como acontece nos trópicos, e, embora o número de passantes não tenha diminuído de imediato, a perda da luz me fez vê-la mais solitária, mais isolada e mais condenada a esperar em vão. Quem ela esperava não chegaria. Com os braços cruzados, apoiava os cotovelos nas mãos, como se a cada segundo que passava aqueles braços pesassem mais, ou talvez fosse a bolsa que aumentasse de peso. Tinha pernas robustas, adequadas para a espera, que se cravavam no pavimento com seus saltos muito finos e altos ou agulha, mas as pernas eram tão fortes e atraentes que assimilavam aqueles saltos e eram elas que se cravavam solidamente, como faca em madeira molhada, cada vez que tornavam a se deter no ponto escolhido após o mínimo deslocamento para a direita ou para a esquerda.

Os calcanhares sobressaíam dos sapatos. Ouvi um leve murmúrio, ou era um gemido, procedente da cama às minhas costas, de Luisa doente, de minha mulher recém-contraída que tanto me interessava, era minha incumbência. Mas não virei a cabeça porque era um gemido que vinha do sono, aprende-se a distinguir logo o som adormecido da pessoa com quem se dorme. Nesse momento a mulher da rua ergueu os olhos para o terceiro andar em que eu me encontrava e acreditei que fixava sua vista em mim pela primeira vez. Espiou como se fosse míope ou estivesse com lentes de contacto sujas e olhou desconcertada, fixando a vista em mim e desviando-a um pouco e piscando os olhos para ver melhor e de novo fixando-a e desviando-a. Então levantou um braço, o braço livre da bolsa, num gesto que não era de saudação nem de aproximação, quero dizer de aproximação a um estranho, mas de apropriação e reconhecimento, coroado por um remoinho veloz dos dedos: era como se com aquele gesto do braço e o volteio dos dedos rápidos quisesse segurar-me, mais segurar-me do que atrair-me até ela.

Gritou algo que eu não podia ouvir devido à distância e tive a certeza de que gritava para mim. Pelo movimento dos lábios apenas adivinhados pude entender a primeira palavra, e essa palavra era Ei!, pronunciada com indignação, como o resto da frase que não chegava a mim. Enquanto falava pôs-se a andar; para se aproximar, tinha de atravessar a rua e percorrer a ampla esplanada que de nosso lado separava o hotel da rua, afastando-o e salvaguardando-o assim um pouco do trânsito». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa, 

domingo, 29 de outubro de 2023

Volker Reinhardt. Alexandre VI. «Do ponto de vista do rigoroso moralista, para o qual o papa não tinha parentes consanguíneos, mas apenas espirituais, e precisamente em todos os lugares…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«Assim, em 8 de Abril de 1455, foi cumprida a profecia de Vicente Ferrer, e Alonso de Borja subiu ao trono de Pedro como Calisto III. Como todos sabiam, ele era um homem com família. Em outras palavras: o que não faltavam eram potenciais nepotes. O facto de os eleitores não terem visto isso como um obstáculo está possivelmente relacionado ao problema de o nepotismo ser considerado, em grande parte, coisa do passado, não apenas por meio da moderação imposta pelos próprios papas, mas também pela delicada pressão por parte do cardinalato.

Ambos tinham contribuído para que, nos dois últimos pontificados, não tivessem sido observadas situações desagradáveis a esse respeito. O papa recém-eleito poderia nomear cardeal um sobrinho qualquer ou, se necessário, melhorar o estilo de vida de parentes mais próximos. Assim versavam as regras vinculativas de decência que se orientavam em uma categoria aristocrática de nepotes, mas de forma alguma principesca ou mesmo dominante. Comparado ao nepotismo igualmente aventureiro e caótico de Bonifácio IX (1389-1404), que concedeu a seus numerosos parentes napolitanos metade da região do Lácio, como também abundantes prestimónios, isso já era um passo à frente. A inviolabilidade desses padrões precisava, no entanto, ser colocada à prova.

Desse modo, todas as atenções se voltaram ao idoso homem de Xátiva e seus jovens sobrinhos. Do ponto de vista do rigoroso moralista, para o qual o papa não tinha parentes consanguíneos, mas apenas espirituais, e precisamente em todos os lugares onde reinavam o mérito e o merecimento, o início foi marcado por uma positiva surpresa. No começo, fez-se pouco em termos de apoio à família. Rodrigo Bórgia e seu primo Luís Juan de Mila foram agraciados com lucrativos benefícios, mas permaneceram estudando Direito em Bolonha. Porém, a alegria dos zelanti, que eram os reformadores zelosos, não iria durar muito. Em Fevereiro de 1456, a nomeação simultânea de Rodrigo e Luís Juan de Mila a cardeais pôs fim a todas as esperanças de conter o nepotismo. Pior ainda: estava violada a regra mais importante da ainda recente autorrestrição. Acrescente-se a isso que esses dois chapéus vermelhos foram só o começo. Calisto III tinha agora pressa em elevar o prestígio de sua família. Provavelmente, temia já ter esperado demais. Aparentemente, os escrúpulos iniciais que se opuseram à promoção intensiva de seus parentes de sangue tornaram-se obstáculos definitivamente eliminados. Só é possível presumir de que maneira se deu essa mudança de atitude: por sugestões ao pé do ouvido de conselheiros que perseguiam seus próprios interesses, mas provavelmente também pelos pedidos ou exigências dos próprios sobrinhos.

Esses não podiam agora se queixar da moderação de seu tio. O mais enérgico e persuasivo dos dois novos purpurados, Rodrigo, tornou-se vice-chanceler em 1457, passando a ocupar o mais importante e lucrativo posto dentro da cúria depois do papado. As tarefas associadas a essa função consistiam em cuidar da torrente de solicitações de concessão de indulgências que chegavam a Roma vindas de toda a cristandade. O papa reservava-se o direito de tomar decisões apenas em casos ligados a círculos políticos mais amplos, mas, geralmente, apreciava essas causes célèbres depois de uma prévia avaliação de seu vice-chanceler. Dessa maneira, esse último assumiu uma posição-chave. A jurisdição clerical estava longe de ser apenas responsável por litígios dentro do clero, mas também por grande parte do direito da família e do casamento.

Nesse domínio sensível, os canonistas tinham criado uma infinidade de obstáculos, restrições e proibições que exigiam decididamente a concessão de derrogações. Era imensa a necessidade de concessão de graças e indultos, ou seja, dispensas provenientes dessas complicadas regras. Em outras palavras: no palácio do vice-chanceler convergiam laços, por meio dos quais era possível estabelecer ligações com os poderosos de todo o planeta. Permissão para casar, apesar do grau de parentesco muito próximo, legitimação de filhos bastardos, absolvição de promessas incómodas: tudo isso tinha o seu valor de contrapartida e sua utilidade. E, principalmente, o vice-chanceler passou a ter acesso irrestrito a desagradáveis segredos que os poderosos não queriam que se tornassem públicos». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

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Volker Reinhardt. Alexandre VI. «… um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado parecia oferecer melhor garantia para combater a ascensão vertiginosa de determinados grupos ao poder apostólico…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Outro evento causou ainda maior admiração do que o final das hostilidades entre Inglaterra e França. Em 29 de Maio de 1453, o sultão Maomé II conquistou Constantinopla e exterminou, assim, os últimos resquícios do Império Bizantino. O susto provocado contribuiu para que Nicolau V alcançasse um bom êxito no seu empenho de resguardar a estabilidade política na Itália. Por meio dos acordos fixados em Lodi, na Itália, em 1454 e 1455, foram criadas estruturas federais que deveriam engendrar a manutenção da paz por meio da reconciliação de interesses. No entanto, a estrutura complexa dos numerosos estados com seu complicado emaranhado de sistemas, com diversas relações de protecção e dependência, permaneceu, também no futuro, altamente susceptível a interferências. Só era possível instaurar o equilíbrio se, pelo menos, as cinco principais potências praticassem uma política permeada por prudência e ponderação.

Os acordos exigiam, assim, a contenção de todos, principalmente do papado. O lema da modernidade era abdicar do nepotismo excessivo. Nicolau V respeitou essa regra. Será que seu sucessor iria fazer o mesmo? Após a morte do primeiro papa humanista, o conclave se reuniu primeiramente com 14 e, em seguida, com 15 cardeais; jamais o número de eleitores de um conclave voltou a ser tão baixo. Os italianos, que contavam com sete purpurados, detinham uma exígua maioria. O segundo grupo mais forte era o dos espanhóis, com quatro representantes. Esses últimos, contudo, não chegavam a representar uma ameaça tão grande como os franceses, embora esses só estivessem representados com dois príncipes da Igreja.

Os eloquentes humanistas italianos eram considerados bárbaros por excelência e os prelados italianos, uma ameaça para o papado. Será que iriam transferir a cúria novamente para Avignon, que durante 1309 e 1377 tinha sido a residência papal, em detrimento da Cidade Eterna?

Não foram apenas essas preocupações e o precoce nacionalismo que moldaram a eleição do novo pontifex maximus. Como era comum havia muito tempo, a rivalidade entre os Colonna e os Orsini exercia forte influência sobre as formações partidárias do conclave. Com suas vastas e, de facto, autónomas propriedades feudais, esses dois clãs da aristocracia dominavam, desde o século XIII, não apenas a paisagem rural romana, mas também a região de fronteira com Nápoles, sem falar na própria Cidade Eterna. No conclave, cada linhagem apresentou um cardeal e este permaneceu rodeado pelos seguidores da respectiva família. Uma vez que o poder de ambas as partes equiparava-se, não foi possível fazer valer a força de seu respectivo preferido.

Foi inevitável, portanto, proceder à busca de um candidato de conciliação. O cardeal Bessarion, com sua elevada formação filológica e teológica, bem como seu estilo de vida exemplar, ofereceu-se como tal. Mas rapidamente pairou no ar uma espécie de xenofobia, mais exactamente grecofobia. Um grego como papa? A união da Igreja Ortodoxa com a Igreja Católica não fora realizada pura e simplesmente pela força das circunstâncias, ou seja, pela ameaça iminente da queda de Constantinopla? Era possível confiar realmente na ortodoxia desse príncipe estrangeiro da Igreja?

Alonso de Borja, nesse aspecto, estava completamente fora de suspeitas. Além disso, como espanhol, ele representava a Reconquista, a batalha de fé contra os mouros. Dentro das circunstâncias altamente tensas e de confinamento espacial do conclave, o regresso a esses antigos motivos que, depois de 1453, passaram a ser novamente actuais, desempenhava um papel muito importante. O factor decisivo, no entanto, foi que, com a elevação a papa do homem de Xátiva, o impasse foi resolvido e foi adiada provisoriamente a decisão sobre o desenvolvimento no longo prazo da situação do poder em Roma. Não é de se esperar que um papa de 77 anos quisesse tomar alguma decisão importante. Dessa forma, os Orsini aproveitaram a oportunidade e apoiaram activamente o candidato do rei Afonso, ganhando, assim, pontos a seu favor em Nápoles.

Além disso, um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado parecia oferecer melhor garantia para combater a ascensão vertiginosa de determinados grupos ao poder apostólico, sem incorrer em transformações incômodas de sua natureza. Aqui residia, de facto, o risco para a eleição papal. Em que medida se poderia prever o comportamento de um candidato após ser elevado a papa? A austeridade e o rigor do cardeal de Valência seriam uma garantia contra surpresas desagradáveis, calculavam seus eleitores». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

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JDACT, Vaticano, Religião, Volker Reinhardt,

Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio Pereira Couto. « Praticavam o jejum absoluto três vezes por ano, condenavam o serviço militar e tinham o suicídio como ideal de santidade, sendo sua forma mais perfeita…»

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Os Cátaros e o Segredo do Santo

Quem eram os cátaros

«A salvação, nesse caso, seria a libertação das parcelas de luz perdidas nas trevas do corpo. Acreditavam na reencarnação: se alguém falhasse nesta vida teria uma próxima chance de conseguir seu intento. A cruz de Cristo, para eles, era um símbolo falso, pois não teria havido uma morte real (física), já que Jesus era um ser espiritual.

Seu serviço eclesiástico era composto de uma leitura do evangelho, um breve sermão, uma bênção e a Oração do Senhor. Esse serviço podia ser feito em qualquer lugar. Essa abordagem simples da liturgia teria, segundo alguns estudiosos, antecipado a simplicidade de seitas protestantes de épocas posteriores.

Maniqueísmo: a origem do catarismo

Uma das doutrinas que deu origem ao catarismo foi o maniqueísmo. O maniqueísmo é uma religião de origem persa, que deve seu nome ao lendário Manés, ou Manion Manique (215-276), da Babilónia, que teria vivido nos primeiros séculos da nossa era, talvez no século III. Manés, que se dizia filho da luz, seguia os ensinamentos de Zoroastro e defendia uma reforma religiosa que procurasse a transcendência e a libertação das ilusões da vida terrena e corpórea. Tinha um pensamento dualista, ou seja, para ele o mundo material era ruim, enquanto o espiritual era o bom. São dois reinos: o da luz, dominado por Deus, identificado como Ormuzde ou Ahura Mazda, e o das trevas, de domínio de Satã, Ahrimã ou Anrô Mainiu.

O ser humano, preso por Satã, deveria lutar sem descanso para se libertar das trevas e readquirir a luz. Sua libertação só poderia acontecer mediante uma vida austera, passando por três selos ou modificações: o selo da boca (jejum), o da mão (abstenção do trabalho) e o do ventre (castidade).

O maniqueísmo conquistou a atenção de homens como Santo Agostinho. Um de seus mais famosos discípulos foi Madek, do século VI, que afirmava que todo o mal do mundo era causado pelo desejo de posse de fortuna e mulheres. Por isso, pregava que esses mesmos itens deviam ser de posse comum, ou seja, de usufruto de todos. Essa doutrina se estendeu da África do Norte até a China e, embora fosse combatida tanto pela Igreja quanto pelos governos dos países onde entrava, se prolongou até a Idade Média, quando ressurgiu com os cátaros.

Organização da Igreja cátara

Sabe-se pouco sobre o modo como os cátaros se organizavam. O que chegou até nós dá uma ideia vaga, mas consistente. Tinham duas classes ou graus. A primeira, que englobava os leigos, era conhecida com o nome de crentes ou auditores. A segunda era composta pelos perfeitos ou eleitos, que enfrentavam um período de prova de dois anos.

Os crentes tinham regras para fazer seu jejum e não podiam comer carne, ovos ou leite. A principal obrigação dessa casta era adorar e alimentar os perfeitos. Os crentes jamais poderiam aspirar ascender à casta dos perfeitos, considerados de alto nível.

No leito de morte, podiam receber o consolamentum ou baptismo espiritual, que combinava características de baptismo, confirmação e ordenação. Caso não morressem, eram colocados em regime de fome.

Os perfeitos tornavam-se membros dessa casta depois do período mencionado, no qual renunciavam a todos os bens terrenos e viviam comunalmente com outros da mesma classe. Evitavam as tentações da carne isolando-se completamente do convívio com o sexo oposto, além de fazer voto para nunca dormirem nus. Eram completamente contra a união sexual, pois perpetuava a vida e aprisionava mais um espírito no mundo espúrio material. Praticavam o jejum absoluto três vezes por ano, condenavam o serviço militar e tinham o suicídio como ideal de santidade, sendo sua forma mais perfeita a endura, onde passavam fome até morrer.

Uma pessoa podia ingressar na igreja catara por meio de dois ritos de iniciação. O primeiro era a conveneza, palavra de origem ocitânia, a língua dos cátaros, que significa acordo ou pacto, um acordo por meio do qual o crente era consolado na hora da morte mesmo que não estivesse consciente e em condições de recitar o Pai-Nosso em voz alta». In Sérgio Pereira Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

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Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio Pereira Couto. «Para os cátaros, o homem, que foi criado por Deus, o lado bom, é prisioneiro da matéria. Esta, que foi criada por Satã, identificado como Javé…»

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Os Cátaros e o Segredo do Santo

«Os principais acusados de levar a Igreja Católica à criação da Inquisição foram os cátaros. Embora até hoje pesquisadores e historiadores discutam as verdadeiras intenções da existência dessa seita, é difícil não prestar atenção aos seus verdadeiros intentos.

A fascinante seita dos cátaros foi a principal causa da primeira e única cruzada de cristãos contra cristãos. Na época da Cruzada Albigense, entre 1209 e 1244, o ponto de vista maniqueísta desse grupo levou os católicos mais ortodoxos a afirmar a unicidade de Deus. Portanto, o facto de acreditar em dois deuses, como os cátaros faziam, seria uma heresia. A diferença entre o comportamento de Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento, no primeiro era uma entidade brava e rancorosa e no outro se torna uma entidade benévola e condescendente, dava bases para que a crença crescesse firme e forte.

Os dirigentes da Igreja começaram uma perseguição implacável aos adeptos daquele movimento, a ponto de invadir cidades do sul da França e matar sua população na totalidade.

Quem eram os cátaros

A palavra cátaro vem do grego katarós, que significa puro. Esse grupo também ficou conhecido como albigense, pois se concentrou mais na cidade de Albi, tida como um dos grandes centros de influência herética no sul da França. Os cátaros floresceram no século XII, um período em que o contacto entre Oriente e Ocidente era grande, por causa das cruzadas e do constante fluxo de pessoas entre a Europa e a Terra Santa. Isso propiciou que muitas ideias e filosofias fossem trazidas de terras distantes junto com suas mercadorias e ganhassem adeptos europeus.

No século XII, as pessoas viam a decadência do clero. A Igreja era uma potência, com seus padres e bispos vivendo no luxo e perdoando pecados em troca de dinheiro. Esse era o clima ideal para o surgimento de uma seita que se enraizou primeiramente no norte da Itália, graças aos intercâmbios culturais entre Veneza e o mundo bizantino. De lá se espalhou para regiões como Milão, Lombardia e Florença, e depois para outros países como Alemanha (onde apareceu pela primeira vez a palavra cátaro, em 1163), Inglaterra (onde são chamados de lolardos) Flandres e sul da França. O medo das represálias da Igreja fez com que os cátaros mantivessem seu credo em silêncio. Porém, a popularização do movimento atraiu tanta gente que seus seguidores passaram a agir abertamente, já que dispunham da protecção de senhores feudais.

Não demorou muito para o catarismo e para outro movimento ligeiramente semelhante, chamado de valdensianismo, criado em Lion por Pedro Valdo, em 1176, se tornassem as religiões predominantes do Languedoc.

Mas o que os tornava tão perigosos para a Igreja? O principal motivo foi o conflito de suas crenças, que iam de encontro às de Roma. Por exemplo, enquanto os católicos viam a salvação obtida por meio do sofrimento físico de Jesus, para os cátaros a redenção não vinha de Sua morte, mas sim de Sua vida. Para os cátaros, o mundo físico é imperfeito, portanto não poderia ser criação de um Deus perfeito. Rejeitavam toda a visão bíblica da criação, por isso chegavam, por extensão, a rejeitar todo o Antigo Testamento.

De acordo com João Ribeiro Júnior, em Pequena história das heresias, eles

chegaram a reescrever o Novo Testamento e elaborar uma mitologia inteira, a fim de substituir o Antigo Testamento. Para os cátaros, a humanidade tinha sido moldada pelo demônio. Para um cátaro, para alcançar a salvação, era necessário conhecer o verdadeiro destino e origem da humanidade e só poderia atingir esse verdadeiro conhecimento por meio da renúncia do mundo satânico da carne, levando uma vida de abstinência e pobreza.

Tomemos algumas definições encontradas no livro de Stephen O'shea, A heresia perfeita. Para os cátaros, o homem, que foi criado por Deus, o lado bom, é prisioneiro da matéria. Esta, que foi criada por Satã, identificado como Javé, está presa ao mundo. O dualismo, herdado do maniqueísmo, é a luta da carne contra o espírito. Assim, para nos salvar, Jesus, que seria um anjo, teria se revestido de um corpo aparente, algo ilusório, para que pudesse nos transmitir a maneira de obter essa libertação». In Sérgio Pereira Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

Cortesia de EGutenberg/JDACT

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sábado, 28 de outubro de 2023

Todas as Almas. Javier Marías. «Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador»

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«Dois dos três morreram desde que saí de Oxford, e isso faz-me pensar, supersticiosamente, que talvez tenham estado à espera de que eu chegasse e esgotasse o meu tempo ali para me darem a oportunidade de os conhecer e poder agora falar deles. É possível, portanto, e sempre supersticiosamente, que seja obrigado a falar deles. Não morreram senão quando deixámos de nos dar.

Se tivesse continuado nas suas vidas, e em Oxford (se tivesse continuado nas suas vidas quotidianamente), talvez ainda estivessem vivos. Este pensamento não é apenas supersticioso, é também vaidoso. Mas para falar deles tenho de falar também de mim e da minha estada na cidade de Oxford. Mesmo que aquele que fala não seja o mesmo que lá esteve. Parece, mas não é o mesmo. Se a mim próprio me chamo eu ou se utilizo um nome que me tem acompanhado desde que nasci e pelo qual alguns me hão-de lembrar ou se conto coisas que coincidem com coisas que outros me atribuíram ou se chamo minha casa à casa que antes e depois foi ocupada por outros, mas que habitei durante dois anos, é só porque prefiro falar na primeira pessoa, não porque acredite que a faculdade da memória é suficiente para continuar a ser o mesmo em diferentes tempos e em diferentes espaços.

Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador.

A minha casa tinha três andares e forma piramidal e nela passava muito tempo, dado que as minhas obrigações na cidade de Oxford eram praticamente nulas ou inexistentes. Com efeito, Oxford é, sem dúvida, uma das cidades do mundo onde menos se trabalha, e nela o facto de se estar revela-se muito mais decisivo que o de fazer ou até mesmo o de fingir.

Estar exige ali tanta concentração e paciência, e tanto esforço para lutar contra a letargia natural do espírito, que seria uma exigência desmesurada pretender que, além disso, os seus habitantes ainda se mostrassem activos, principalmente em público, apesar de alguns colegas costumarem fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir.

Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar. Mas quem negava todos os simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações. Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor dizendo, provavelmente à margem da sua vontade.

Havia dias em que, mais do que acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu olhar confiante e ufano.

Podíamos suspeitar que uma manhã de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite anterior ou da seguinte, e que uma manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem.

Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável, nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno. Nessa viagem contínua pela sua existência, quase tudo era insondável para os demais (tal como os retratos de séculos passados ou uma fotografia tirada anteontem). Como podíamos saber em que aflitiva jornada dos seus inúmeros dias se encontrava Will quando o víamos cumprimentar apenas com um meio sorriso, em vez do gesto entusiasmado das datas joviais ou mesmo neutras?» In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… que não estará a única pessoa que lhe interessa, que ficou em casa com o marido. Essa única pessoa estava na cama, doente, velada pelo marido e às minhas costas»

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«O aniquilamento de cada um, daquele que se conheceu, que se frequentou e que se quis, traz consigo o desaparecimento das respectivas casas, ou nela fica simbolizado. De tal maneira que duas pessoas que tinham o costume de ser cada uma por sua conta e estar num lugar cada uma, acordar só e frequentemente também se deitar só, se encontram de repente artificialmente unidas em seu sono e em seu despertar, em seus passos pelas ruas semivazias em direcção única ou subindo juntos no elevador, não mais um de visita e o outro como anfitrião, não mais um indo buscar o outro ou este descendo para ir encontrar-se com aquele que espera no carro ou a bordo de um táxi, mas ambos sem escolha, com aposentos, elevador e portão que não pertenciam a ninguém e agora são dos dois, com um travesseiro comum pelo qual se verão obrigados a brigar em sonhos e a partir do qual, como o doente, também acabarão vendo o mundo. Como eu disse, já senti esse primeiro mal-estar na primeira etapa da viagem de lua-de-mel, em Miami, cidade asquerosa mas com óptimas praias para recém-casados, e se acentuou em Nova Orléans, no México e mais ainda em Havana, e há quase um ano, desde que regressamos dessa viagem e inauguramos nossa casa de maneira tão artificiosa, ele continuou aumentando ou se instalou em mim, talvez em nós.

Mas o segundo mal-estar apareceu com força lá pelo fim da viagem, isto é, apenas em Havana, de onde em certo sentido provenho, mais precisamente um quarto de mim, pois lá nasceu e de lá veio para Madrid minha avó materna quando era menina, a mãe de Teresa e Juana Aguilera. Foi no hotel em que nos alojamos por três noites (também não tínhamos muito dinheiro e as estadas em cada cidade foram curtas), uma tarde em que Luisa sentiu-se mal enquanto passeávamos, tão mal de repente que interrompemos nossa caminhada e voltamos imediatamente ao quarto, para que ela se deitasse.

Tinha calafrios e um pouco de náusea. Não podia parar em pé, literalmente. Sem dúvida alguma coisa que comera lhe fizera mal, mas então não o sabíamos com suficiente certeza, de modo que no mesmo instante me perguntei se não teria contraído no México alguma dessas doenças que lá atacam tão facilmente os europeus, algo grave como uma ameba.

Os pressentimentos de desastre que tacitamente me acompanharam desde a cerimônia de casamento iam adquirindo diferentes formas, e uma delas foi esta (a menos muda, ou não foi tácita), a ameaça da doença ou a repentina morte de quem ia compartilhar comigo a vida, o futuro concreto e o futuro abstracto, embora eu não tivesse a impressão de que este último houvesse acabado e minha vida já estivesse pela metade; talvez a dos dois, unidos.

Não quisemos chamar logo um médico, preferindo ver se aquilo passava, e a pus na cama (nossa cama de hotel e de casal), e deixei-a dormir, como se aquilo pudesse curá-la. Pareceu adormecer e eu me mantive em silêncio para que descansasse, e a melhor maneira de me manter em silêncio sem me aborrecer nem me ver tentado a fazer barulho ou falar com ela foi pôr-me à sacada e olhar para fora, olhar a gente havanesa passar, observar seu andar e suas roupas, ouvir suas vozes ao longe, um murmúrio.

Mas olhava para fora com o pensamento dentro, às minhas costas, na cama em que Luisa ficara na diagonal, atravessada, de modo que nada exterior podia chamar sua atenção. Eu olhava para fora como quem chega a uma festa em que sabe que não estará a única pessoa que lhe interessa, que ficou em casa com o marido. Essa única pessoa estava na cama, doente, velada pelo marido e às minhas costas». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa, 

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Nesse mesmo costume ou prática, muito difundida pelo que sei, está a prova de que na realidade, ao contrair, os dois contraentes estão se exigindo uma mútua abolição ou aniquilamento…»

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«Esse mal-estar se resume numa frase aterradora, e ignoro o que farão os demais para superá-la: E agora?. Essa mudança de estado, como a doença, é incalculável e interrompe tudo, ou pelo menos não permite que nada continue como até então: não permite, por exemplo, que depois de ir jantar ou ir ao cinema cada um vá para sua casa e nos separemos, que eu deixe Luisa de carro ou de táxi em seu portão e, depois, uma vez deixada, dê uma volta sozinho pelas ruas semivazias e sempre molhadas, pensando nela seguramente, e no futuro, sozinho em direcção à minha casa. Uma vez casados, ao sair do cinema os passos se encaminham juntos para o mesmo lugar (ressoando em contratempo porque são quatro os pés que caminham), mas não porque eu tenha decidido acompanhá-la nem mesmo porque tenha o costume de fazê-lo e me pareça justo e educado fazê-lo, mas porque agora os pés não hesitam sobre o calçamento molhado, nem deliberam, nem mudam de ideia, nem podem arrepender-se nem escolher: agora não há dúvida de que vamos para o mesmo lugar, queiramos ou não esta noite, ou talvez tenha sido ontem à noite que eu não quis.

Já na viagem de lua-de-mel, quando essa mudança de estado começou a se produzir (não é muito exacto dizer que começou, é uma mudança violenta e que não deixa tempo para respirar), me dei conta de que me era muito difícil pensar nela, e totalmente impossível pensar no futuro, que é um dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa, se não a diária salvação de todos: pensar vagamente, errar com o pensamento posto no que há-de vir ou pode vir, perguntar-se sem muita concretude nem interesse pelo que será de nós amanhã mesmo ou dentro de cinco anos, pelo que não prevemos.

Já na viagem de núpcias era como se houvesse sido perdido e não existisse o futuro abstracto, que é o que importa, porque o presente não o pode tingir nem assimilar. Essa mudança, pois, obriga a que nada continue a ser como até então, e mais ainda se, como costuma acontecer, a mudança foi precedida e anunciada por um esforço comum, cuja principal manifestação visível é a artificiosa preparação de uma casa comum, uma casa que não existia nem para um nem para outro, mas que deve ser inaugurada pelos dois, artificiosamente.

Nesse mesmo costume ou prática, muito difundida pelo que sei, está a prova de que na realidade, ao contrair, os dois contraentes estão se exigindo uma mútua abolição ou aniquilamento, a abolição daquele que cada um era e pelo qual cada um se apaixonou ou de quem talvez tenha visto as vantagens, já que nem sempre há um apaixonamento prévio, às vezes é posterior e às vezes não ocorre nem depois nem antes. Não pode ocorrer». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «… progresso que se tem feito no entendimento da natureza e significado humano dos sentimentos, tal como os vejo agora, como neurologista, neurocientista e consumidor habitual»

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Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«A emoção e o sentimento já tinham desempenhado um papel importante, embora bem diferente, em dois livros precedentes. Em O erro de Descartes abordei o papel da emoção e do sentimento na tomada de decisões. Em O Mistério da Consciência descrevi o papel da emoção e do sentimento na construção do self. O foco deste novo livro são os sentimentos propriamente ditos, aquilo que são e aquilo que fazem. A maior parte dos dados que agora apresento não existiam quando escrevi os livros anteriores, e temos hoje uma plataforma bem mais sólida para o entendimento da biologia dos sentimentos. Em suma, a finalidade principal deste livro é descrever o progresso que se tem feito no entendimento da natureza e significado humano dos sentimentos, tal como os vejo agora, como neurologista, neurocientista e consumidor habitual.

Na minha perspectiva actual, os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações do estado da vida dentro do organismo. São o levantar de um véu no sentido literal do termo. Considerando a vida como uma acrobacia na corda bamba, a maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções sem os quais o espectáculo colapsa por inteiro.

Na existência do dia-a-dia os sentimentos revelam, simultaneamente, a nossa grandeza e a nossa pequenez.

A forma como a revelação se introduz na mente só agora começa, ela mesma, a ser revelada. O cérebro dedica várias regiões que trabalham em concerto a retratar de diversos aspectos as actividades do corpo sob a forma de mapas neurais. Esse retrato é uma imagem composta da vida nas suas contínuas modificações. As vias químicas e neurais que trazem ao cérebro os sinais com que esse retrato da vida é pintado são tão específicas como a tela que os recebe. O mistério do sentir está se tornando, assim, um pouco menos misterioso.

É perfeitamente legítimo perguntar se a tentativa de elucidar os sentimentos tem qualquer espécie de valor além da satisfação da nossa curiosidade. Não deve surpreender ninguém que a minha resposta seja afirmativa. Elucidar a neurobiologia dos sentimentos e das emoções que os percebem altera a nossa visão do problema mente-corpo, um problema cujo debate é central para a nossa compreensão daquilo que somos. A emoção e as várias reacções com ela relacionadas estão alinhadas com o corpo, enquanto os sentimentos estão alinhados com a mente. A investigação da forma como os pensamentos desencadeiam as emoções e de como as modificações do corpo durante as emoções se transformam nos fenómenos mentais a que chamamos sentimentos abre um panorama novo sobre o corpo e sobre a mente, duas manifestações aparentemente separadas de um organismo integrado e singular». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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terça-feira, 24 de outubro de 2023

Em Busca da Arca da Aliança. Graham Hancock. «Ouvi dizer que, segundo uma tradição etíope, a Arca da Aliança está aqui guardada... nesta capela. Também ouvi dizer que o senhor é o seu guardião»

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Etiópia. 1983. Lenda

Inicio: 1983

«Começava a escurecer e a arrefecer nas montanhas da Etiópia quando o monge apareceu. Curvado sobre o seu bordão de orante, saiu pela porta da capela do santuário, arrastando-se na minha direcção, e escutou atentamente as apresentações. Falando em tigrina, a língua local, procurou esclarecimentos acerca da minha pessoa e dos meus motivos junto do meu intérprete, de que país eu vinha. de que me ocupava,  se era cristão, o que queria dele?

Eu respondi pormenorizadamente a estas perguntas, procurando vislumbrar os detalhes do rosto do meu inquisidor, ao mesmo tempo que falava. Os seus olhos cavados estavam velados por cataratas leitosas c a sua pele negra sulcada de linhas profundas. Tinha barba e. provavelmente. era desdentado, já que a sua voz, apesar de ser clara, sibilava de urna forma estranha. No entanto, eu podia estar certo de algumas coisas, ele era um ancião, talvez tão velho como o século, mas lúcido. e cujo interesse por mim não constituía mera curiosidade. Só condescendeu em apertar-me a mão quando satisfez completamente a sua necessidade de informação a meu respeito. A sua pele era seca e delicada como papiro e do seu manto grosso, desprendia-se, ténue mas distinto. o odor sagrado do incenso.

Depois de cumpridas todas as formalidades, fui direito ao assunto. Apontando na dirccção do edifício que se distinguia no horizonte enevoado por trás de nós. eu disse: Ouvi dizer que, segundo uma tradição etíope, a Arca da Aliança está aqui guardada... nesta capela.  Também ouvi dizer que o senhor é o seu guardião. É verdade? É verdade. Mas. no estrangeiro, ninguém acredita nisso. Aliás, são poucos os que conhecem as vossas tradições. Mas, aqueles que as conhecem. Dizem que não é verdade.

As pessoas podem acreditar naquilo que quiserem. Podem dizer o que quiserem. Mas, a verdade é que nós possuímos a Tabot sagrada, quer dizer, a Arca da Aliança, e que eu sou o seu guardião... Deixe-me ver se percebo bem, disse eu. O senhor está a referir-se à Arca da Aliança original, à arca de madeira e ouro na qual Moisés depositou os Dez Mandamentos?

Sim. Foi o próprio Deus que escreveu as dez palavras da lei em duas tábuas de pedra. Depois, Moisés colocou essas tábuas na Arca da Aliança que acompanhou os israelitas ao longo da travessia do deserto e durante a conquista da Terra Prometida. Ela deu-lhes sempre a vitória e fez deles um grande povo. Por fim, depois de ter acabado a sua obra, o rei Salomão depositou-a no Santo dos Santos do Templo que tinha construído em Jerusalém. E foi daí que, pouco depois, ela foi removida e trazida para a Etiópia. ..» In Graham Hancock, Em Busca da Arca da Aliança, 1992, Editorial Presença, 1998, ISBN 972-232-364-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente»

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Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«Imaginem, por exemplo, encontrar alguém a quem uma certa lesão cerebral tornou incapaz de sentir vergonha ou compaixão, mas em nada alterou a capacidade de sentir tristeza, felicidade ou medo. Imaginem uma pessoa a quem uma lesão de outra região cerebral tornou incapaz de sentir medo, mas não interferia com a capacidade de sentir compaixão ou vergonha. A crueldade da doença neurológica é um poço sem fundo para as suas vítimas os doentes, bem como os médicos que os observam e tratam. Mas a doença neurológica também tem qualquer coisa de redenção: a doença funciona como um bisturi que separa o cérebro normal do cérebro doente com espantosa precisão e que assim permite uma rara porta de entrada na fortaleza do cérebro e mente.

A reflexão sobre a situação desses doentes e de outros com problemas comparáveis levou-me à construção de diversas hipóteses. Primeiro, era óbvio que certas espécies de sentimentos podiam ser bloqueadas pela lesão de um sector cerebral discreto; a perda de um sector cerebral específico implicava a perda de uma classe específica de fenômeno mental. Segundo, era também óbvio que sistemas cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos; a lesão de uma certa região anatómica cerebral não causava a perda de todas as formas possíveis de sentimento. Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de exprimir uma certa emoção também perdiam a capacidade de ter o correspondente sentimento. De forma surpreendente, contudo, alguns doentes incapazes de ter certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes correspondem ou seja, era possível exibir uma expressão de medo mas não sentir medo.

A emoção e o sentimento eram irmãos gémeos, mas tudo indicava que a emoção tinha nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à emoção como uma sombra. Apesar da intimidade e aparente simultaneidade, tudo indicava que a emoção precedia o sentimento. Entrever essa relação específica permitiu, como iremos ver, uma perspectiva privilegiada na investigação dos sentimentos. Essas hipóteses podiam ser testadas com a ajuda de técnicas de neuroimagem que permitem a criação de imagens da anatomia e actividade do cérebro humano.

Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente. A meta era elucidar a teia de mecanismos que permitem aos nossos pensamentos desencadear estados  emocionais e construir sentimentos». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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