terça-feira, 30 de janeiro de 2024

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… barbas venerandas a escorrerem adelgaçadas até ao peito, acolhia-o paternal de braços abertos Dom João Castro. Permitiam-lho os cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o rei Dom António»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Para os que levantaram cabelo, o confisco, o cárcere, o patíbulo, o homizio... Vós também estais homiziado. E falais assim? Medito em voz alta. Não vos ofendais. Não nos resta outro caminho... A unificação ibérica? Que somos nós? África, Ásia, as Índias são pasto de estrangeiros. Portugal é uma região, uma província de Espanha e, quando toda a Europa, sob o domínio de Filipe...

Não estais bom da cabeça. ... quando toda a Europa for unida... Não é essa a realidade, não é isso que se passa. Por toda a parte há mas é movimentos que se reclamam a identidade própria, a libertação, a independência. Olhai a Catalunha, a Vascóvia, a Irlanda, a Escócia, os Países Baixos, a Grécia... Portugal não morreu, não morrerá. Por mais uniões que se façam, existem fundas e surdas correntes de afirmação de identidade... Não somos nós, os  que aqui estamos, disso exemplo?, ponderou o cónego Rodrigues. Nós, menos ele, levantou-se exaltado Pimentel, que até ali se mantivera calado. E apontava Nuno Costa: Aquilo cheira a fala de renegado.

Renegado, eu? Não segui eu a parte de Dom António, que Deus tenha? - Dais Portugal como morto. Esqueceis-vos de que el-rei está vivo.

Falta provar que é el-rei... Olhai, olhai, amigos!, vinham entrando frei Crisóstomo e Brito Almeida, o riso aberto, e logo atrás Pantaleão Pessoa. Alvíssaras! Que aconteceu?, perguntou frei Lourenço. Postos ao corrente da publicação do breve pontifício, não se cansavam de o passar de olhos a olhos, com os corações açodados e exclamações de júbilo. Vedes?, mostrava Pimentel o documento a Nuno Costa, que se mantivera um pouco arredado.

Portugal não morreu!, disse Lourenço com a voz embargada e os olhos húmidos. Morreu, respondeu entre dentes Nuno Costa, pegando no breve. Leu-o em silêncio. Depois, levantando os olhos, disse: Inacreditável! Inacreditável quê? Dir-se-ia uma contrafacção... Como vos chegou isto às mãos? Lá estais vós com as vossas dúvidas, arrancou-lhe Pessoa das mãos o papel.

Formavam grupo a comentar a boa notícia, afastava-se Nuno Costa dos amigos... Dançam-te nos olhos da memória tantas imagens de invejas recalcadas durante a vida, cacos de episódios vividos, desejos e ambições inconfessas, ambiguidades elaboradas, mentira pronta, rancores abafados, crimes meditados que a cobardia arredara... Borra da alma, negrume, náusea... É isso, Nuno Costa. Que outro caminho te resta senão o da traição? Diante destes, veste a capa da prudência. Ainda há pouco te expuseste sem indústria... Dissimulação é a tua arma. Não afies garras, não arreganhes dentes, não arrepies pêlo. O teu coração são as tripas. Insensível... na mostra. Guarda-te para as horas mortas. Vingança de teres sempre rastejado, ciúmes das asas dos outros...

Chegou, enfim, vindo de Roma, na qualidade de embaixador de Sua Santidade e de príncipe português, o senhor Dom Cristóvão Portugal. Logo ao entrar da porta dos paços de Dom João Castro, era ver-lhe aquela cabeça a emergir da gola de folhos rendados, o semblante iluminado por um leve sorriso de bonomia interior que lhe transparecia da expressão da boca e do olhar. Um jovem cavaleiro ainda não chegado aos trinta anos, estatura média no jubão de guarnições lavradas, a meia-calça ajustada na perna magra... Cabelo encaracolado, testa alta, olhos claros, nariz comprido ondeado a terminar em bico, lábios finos bem recortados, bigode encrespado com guias reviradas para cima, sob o lábio inferior a breve mosca, pêra espetada no queixo.

Príncipe!, do alto da sua estatura esguia e barbas venerandas a escorrerem adelgaçadas até ao peito, acolhia-o paternal de braços abertos Dom João Castro. Permitiam-lho os cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o rei Dom António». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Passavam na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por entre a multidão ululante em direcção à embaixada. Marco Túlio saiu de detrás de uma das colunas da arcada, colocando na cara uma máscara de nariz arrebitado…»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Voltou atrás. Entrou nos paços. Procurou Marco Quirini. Vós? Senhor! Como vos atreveis a...? Que é lá, embaixador? ... a... a..., sufocava. Que se passa? ... a libertar o prisioneiro, mal eu viro costas? Libertar o prisioneiro? Vi-o agora mesmo a passear-se sob as arcadas. Estais a sonhar. Vinde comigo. Desceram aos baixos do edifício, meteram por sob a escadaria aos calabouços e chegaram a uma porta. Espreitai, disse o juiz.

Don Francisco espreitou pelo postigo. O prisioneiro dormitava, estendido no catre. O embaixador fechou o postigo, desorientado. Subiram em silêncio. Até à vista, embaixador, despediu-se o juiz, virando costas com desprezo.

Passavam na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por entre a multidão ululante em direcção à embaixada. Marco Túlio saiu de detrás de uma das colunas da arcada, colocando na cara uma máscara de nariz arrebitado, misturou-se com a turba e seguiu-o de perto até o ver entrar em casa. Depois deixou-se ir no grupo mimando dança e cantares com as moças:

Brunetta ch'hai le rose alle mascelle le labbra dello zucchero rosato garofolate porti le mamelle che ali piú che non fa lo moscato...

Na face rosa a preceito trigueira lábios de mel dois cravos as

flores do peito embriagas que nem moscatel...

No canto da piazza saiu para o Salvádego, guardou a máscara e meteu para Beneto. Quem és tu, Marco Túlio, meu farsante acabado? De Sebastião meu senhor, que ainda há pouco assustaste Don Francisco de Vera y Aragón, passaste a comediante pimpão. Dias atrás, os esculcas espanhóis que, para interceptarem o correio, esperavam a posta numa encruzilhada de Val Venosta, não se aperceberam do pobre almocreve que seguia com a caravana. Lembras-te do frade que foste, a bater ao portão do padre José Teixeira no convento dos jacobinos em Paris? Do guarda-costas de aspecto temível, pistolões à cinta, que comboiou o senhor Dom João de Castro na viagem para Veneza? Tua mulher Paola Galardetta se te visse agora não te reconheceria. Coitada! Já não sabe qual, entre tantos, é o seu marido...

E tu, sabes quem és? Qual és tu? De tão mal habituado, já nem sabes, não é?... E isso que importa, se a fidelidade a um amigo o dita? Caminhas na baliza oposta da traição. Também usa máscaras Nuno Costa. Só tu o sabes, mas aguardas em silêncio o momento propício de o desmascarar. Despojar-se homem de si, supremo sacrifício, a menos que seja despojamento fictício como o desse traidor: finge um coração que não tem, por mor da ganância de poder, de dinheiro, de se sobrelevar aos outros... Eu te amanharei, fi de pu…, eu te amanharei... Não, não é um nariz artificial, o cetim da mascarilha, os postiços de bigodes, suíças, cabelo. Isso é disfarce, travestimento, mime que eu faço por jogo e diversão.

Importa é a identidade intrínseca, o eu íntimo. Meu senhor rei, não sei quem sou...

Estavam reunidos em San Beneto. Aguardavam a chegada, a todo o momento, dos que frei Estêvão convocara de fora. Marco Túlio fora ajudar Dom João de Castro a instalar-se. Na sala discutiam alguns amigos.

Como é possível pensardes assim?, levantou-se quase apopléctico Pantaleão Pessoa Neiva. Isso é renegardes a pátria, a vossa condição de português. Não renego coisa nenhuma, respondeu Nuno Costa de má cara. Não se renega aquilo que não existe. Não existe? Isso a que chamais pátria morreu. Como ousais? Sois apátrida ou substituístes a vossa por outra alheia?

Que coisa é pátria? Há hoje em Portugal, sabeis muito bem, quem tenha pejo de pronunciar sequer a palavra. O último que a pronunciou foi um poeta que teve a sorte de morrer antes de lhe assistir ao enterro. Enterrou-a a loucura de um rei que levou o reino a fazer a guerra de África...

Recuso-me a ouvir-te, saiu da sala Pessoa, incomodado. Frei Lourenço olhou para Nuno Costa e, com voz que forçava ser apaziguada, perguntou: E pode saber-se em que assenta tão funesta opinião? Na realidade, respondeu o companheiro. Nada mais do que na realidade. Não lhe chameis funesta. Vinte e poucos anos, reparai, bastaram vinte e poucos anos para se apagar a identidade da pátria e da nacionalidade. Não se apagarão. Jamais! A flor do reino morreu em Alcácer. A nobreza que restou bandeou-se com Castela... Quem vos ouvir pensará que...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura, 

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza…»

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O Breviário

«De encontro às rochas via-se a nau partida, meia submersa, toda ela pelas junturas desfeitas tangendo com o movimento das ondas, ostentando ainda num pedaço da popa o seu nome, Quirina! Restos de corpos desmembrados jaziam entre tábuas ou pendiam, presos por fragmentos de roupa esfarrapada de algum cavilhame desventrado. Acenava tristemente ao vento que amainara uma tira de vela rasgada. Mastros e vergas, desconjuntados e estilhaçados, boiavam nas águas, precariamente ligados ao tombadilho. Na praia rolavam corpos na fímbria espumosa das ondas e outros, lançados já do mar, secavam na areia nus, inchados, esquálidos, de borco ou de barriga para o ar, cheios de pútrido mosquedo, apodrecendo com um fétido e insuportável cheiro. Debicavam já abutres nos cadáveres mais afastados de gente viva e outros pousavam, rondando, nas árvores e penedias próximas, à espera do sinistro festim.

Estando nós por algum tempo olhando em silêncio aquele lastimável destroço, disse-nos o patrão da nossa nau: Senhores, é mais tempo de obrar que de olhar. Movidos desta palavra, começámos todos a acudir aos feridos, lavando chagas com vinho e fazendo com muita diligência tudo o que o cirurgião mandava, procurando roupas para a nudez, pão para a fome, palavras de conforto para o desconsolo de alma, e com a ajuda da muita gente que tinha acorrido procedeu-se pelo dia fora ao enterramento dos mortos. Era quase fim da tarde quando, tendo preparado com dois pobres lenhos uma cruz para uma das últimas sepulturas, dei comigo a olhar fixamente a cara do morto. Estava nu, mas não me foi difícil recordar a figura viva e inquieta, vestida de peles, que mimava um frade que passeia de um lado para o outro lendo o seu breviário de capas de carneira castanhas, cantos de prata e letras gravadas a ouro. Era Argirópolos.

Perante a morte, perdoei-lhe o mal que, querendo fazer-me a mim, causara a meus irmãos Pietro e Bertino e, quando a última pazada de terra foi atirada sobre o seu corpo, coloquei-lhe na cabeceira da campa o tosco crucifixo feito de lascas dos madeiros da nau destruída.

O rei de Chipre

Emmanuelisque nomen et Lusítanae gentis virtutem laudibus summis exornavit.

Exaltou com os maiores louvores o nome de Manuel e o valor da gente lusitana. (Jerónímo Osório, De Rebus Emmanuelis Gestis)

Não mais que uma alfândega e casas térreas para recolher mercadorias, um pequeno hospital e uma igreja de São Lázaro, mas o branco vivo das paredes, quase a cegar os olhos, no verde-azul de montanha e céu, ria alegremente para a baía em que se espelhava, em chapadas e laminações de cal ondulante. Havia barcos de olhos arregalados no porto e as algas voluteavam e rendilhavam marulhos salgados, espumosos, por entre cintilações de prata e ouro. Acenavam perto, rente à água, asas lentas de gaivotas, dando as boas-vindas.

Voltava à minha boa disposição e aos meus sonhos, à paz comigo próprio. Mas seria eu o mesmo? Sentia-me diferente por dentro. Quantas coisas haviam passado, marcado para sempre a minha alma!... Tínhamos chegado a Salinas, ou Salamina como dizem outros, depois de três dias em que o vento nos fizera negaças, ora arremedando soprar de feição ora virando contrário. Fomos até obrigados a parar a meio caminho, em Limison. Mas eis-nos chegados a Salinas! Grande azáfama de carregar e descarregar mercadorias, que este é o principal porto da ilha de Chipre, o mais frequentado por navios estrangeiros e onde necessariamente hão-de aportar as naus venezianas que vêm a estas partes. Aguarda-nos uma pequena multidão de pessoas quando atracamos. Saídos ao cais, dirigem-se-nos com expressão e palavras aflitas, pedindo ajuda.

Aiuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Apontam-nos no porto, sem qualquer espécie de actividade, a nau dos peregrinos do ano passado, que, por desordem e pouca diligência do patrão, tinha ali invernado, com grande detrimento e prejuízo dos romeiros, no regresso da Terra Santa. Vendo-se enganados, os ricos buscaram seu remédio por onde puderam, indo-se para Veneza em outras embarcações, a queixarem-se à Senhoria da sem-razão e quebra de contrato que lhes fora feita; os pobres aqui ficaram na ilha, padecendo mil necessidades e misérias, aguardando que aquela mesma nau que os trouxera os tornasse a levar de regresso na Primavera que está ai a chegar.

Aíuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Abbiamo fame e miseria! Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza antes da sua partida para a Terra Santa. É Deus que vos envia para acudir à nossa necessidade!

Natural da Guiné, criada em Portugal, vendo-se um dia forra, não descansou enquanto não fez esta santa jornada, não pedindo de porta em porta, como muitos fazem, mas com o suor do seu rosto. Deu-se antes, alguns anos, a lavar roupa por dinheiro, até amealhar o que lhe pareceu bastar para a peregrinação. Não podia, todavia, contar com o percalço de uma tão prolongada paragem em Chipre, agravada pela total ausência do apoio a que, por contrato, os serviços da nau se haviam obrigado, e viu-se sem dinheiro sequer para comer. Mas como foi possível um tal desleixo do patrão?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

A Casa do Pó. Fernando Campos. « Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia…»

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O Breviário

«Para se comerem tira-se-lhes a casca, que é como a do figo mas de cor citrina. Partidos pelo meio ou de través, têm uma cruz em forma de tê. Afirmam orientais e Palestinos ser aquele o fruto proibido de que Adão comeu. Eu creio serem estas as bananas do nosso São Tomé, segundo a informação que me têm dado delas os que as viram e comeram. E para que falar dos vinhos de Chipre, tão nomeados e louvados em todo o Oriente, se a esposa nos Cantares de Salomão os louva com estas palavras: Botrus Cypri dilectus meus mihi?

Neste espaço de tempo, tomou tanta amizade connosco um mancebo grego, de nome Constantim Polachi, morador numa aldeia chamada Thimo, distante de Pafo uma grande milha, que não podia passar um dia sem nos vir ver. Convidava-nos para comer em sua casa, provia-nos de tudo o que de melhor havia na terra, sem interesse algum. Como não sabíamos o romeno nem ele o veneziano, só nos entendíamos por meio de intérprete. Esta dificuldade de entendimento arreliava Constantim, que às vezes, quando estávamos à mesa, tomava uma faca na mão e com a outra mão tirava fora a língua e arremedava cortá-la, dizendo que lhe vinha essa tentação por não ter palavras para exprimir quanta amizade nos tinha.

Três dias depois de estarmos em Pafo, regressámos à nau. O tempo mostrava-se algum tanto bonançoso e nós precisávamos de saber a determinação do patrão. Mas fomos encontrar todos metidos e enfrascados em suas vendas e mercancias, com mais vagar do que desejáramos. Amanhã, proponho eu ao meu companheiro que já se encontra deitado em seu catre, enrodilhado na sua manta, vamos visitar outro ponto da ilha? Com todo o prazer, irmão Pantaleão, responde bocejando cheio de sono e deixando resvalar as camândulas por entre os dedos. Ressonava. Eu também não tardei a adormecer. Mas o dia seguinte esforçou-se tanto o vendaval e o mar começou a empolar-se de tal maneira e a embravecer que, acordando estremunhados, cuidámos que nos iríamos perder naquele porto. A nau estava apenas com duas âncoras, mas, vendo o perigo, ordenou o piloto que lançassem mais duas, uma das quais era a que os Venezianos chamam âncora mestra, de tamanho e peso tão descomunal que é necessária toda a gente da nau para a levantar e largar. Só a usam em casos de tempestade extrema como este.

As ondas pareciam montanhas, de uma lividez esverdongada, que nos queriam tragar. Não se podia, por mais cordas que estendessem para os marinheiros se agarrarem, caminhar de um lado ao outro. Qualquer objecto mal amarrado ou acondicionado andava deslizando e marrando com o que encontrava. Sairmos da nau era coisa impossível. As duas naus francesas que no porto estavam e se dirigiam para Trípoli, na Síria, com a grande tempestade que fazia quase as não víamos nem elas a nós, pois as vagas desencontradamente ora nos alevantavam às nuvens ora nos desciam aos abismos arenosos. Andavam fora de si não só os passageiros, com doloridos gritos e lamentações, mas também marinheiros e oficiais, homens tão experimentados no mar. O que me dava mais pena era ver meu companheiro jazer em contínuos desmaios e quando tornava a si, abraçar-se a mim e pedir-me a confissão. Foi terrível a noite. Atribulados e cansados, ao romper do dia, com o vento soprando cada hora com mais ruidosa fúria, vimos surgir do esverdinhado do mar e das nuvens que nele assentavam o vulto negro e enorme de uma nau veneziana. Aproximava-se com incrível rapidez aquela negra sombra e com ela os lancinantes gritos que ao passar deixou em farrapos pelo ar, num turbilhão que parecia um inferno. Mostrava-se o mar cada vez mais enfurecido e o chuveiro era intenso. Sobrelevava o nosso próprio perigo o espanto e admiração de ver coisa tão horrenda: aquela massa enorme afastar-se a correr para ir esfrangalhar-se num estrídulo e pavoroso fragor, que estrondeou acima dos uivos do vento e do rebentar das ondas, na penedia junto de terra. Sem sabermos que cuidar nem que dizer, ficámos por momentos especados, a respiração suspensa, boquiabertos, atónitos, o coração a bater fortemente, e o nosso assombro aumentou ao vermos o mar começar a aquietar, o vento a calar, o chuveiro a cessar e o céu a aclarar. Eram quase dez horas do dia.

Presenciaram o desastre os vilões da montanha, que sempre do alto, dia e noite, têm suas vigias por causa dos corsários. Gente bárbara e cruel, logo acudiram à pressa, trazendo consigo suas bestas, e começaram desumanamente, sem nenhum temor de Deus, a roubar e carregar quanto o mar lançava fora. Querendo-lhes ir à mão os pobres homens que do naufrágio e da fúria das ondas escapavam, nus, miseráveis, meios mortos, com suas armas os ofendia como contra inimigo mortal aquela maldita canalha. Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia exerceu aquela gente tão impiedoso latrocínio, até que acudiu a justiça de Limison, cidade maior e mais importante que Pafo, que a muito custo correu com os ladrões. Também de Pafo acorria muita gente e os das naus, estando já o mar de todo sossegado, saíram em terra. Meu companheiro e eu começámos a caminhar para onde estava a nau perdida, que seria cerca de meia légua, e ao chegarmos apertou-se-nos o coração com o espectáculo lastimoso de tanto destroço, tanta gente morta e ferida espalhada pelo areal, que, de compaixão, não pudemos conter as lágrimas». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… só que eu já a usava na esquerda, fazia duas semanas, pouco tempo, não me acostumara. Também o relógio, preto e grande, aquele homem usava no pulso do mesmo braço e eu, em compensação, no do outro. Devia ser canhoto»

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« Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento, como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era eu quem a ultrajava. Ela estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto. Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil, garra de leão, aquele que agarrava e significava Você não vai se livrar de mim ou Vai comigo para o inferno, suspendeu-o no ar, e o braço nu ficou congelado no alto, como o de um atleta.

Vi sua axila recém-raspada, tinha se aprontado toda para o encontro. Olhou uma vez mais à minha esquerda e olhou para mim e olhou à minha esquerda e para mim. Mas o que está acontecendo?, voltou a perguntar Luísa de sua cama. Sua voz era temerosa, expressava um temor misto, interior e exterior, tinha medo do que estava acontecendo em seu corpo, tão longe de casa, e do que não sabia que estava acontecendo, ali na sacada e na rua, ou que estava acontecendo comigo e não com ela, os casais logo se acostumam a que tudo aconteça com ambos. Era de noite e nosso quarto continuava às escuras, devia sentir-se tão ofuscada que nem acendia o abajur da mesinha-de-cabeceira a seu lado. Estávamos numa ilha.

A mulher da rua ficou com a boca aberta sem dizer nada e levou a mão ao rosto, a mão que foi deslizando decepcionada, envergonhada e mansa para baixo desde cima. Já não havia mal-entendido. Ai, desculpe, disse-me ao cabo de uns segundos. Confundi o senhor com outra pessoa. Num instante toda a fumaça tinha-se dissipado e ela havia compreendido, isso era o mais grave, que tinha de continuar esperando, talvez onde estivera de início, não mais sob as sacadas, teria de voltar ao ponto escolhido originalmente, ao outro lado da rua além da esplanada, para lá arrastar com celeridade e ódio seu salto afilado após seus dois ou três passos, três machadadas e espora, ou espora depois dos machados. Era uma pessoa repentinamente desarmada, dócil, perdera toda a sua cólera e suas energias, e creio que não lhe importava tanto o que eu pudesse pensar de seu engano e de seu mau génio, afinal era eu um desconhecido a seus olhos verdes, quanto se dar conta de que seu encontro ainda corria o risco de não acontecer.

Fitava-me com seu olhar cinzento de repente absorto, com um pouco de desculpa e um pouco de indiferença, de desculpa o justo necessário, pois era a amargura que prevalecia. Ir embora ou esperar de novo, depois de ter concluído a espera. Não se preocupe, disse eu. Com quem está falando?, perguntou-me Luísa, que sem minha assistência ia saindo de seu estupor, embora não das trevas (a voz era um pouco menos rouca e sua pergunta mais concreta; talvez não estivesse entendendo que era noite).

Mas ainda não respondi nem me aproximei da cama para sossegá-la e arrumar os lençóis para ela, porque nesse momento abriram ruidosamente as portas da sacada à minha esquerda e vi aparecerem dois braços de homem que se apoiaram na balaustrada de ferro, ou a seguraram como se fosse uma barra móvel, e chamaram: Miriam!

A mulata, indecisa e confusa, tornou a olhar para cima, agora já sem dúvida à minha esquerda, sem dúvida para a sacada que se abrira e para os braços fortes que eram tudo o que eu via, os braços compridos do homem em mangas de camisa, as mangas arregaçadas, brancas, os braços peludos, tanto ou mais do que os meus. Eu havia deixado de existir, desaparecera, também estava de mangas arregaçadas, tinha levantado as mangas ao sair à sacada para debruçar-me, fazia pouco, mas agora eu havia desaparecido por ser eu outra vez, isto é, por ser para ela ninguém. No anular da sua mão direita o homem trazia uma aliança como a minha, só que eu já a usava na esquerda, fazia duas semanas, pouco tempo, não me acostumara. Também o relógio, preto e grande, aquele homem usava no pulso do mesmo braço e eu, em compensação, no do outro. Devia ser canhoto». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,

domingo, 28 de janeiro de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia…»

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«Embora eu continuasse sobressaltado, e além disso comecei a temer que os gritos daquela mulata acordassem Luísa às minhas costas, pude observar melhor o rosto, que de facto era de uma mulata bem clara, talvez tivesse uma quarta parte de negra, mais visível nos lábios grossos e no nariz um tanto achatado do que na cor, não muito distinta da cor de Luísa na cama, que passara vários dias bronzeando-se nas praias para recém-casados. Os olhos piscantes da mulher me pareceram claros, cinzentos ou verdes, pelo menos cor de limão, mas talvez, pensei, tenha ganhado de presente umas lentes de contato coloridas, causa de sua visão deficiente. Tinha narinas veementes, alargadas pela ira (tinha cara de velocidade portanto), e mexia a boca em excesso (agora eu teria lido sem dificuldade em seus lábios, se precisasse), com esgares parecidos com os das mulheres de meu país, isto é, de substancial desprezo.

Continuou se aproximando, cada vez mais indignada por não receber resposta, sempre repetindo o mesmo gesto do braço, como se não tivesse outro recurso expressivo além desse, um longo braço nu que dava um golpe seco no ar, os dedos dançando simultaneamente por um instante como para agarrar-me e depois arrastar-me, uma garra. Você é meu ou Eu te mato. Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse, mas começasse a troar no quarto; suficientes também, achei, para que me visse sem incerteza por mais míope que fosse, portanto parecia indubitável que eu era a pessoa com quem marcara um encontro importante, que a angustiara com meu atraso e a ofendera da sacada com minha vigilância calada que continuava ofendendo-a. Mas eu não conhecia ninguém em Havana, mais ainda, era a primeira vez que estava em Havana, em minha viagem de lua-de-mel com minha mulher tão recente.

Virei-me por fim e vi Luísa erguida na cama, com os olhos fixos em mim mas sem ainda me conhecer nem reconhecer onde estava, aqueles olhos febris do doente que acorda assustado e sem ter recebido aviso prévio de seu despertar no sono. Estava levantada, e o soutien saíra do lugar enquanto dormia, ou então no movimento brusco que acabava de fazer ao erguer-se: estava torcido, tinha descoberto um ombro e quase um seio, com certeza a estava incomodando, devia tê-lo prendido com seu próprio corpo esquecido no mal-estar e no adormecimento.

Que está acontecendo?, perguntou apreensiva. Nada, respondi. Volte a dormir. Mas não me atrevi a achegar-me e acariciar seus cabelos para tranquilizá-la de verdade e para que voltasse ao torpor, como teria feito em qualquer outra circunstância, porque naquele instante eu não me atrevia a abandonar meu lugar na sacada, nem a desviar os olhos por pouco que fosse daquela mulher que estava convencida de ter estado comigo, nem a evitar por mais tempo o diálogo abrupto que da rua se impunha a mim.

Era uma pena que falássemos a mesma língua e eu a compreendesse, porque o que ainda não era diálogo já se tornava violento, talvez porque não o fosse, não fosse diálogo. Eu te mato, filho-da-pu…! Juro que eu te mato aqui mesmo!, gritava a mulher da rua. Gritava aquilo do chão e sem poder me encarar, porque, justo no momento em que eu me virara para dizer a Luísa quatro palavras, um sapato tinha saído do pé da mulata e ela caíra, sem se machucar mas sujando na hora a saia branca. Gritava isto, Eu te mato, e ia se levantando, um tombo, a bolsa sempre pendurada no braço, não a soltara, aquela bolsa ela não soltaria nem que a esfolassem, tentava sacudir-se ou limpar a saia com a mão e estava com um pé descalço, erguido no ar, como se não quisesse de maneira nenhuma pousá-lo e sujar também sua planta, nem as pontas dos dedos sequer, o pé que poderia ver o homem que ela tinha encontrado, vê-lo de perto, em cima, e tocá-lo, mais tarde.

Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia, ainda que apenas um segundo, o necessário para secar o suor que lhe empapava a testa e os ombros e para ajustar ou tirar o soutien para que não a incomodasse e fazê-la regressar com palavras ao sono que a curaria». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Ainda estava à distância, atravessara a rua evitando os poucos carros sem procurar um semáforo e se achava no começo da esplanada, onde parara, talvez para descansar os pés e as pernas tão salientes…»

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«Ao dar mais passos do que os que dera repetidamente durante sua espera vi que andava com dificuldade e lentidão, como se não estivesse acostumada com os saltos, ou suas pernas robustas não fossem feitas para eles, ou a bolsa a desequilibrasse ou estivesse enjoada. Caminhava um pouco como Luísa tinha caminhado depois de sentir-se mal, ao entrar no quarto para deixar-se cair na cama, onde eu lhe tirara parte da roupa e a introduzira nos lençóis (eu a cobrira apesar do calor). Mas naquele andar desajeitado também se adivinhava a graça, perdida naquele momento: quando estivesse descalça a mulher mulata caminharia com graça, a saia ondularia, quebrando-se ritmicamente contra as coxas. Meu quarto estava às escuras, ninguém acendera a luz ao cair a noite, Luísa dormia indisposta, eu não me mexera daquela sacada, olhava os havaneses e depois aquela mulher que continuava se aproximando com passo trôpego e continuava gritando para mim o que agora já ouvia: Ei! Você o que faz aí?

Tive um sobressalto ao entender o que estava dizendo, não tanto porque o dissesse para mim quanto pelo modo de fazê-lo, cheio de confiança, furioso, como de quem se dispõe a acertar as contas com a pessoa mais próxima ou a quem está amando, que a irrita continuamente. Não era que se tivesse sentido observada por um desconhecido de uma sacada de um hotel para estrangeiros e viesse reclamar de minha contemplação impune de sua figura e de sua humilhante espera, mas sim que reconhecera de repente em mim, ao levantar a vista, a pessoa que estava esperando sabe lá havia quanto tempo, sem dúvida desde muito antes de eu a notar.

Ainda estava à distância, atravessara a rua evitando os poucos carros sem procurar um semáforo e se achava no começo da esplanada, onde parara, talvez para descansar os pés e as pernas tão salientes ou para alisar outra vez a saia, agora com maior afinco, já que por fim se encontrava diante de quem devia julgar ou apreciar sua queda, a da saia. Continuava fitando-me e desviando um pouco a vista, como se tivesse algum problema de estrabismo, seus olhos escapavam momentaneamente para minha esquerda.

Talvez tivesse parado e ficado longe para mostrar sua irritação e que não estava disposta a deixar o encontro se consumar assim sem mais nem menos uma vez que me avistara, como se ela não tivesse sofrido ou não tivesse sido destratada até dois minutos antes. Então disse outras frases, todas elas acompanhadas do gesto inicial do braço e dos dedos móveis, o gesto de segurar, como se com ele dissesse Venha cá ou Você é meu. Mas com a voz dizia, uma voz vibrante, importada e desagradável, como de apresentador de tevê, político num discurso ou professor dando aula (mas parecia iletrada):

Você o que faz aí? Não me viu que o estava esperando faz uma hora? Por que não me disse que você já tinha subido? Creio que dizia assim, com essa leve alteração na ordem das palavras e abuso dos pronomes em comparação com o que eu teria dito, ou qualquer pessoa de meu país, suponho». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

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A Casa do Pó. Fernando Campos. «Melhor que estas fábulas patranhosas, histórias frívolas, apócrifas e sobremaneira gostosas aos ouvidos, eram os ornamentos naturais da cidade e seu termo. Hortas viçosas…»

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O Breviário

«Não tínhamos pressa. Vimos os marinheiros começarem a bulir em caixotes e sacas que traziam de Veneza e nós já sabíamos o que aquilo queria dizer: detença no porto para se proceder à venda de mercadoria. Saíram também connosco dois fidalgos gregos que se tornaram nossos particulares amigos e ainda o bispo maronita. Frei Jorge conhecia a terra e a gente dela. Sabia falar a língua grega. Foi-nos, por isso, de grande utilidade e nós a ele, por nosso lado, pois levava muito fraca e miserável a sua bolsa. Em pessoa nos buscava tudo o que havíamos mister, sem se preocupar com a sua alta dignidade, mas não é coisa de estranhar, porque naquelas partes quase todos os bispos são pobres e vivem assim. Tinha uma zanga mortal aos Gregos.

Se me fosse possível, dizia muitas vezes, ter dentro de mim todos os gregos do mundo, consentiria de boa mente que me matassem de um golpe. Porquê, frei Jorge? Porque comigo morreriam os Gregos. A sua contumácia ia ao ponto de, tendo havia anos morrido sua mãe e sido enterrada em igreja de gregos, jamais lhe lançara água benta..., para não ter de entrar nessa igreja!, exclamava de dentes cerrados. Isto ouvíamos nós dele, enquanto fazíamos compras na cidade, depois de os gregos se terem despedido em companhia de parentes e conhecidos que, com muita festa, os vieram receber. Tais são, por nossos pecados, nestes calamitosos tempos, quase todos os cristãos de Oriente, criados e alimentados no ódio cego uns aos outros.

O meu espírito começava a acalmar e a minha tristeza ia-se esbatendo com os dias e com ver novas terras, aquela cidade tão antiga, aquela gente tão diferente na maneira e nos trajes e em tudo mais, os edifícios sumptuosos das duas catedrais, uma que faz à latina e outra à grega. Não oferecem curiosidade as casas de habitação, mas há por ali sinais de grandeza e tempos prósperos: vêem-se muitas antiguidades, como casas subterrâneas lavradas na pedra viva, com câmaras e estâncias de formas variadas, feitas todas de pedra de uma só peça. Em extremo desleixadas e destruídas, causam ainda assim admiração e espanto, mostrando a toda a pessoa curiosa como devem ter sido Notáveis as ruínas do antigo templo edificado em honra de Vénus Páfia: espalhados pelo chão inçado de ervas vêem-se grandes pedaços de colunas marmóreas e outras pedras raras como jaspes verdes, vermelhos e serpentinos, de grande fineza e lavrados com muita arte em diversos estilos, coríntio, dórico, romano...

Entre outras coisas, uma extraordinária abóbada que não nos souberam dizer para que tinha servido. São muito rústicos e ignorantes os gregos destas partes, e sem letras: somente sabem o grego vulgar de que fazem uso e, se alguma pessoa mais grada pretende conhecer o grego literário e gramatical, tem de ir aprendê-lo às escolas de Itália e de França, sobretudo a Veneza. Não há em toda a Grécia uma escola de grego, salvo em Atenas, onde o grão-turco, por memória do que foi e por mostrar sua grandeza, sustenta um estudo. É esta uma das razões por que se perderam muitos documentos escritos, sagrados e profanos, e a memória de muitas antiguidades da velha Hélade.

Continuando o tempo a mostrar-se-nos contrário e tudo sendo sinais de que a nossa detença ali seria de espaço, um dia nos levaram a visitar, légua e meia de Pafo, para norte, um pequeno templo, também dedicado a Vénus Páfia, ainda inteiro. Junto dele uma muito curiosa fonte de finíssimo mármore, que presentemente se chama Fonte dos Amores. Em volta ruínas de edifícios que aparentam grande antiguidade. Contam-nos que havia muito já que o culto de Vénus tinha acabado, e ainda o lugar continuava habitado por gente sensual e desonesta, e aquela fonte era objecto de muitas superstições e embaimentos: as mulheres estéreis recorriam a ela a ver se emprenhavam; as prenhes a ela vinham para terem um bom parto; as solteiras para atraírem os homens; as viúvas para de novo arranjarem marido, para tudo aquela água tinha virtude.

Melhor que estas fábulas patranhosas, histórias frívolas, apócrifas e sobremaneira gostosas aos ouvidos, eram os ornamentos naturais da cidade e seu termo. Hortas viçosas, verdes canaviais de açúcar e pomares ubérrimos com toda a espécie de arvoredo frutífero, onde, além da fruta de espinho que nesta altura está em sua perfeição, se pode apreciar a abundância de tâmaras, grandes, formosas e extremamente gostosas, muito inhame e os palmares de musas que naqueles sítios e em todas as mais partes orientais onde as lá chamam por outro nome, o depomumparadisi. São umas árvores da altura de uma lança, se tanto, e de folhas tão grandes que duas podem cobrir um homem. Dão uns cachos enormes e compridos, com quinze ou vinte pomos ou mais, que são de muito suave doçura, a carne deles como marmelada fresca e mole, a modo de figos mas a massa mais tesa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O Último Catão. Matilde Asensi.«Aquele homem jamais poderia se fazer passar por outra coisa distinta do que era, um etíope, pois seus traços étnicos eram muito apurados. Como a maioria deles, era muito magro e espigado, de carnes fibrosas…»

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«Vamos precisar destes equipamentos para trabalhar, anunciou a Rocha às minhas costas. Espero que esteja certo capitão! Quem deu permissão para entrar no meu escritório e organizar este baderna? O prefeito Ramondino. Mas podiam me consultar! Montamos o equipamento à noite, quando você já saíra. Em sua voz não havia nem uma pequena nota de aflição ou sentimento; se limitava a me informar e ponto, como se tudo o que ele fizesse estivesse acima de qualquer discussão.

Esplêndido! Realmente esplêndido! Reclamei carregada de rancor. Você deseja começar a trabalhar ou não? Girei como se me tivesse esbofeteado e o olhei com todo o desprezo de que era capaz. Terminemos o quanto antes com isto. Como você quiser, murmurou arrastando muito os erres. Desabotoou a jaqueta e, de algum lugar incompreensível, apanhou o avultado dossiê de capas negras que monsenhor Tournier me mostrara o dia anterior. É todo seu, disse, me oferecendo. E você vai fazer o quê enquanto eu trabalho? Usarei o computador. Com que objectivo? Perguntei, estranhando. Meu analfabetismo informático era um problema pendente que sabia que algum dia teria de enfrentar, mas, no momento, como boa erudita, me encontrava muito a gosto depreciando essas diabólicas maquininhas.

Com objectivo de resolver qualquer dúvida que você tenha e dar toda a informação existente sobre qualquer tema que deseje. E ficou nisso. Comecei examinando as fotografias. Eram muitas, trinta exactamente, e vinham numeradas e classificadas por ordem temporal, quer dizer, do princípio ao fim da autópsia. Após uma olhada inicial, selecionei aquelas em que se via estendido sobre uma mesa metálica, o corpo do etíope nas posições de decúbito supino e decúbito prono, boca para cima e boca para baixo. À primeira vista, o mais destacável era a fractura dos ossos da pélvis, pelo o arco pouco natural que delineavam as pernas, e uma tremenda lesão na área parietal direita do crânio que deixara descoberto, entre pedaços de osso, a gelatina cinza do cérebro. Descartei, por inúteis, o restante das imagens, pois, em que pese que o cadáver apresentasse várias lesões internas, não achava que fossem relevantes para meu trabalho. Fixei-me, isso sim, nas que, provavelmente por causa do impacto, mutilara a língua com os dentes.

Aquele homem jamais poderia se fazer passar por outra coisa distinta do que era, um etíope, pois seus traços étnicos eram muito apurados. Como a maioria deles, era muito magro e espigado, de carnes fibrosas, e a cor de sua pele se destacava por ser demasiado escura. As feições de seu rosto, com certeza, constituíam a prova definitiva e delactora de sua origem abissínia: pômulos altos e muito marcados, grandes olhos negros, que apareciam abertos nas fotografias, com um resultado impressionante, fronte ampla e ossuda, lábios grossos e nariz fino, quase de perfil grego. Antes que raspassem a parte da cabeça que permanecia íntegra, apresentava um cabelo encaracolado, bastante sujo e manchado de sangue; depois de raspado, no centro mesmo do crânio, podia se ver com clareza uma fina cicatriz com a forma da letra grega sigma maiúscula.

Naquela manhã não fiz outra coisa além de observar, uma e outra vez, as terríveis imagens, repassando qualquer detalhe que me resultasse significativo. As cicatrizes se destacavam sobre a pele como linhas de estradas num mapa, algumas carnosas e avultadas, muito desagradáveis, e outras estreitas, quase imperceptíveis, como fios de seda. Mas, todas, sem excepção, apresentavam uma coloração rosada, até avermelhada em alguns pontos, que lhes conferia o repulsivo aspecto de enxertos de pele branca sobre pele negra. No meio da tarde, tinha o estômago embrulhado, a cabeça embotada e a mesa cheia de anotações e esquemas das cicatrizes do falecido». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

 Cortesia de EDQuixote/JDACT

JDACT, Matilde Asensi, Literatura, Vaticano, Conhecimento, 

O Último Catão. Matilde Asensi.«O que aconteceu aqui? Meu velho escritório fora desmontado sem misericórdia até um dos cantos e, em seu lugar, uma mesa metálica com um gigantesco computador ocupava o centro dele»

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«O Alfa-Romeo atravessou as ruas do burgo a toda a velocidade, porque o capitão também adoptara a forma suicida de direcção romana e, antes de poder dizer amém, estávamos cruzando a Porta Santa Anna e deixando atrás os barracões da Guarda Suíça. Se eu não gritei, nem quis abrir a porta e sair durante o trajecto, foi graças à minha origem siciliana e a que, quando jovem, tirei a carteira de motorista em Palermo, onde os sinais de trânsito servem de enfeite e tudo se baseia na relação de forças, o uso da buzina e o vulgar senso comum. O capitão parou bruscamente o veículo num estacionamento que ostentava uma placa com seu nome e desligou o motor com expressão satisfeita. Aquele foi o primeiro traço humano que pude observar nele e me chamou muito a atenção; sem dúvida, dirigir-lhe encantava. Enquanto caminhávamos até ao arquivo por passagens do Vaticano desconhecidas até esse momento para mim, atravessamos um moderno ginásio, cheio de aparelhos, e um polígono de tiro que eu nem sabia que existia. Todos os guardas com os que íamos cruzando paravam ante nós e saudavam marcialmente Glauser-Róist.

Um dos assuntos que mais aguçara minha curiosidade através dos anos era a origem dos chamativos uniformes multicoloridos da Guarda Suíça. Por desgraça, nos documentos catalogados do Arquivo Secreto não existia nenhum documento que confirmasse ou desmentisse que o desenho fora realizado por Miguel Ângelo, como se comentava, mas eu confiava que o documento apareceria um dia entre a enorme quantidade de papéis ainda por estudar. Em qualquer caso, Glauser-Róist, ao contrário de seus companheiros, pareci  a nunca utilizar o uniforme, pois nas duas ocasiões que o vira, estava à paisana e, com roupa muito cara para o magro soldo de um pobre guarda suíço.

Cruzámos em silêncio o vestíbulo do Arquivo Secreto, passando na frente do escritório fechado do reverendo padre Ramondino e entrámos no elevador. Glauser-Róist introduziu sua flamante chave no painel. Você trouxe as fotografias, capitão? Perguntei com curiosidade enquanto descíamos para o Hipógeo. Trouxe doutora. A cada vez parecia mais com uma afiada rocha áspera. Onde haviam encontrado um tipo assim? Então suponho que começaremos a trabalhar agora mesmo, não é? Agora mesmo. Meus funcionários ficaram boquiabertos quando viram passar Glauser-Róist pelo corredor em direcção ao laboratório. A mesa de Guido Buzzonetti estava dolorosamente vazia naquela manhã.

Bons dias, exclamei em voz alta. Bons dias, doutora, murmurou alguém para não me deixar sem resposta. Mas, se o silêncio mais fechado nos acompanhou até a porta de meu escritório, o grito que eu deixei escapar ao abri-la se escutou até no Foro Romano. Jesus! O que aconteceu aqui? Meu velho escritório fora desmontado sem misericórdia até um dos cantos e, em seu lugar, uma mesa metálica com um gigantesco computador ocupava o centro dele. Outros aparelhos de informática foram colocados sobre pequenas mesinhas de metacrilato retiradas de algum escritório em desuso e dezenas de cabos e conectores percorriam o solo e as laterais de minhas velhas estantes. Tapei a boca com as mãos, horrorizada, e entrei pisando com tanta precaução como se estivesse caminhando entre ninhos de cobras». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… deixando nosso direito caminho, e tomámos porto a pouco menos de meia légua da cidade de Pafo. Lançada âncora, saíram a terra alguns passageiros naturais da ilha. Frei Zedilho e eu fizemos-lhes companhia e fomos ter à cidade»

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O Breviário

«A sua desconfiança tinha fundamento, pois que sendo preso o pescador meteram-no a tormento e ao primeiro trato confessou o que se passara, denunciando os seus três outros cúmplices. Céus! Ainda hoje tremo de horror e de compaixão a pensar nisso! Alguém havia comprado aqueles homens para matarem um tal frade franciscano que trazia na mão um breviário de couro com cantos de prata e letras de ouro. Pietro e Bertino, não sei qual dos dois pegou por inadvertência no meu breviário. Isto me salvou a vida e custou a deles, porque saindo a terra para se recrearem dos enfados do mar foram aliciados por aqueles homens a irem visitar umas furnas que eles diziam ser muito formosas e ter uma imagem de nosso padre São Francisco feita na rocha viva muito tempo antes de ele ter vindo ao mundo. Tão grande maravilha foi o suficiente para convencer a boa-fé dos dois pobres frades. Uma vez nas furnas escondidas, ataram-nos de mãos e pés, mataram-nos com pancadas e lançaram-nos ao mar, com enormes pedras para os corpos não mais poderem aparecer... Mas a justiça humana não consentia em perdoar-se tão grande crime!, e o meirinho, apontava, na costa não muito distante de nós, um morro onde se viam baloiçando sinistramente ao vento quatro corpos pendurados pelo pescoço em suas forcas. Só faltava apanhar um, que parecia ter sido o chefe, um tal Argirópolos. Mas ninguém mais lhe deitara a vista em cima!, juntei minhas lágrimas às de Signor Nicolló e durante dias não saí do meu camarote nem tomei refeição, tão deprimido andava. Não era medo, por mim. Nem nisso tinha ainda pensado, de tal maneira me obcecava a visão dos meus pobres companheiros mortos. Foi o próprio patrão que desceu a buscar-me para comer à sua mesa e quase me obrigou de sua força: Era pecado mortal o suicídio. E que coisa era senão isso que andava a fazer frei Pantaleão?

Rezasse pelas almas de meus irmãos, mas cumprisse, enquanto peregrinava neste vale de lágrimas, a minha missão com alegria. Passava longas horas esquecidas na amurada, sozinho, alheado, adormecido, vendo a quilha do barco cortando monotonamente a água. Já íamos muito longe de terra, Undia ficara para trás, passáramos Escarpanto e estávamos navegando pelo grande golfo de Satália, felizmente com vento próspero e amigável de poente, o que nos movia a de continuo darmos graças a Deus, porque, segundo nos afirmavam, é raríssimo passar-se ali, especialmente no Inverno, sem algum enfadamento dos navegantes e muitas vezes se têm perdido as naus.

Antigamente..., dizia-me um passageiro grego que se viera postar junto de mim, que bem sentia o esforço que todos faziam para me arrancarem ao meu acabrunhamento. Num barco tudo se sabe e aquela tragédia, além de contristar toda a gente, fez incidir sobre mim uma especial áurea que o suspeitado mistério que me rodeava acrescia de um vago temor e acatado respeito, este golfo era ainda mais perigoso do que ao presente porque, com as tempestades, andava aqui um dragão marinho, muito grande e espantoso, que subvertia as embarcações. Andou aqui, era agora, do outro lado de mim, a voz de frei Zedilho, que também viera fazer-me companhia para me distrair, até ao tempo de Santa Helena, mãe do imperador Constantino.

Passando ela um dia por aqui, lançou ao mar um dos cravos com que o Redentor foi pregado na cruz e desde então nunca mais o dragão apareceu. Terra à vista!, gritou do alto da gávea um marinheiro e logo de todos os lados ocorreu gente a olhar ao longe uma ténue mancha que no horizonte começava a sombrear-se. É Chipre!, dizia alguém próximo de mim. Daí a pouco via-se nitidamente o monte Tróodos, dominando com sua grande altitude aquela parte da ilha, dele escorrendo em leque inúmeros contrafortes entre que se cavavam talhados sombrios e exuberantes.

Muito perto da ilha sobreveio um vento sul muito áspero e desumano, que nos afligiu a todos e desconsolou, que nisto param de ordinário todas as coisas de vida. Mas pudemo-nos remediar, porque, navegando muito junto a terra, fomos ao longo dela, deixando nosso direito caminho, e tomámos porto a pouco menos de meia légua da cidade de Pafo. Lançada âncora, saíram a terra alguns passageiros naturais da ilha. Frei Zedilho e eu fizemos-lhes companhia e fomos ter à cidade». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos»

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O Breviário

«Assim, celebrámos a missa do dia no convés da nau, com muita solenidade e festa e deu-nos a bênção episcopal um sacerdote maronita chamado Jorge, arcebispo de Damasco, que embarcara connosco em Veneza. Enviara-o a Roma o patriarca dos maronitas do monte Líbano, Moisés, com o fim de assistir ao Concilio de Trento. Pio IV, porém, embora o tenha recebido com mostras de paternal amor, não acede a enviá-lo ao concílio, visto ele não saber latim e conhecer deficientemente o italiano. Pelo contrário faz o arcebispo portador de uma carta de Setembro atrás passado, para o patriarca Moisés, em que, explicando isto mesmo, afirma que será bastante que o patriarca escreva, tão depressa quando possível, uma declaração de como ele, os seus sufragâneos e o seu clero testificam e aproveitam, tal como o fez o patriarca assírio Abdisu, que recentemente estivera em Roma, os decretos emanados do Concílio Tridentino, aprovando tudo o que este aprovar e condenando tudo o que este condenar. Quer dizer, Sua Santidade, não confiando muito na cultura do seu patriarca de monte Líbano, na sua carta enviava-lhe a minuta da que ele lhe deverá escrever de seu punho.

Era eu muito familiarizado com frei Jorge, por o haver conhecido e ajudado quando estava na Cúria romana. Daí que não seja de estranhar conhecer eu todos estes pormenores, bem como o ter gasto toda essa manhã, antes da missa, a ensinar ao bispo como havia de proceder ao dar-nos sua santa bênção em latim, ao nosso modo, recomendando-lhe que se paramentasse com aquele magnífico pontifical com que Sua Santidade presenteara o seu patriarca. In nomine Patris..., repetia eu pela centésima vez. Mas ele, de ouvido duro: Mè nè Pàtros... In nomine Patris et Filii... Mè nè Fílios...

Com muita paciência lá o fui ensinando como pude e, cuidando que não havia mais que fazer, dispusemo-nos a assistir à missa. Quando esta acabou, julgando eu que ele ia aparecer de pontifical e mitra, pôs-se no altar com uma grande trufa na cabeça à maneira de turco, em lugar de mitra, e sem mais adiutorium nostrorum nos lançou a todos uma rasgada e soleníssima bênção, dizendo em alta voz: Ménós Pátras, ménós Filiós, ménós Spírítós Sanctós. Foi um fungar de risos mal contidos e algumas risotas um tanto descaradas, mas o arcebispo estava tão radiante que nada notou.

Aquele dia houve banquete a bordo, oferecido pelo patrão da nau a todos quantos nela iam e também aos patrões e pilotos das outras naus. Tinham os homens da montanha vindo ao barco, no dia anterior, vender muita caça, e frei Zedilho, sem me dar conta, fez pagar uns quatro ou cinco leitões, porque o escrivão de bordo levava ordens para pagar tudo o que nos fosse necessário até sairmos em Chipre. Mandou aquentar água para os pelar e, com um moço que na nau estava ao nosso serviço, pôs-se, desatinadamente e por festa, a degolar os inocentes. Ainda que no mar, havia quase dois meses que guardávamos jejum, por ser Advento e nossa regra assim nos obrigar. Também o guardam os Gregos e foi isso que extremamente escandalizou, pois são supersticiosos, uns quantos que vinham na nau entre os passageiros. Levantou-se um murmúrio tal e palavras tão desconcertadas que frei Zedilho, sentindo-se, desatou a chorar. Estava eu em baixo, no camarote, a ler um sermonário de São Vicente Férrer. Apesar de não ser pregador, muito o estimava, com o seu tão santíssimo o bona gens, quando o meu companheiro me aparece lavado em lágrimas

Que é isso, irmão? Com a voz embargada lá me foi contando o sucedido. Acudo eu logo acima à coberta a repreender os gregos: Mas que supersticioso desaforo e desaustinada insensatez era aquela?, disparei eu, influenciado pela eloquente leitura do sermonário. Não matavam os seus sacerdotes as pulgas e os piolhos quando lhes mordiam? Claro que sim! Então que diferença faziam as almas e os espíritos de pulgas e piolhos das dos porcos?

Interditos com uma pergunta tão simples e sem saída, não sabendo que me responder, acabaram por pedir desculpas a frei Zedilho, e retiraram-se. Irmão Zedílho, lhe disse eu, quando ficámos sós, o que não é honesto fazer-se entre católicos não será bem fazer-se entre cismáticos e demais gregos, tão preconceituosos. Mea culpa, irmão Pantaleão! Decorria o banquete com muita alegria, risos, conversa animada e boa disposição de todos, quando de terra veio um batel que trazia uns como que meirinhos ou justiças-mores do lugar. Logo procuraram o patrão e durante algum tempo falaram com ele à puridade, Um moço veio ter comigo: Que o patrão me mandava chamar. Levantei-me imediatamente e segui o moço. No seu camarote o patrão, sentado a uma mesa, tinha a cabeça entre as mãos e chorava. Os dois oficiais de justiça estavam de pé junto dele. Depois de um pequeno cumprimento de cabeça, um deles perguntou-me: Sois frei Pantaleão? Acenei que sim. Podeis mostrar-me o vosso breviário? Posso mostrar-vos, respondi, tirando do bolso o breviário em que inadvertidamente pegara - aquele que comigo trago e que, por engano, troquei com o de algum companheiro.

Como é o vosso? Tem uma encadernação invulgar de carneira castanha, cantos de prata, letras gravadas a ouro. Que sabeis dele? É livro que tenho em muita estima e bem me pesaria perdê-lo. Este?, e mostrava-mo. Meu Deus!, exclamei eu, pegando nele e tumultuando-me na cabeça não sei que pensamentos sestros e suspeitas. Onde o encontrastes? Que um livreiro da cidade de Cândia, ao norte, o mesmo nome da ilha, sabia? Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!»

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O Breviário

«Certamente, aventou frei Zedilho, desencontraram-se de nós. Como viemos por outro caminho... Estão no mosteiro, de certeza. Vou ordenar que alguém vá por eles, disse o patrão. Passámos essa noite repousadamente, não nos cansando de contar a todos as maravilhas que tínhamos visitado, o que lhes causava admiração. O tempo estava muito claro e o mar bonançoso. Não obstante não faziam mostra de querer levantar vela.

Mestre Teodoro, perguntava frei Zedilho ao piloto, se temos tempo de feição, porque não levantamos âncora? Por duas razões, lhe respondeu ele. A primeira é que o patrão nunca partiria sem ter a bordo os vossos dois companheiros... Oh, meu Deus! Como me esquecia! Desculpai a pergunta. Mas se não houvesse essa razão de peso, outra haveria para não partirmos antes de lua cheia, que deve ser daqui a dois dias. Teremos de aguardar, a ver se com ela o tempo faz alguma mudança. Fazendo-a, então não havemos de partir tão cedo deste porto. Aí adiante temos de passar um golfo que não é para graças. Nele se têm perdido muitas naus.

No dia seguinte, que era véspera de Natal, quando Signor Nicolô se preparava para enviar ao mosteiro pelos dois franciscanos, apareceram, vindos de lá, dois caloiros, mandados pelo abade como lhes havíamos pedido. Traziam-nos muita fruta de espinho e outro refresco. Não estiveram no vosso mosteiro dois irmãos franciscanos?, perguntou o patrão. Que sim, que haviam estado, respondiam pensando tratar-se de mim e de frei Zedilho. Mas que tinham tomado por outro caminho a visitar antiqualhas.

O momento era de certa euforia. Trocavam-se presentes, fazendo agora nós toda a caridade possível aos dois caloiros, inclusivamente o tirar-se particular esmola para eles, dando cada um do que tinha. Ninguém notou, por isso, a confusão e o equívoco em que se estava caindo e os nossos espíritos eram serenos. Despediram-se os caloiros muito contentes e nós ficámos cheios de alegria, preparando a festa de Natal e esperando a nossa partida.

Em querendo anoitecer, ruido de cavaquinhos, violas, adufes, flautas, tambores, que sei eu, tudo de mistura, vem quebrar a monotonia a bordo e festival cortejo passeia-se por todo o convés da nau. São os patrões e oficiais das outras embarcações que também no porto estão aguardando tempo. Festejam o nascimento de Cristo, tangendo e cantando. Param de vez em quando, a combinar, muito ordeiramente, qual dos grupos vai cantar. É então possível ouvir lindas canções da natividade em francês, em italiano, em grego. Não deixa frei Zedilho os seus créditos por mãos alheias e, saindo um pouco da sua natural timidez, entoa, logo acompanhado pelos instrumentos músicos, um cantar castelhano que começa: Nacid en Belén un niño chiquitín hermoso como un serafín...

Apertam comigo para que também cante em português. Não me faço rogado, olha eu. Escolho, entre muitos hinos que sei, um muito vivo e mexido que tem o condão de pôr toda a gente a cantar: Pastores! Pastores! Vamos todos a Belém adorar o Deus-Menino que Nossa Senhora tem.

Preparamo-nos para a missa. Valha-me Deus que, enquanto me paramento, ainda com os ouvidos cheios daqueles cânticos de Natal, só me acode à lembrança aquele adágio que diz: Itali ululant, Hispani plangunt, Galli canunt, os Italianos uivam como cães quando cantam, os Espanhóis mostram chorar porque tudo são sentimentos e endoenças, mas os Franceses no seu cantar mostram prazer e alegria, coisa natural nos galos em todo o tempo e lugar...

Coube-me a mim celebrar a missa, ainda que havia de ser uma missa seca, por estarmos no mar, embora sobre âncora e porto seguro. Foi acompanhada com violas de arco, cravo e manicórdio. O mais da noite passou-se tangendo e cantando. O dia de Natal acordou festivo, as naus todas embandeiradas, a dispararem sua artilharia. O padre meu companheiro disse a missa de alva e, para a missa do dia, houve quem aventasse que se devia celebrar em terra, em uma ermidinha que estava algum tanto desviada do porto, mas os fidalgos gregos que vinham na nossa nau, o atalharam: Não o fizéssemos! Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,