jdact
e cortesia de wikipedia
«(…)
Continuava a guiar-se pelas suas notas ou pelo menos fingia. Tinha ainda a cara
entre as mãos e parecia decidido a assim permanecer, como se depreendia da
rigidez obstinada dos ombros. Diga lá outra vez, ordenou Woodrow, após uma
pausa. A Tessa estava acompanhada pelo Arnold Blulim. Instalaram-se juntos na
Pousada Oasis, passaram lá a noite de sexta-feira e partiram na manhã seguinte,
às cinco e meia, no jipe do Noah, repetiu Mildren pacientemente. O corpo de
Blulim não estava no todo-o-terreno e não há nenhum vestígio dele. Pelo menos
até agora. A polícia de Lodwar e a brigada móvel estão no terreno mas o comando
da Polícia em Nairóbi quer saber se pagamos ou não um helicóptero. Onde estão
os corpos, neste momento?, perguntou Woodrow como bom filho de militar, seco e
prático. Não se sabe. A Polícia queria que o Oasis ficasse com eles mas o
Woffigang recusou. Disse que o pessoal sairia imediatamente porta fora e os
clientes também. Houve uma hesitação. Ela registou-se na Pousada sob o nome de
Tessa Abbott. Abbott?
É o seu
nome de solteira. Tessa Abbott, com uma Caixa Postal em Nairobi. É a nossa.
Como não tínhamos nenhum Abbott, procurei-o no nosso computador e apareceu
Quayle, Tessa, nome de solteira Abbott. Acho que é o nome que ela usa no seu
trabalho de ajuda humanitária. Mildren estudava a última página das suas notas.
Tentei alertar o Alto Comissario, mas ele anda a visitar os ministérios e
estamos em hora de ponta, disse ele. Com isto queria dizer: isto é o Nairóbi
moderno do Presidente Moi, em que numa chamada local pode passar-se meia hora a
ouvir: desculpe, todas as linhas estão ocupadas, volte a ligar por favor,
repetido vezes sem fim por uma simpática voz feminina de meia-idade. Woodrow já
tinha chegado à porta. E não contou a ninguém? Nem um pio. E à polícia contou? Eles
dizem que não. Mas não põem as mãos no fogo pelo pessoal de Lodwar. Nem por eles
próprios, creio eu.
E quanto a
si, Justin também não sabe de nada? Exacto. Onde está ele? Calculo que no seu
gabinete. Não o deixe sair de lá. Ele hoje chegou cedo. É o costume, quando a
Tessa viaja pelo mato. Acha que cancele a reunião? Espere. Consciente agora, se
é que alguma vez duvidara, de que estava a braços com um mega-escândalo, além
de uma tragédia, Woodrow esgueirou-se por umas escadas das traseiras marcadas Só
para Pessoal Autorizado e subiu uma passagem lúgubre que levava até uma
porta de aço com uma campainha e um olho-de-boi. Uma câmara de televisão
seguiu-o enquanto ele tocava a campainha. A porta foi aberta por uma ruiva
magra que usava jeans e uma blusa solta às flores. Sheila, o número dois deles,
que fala Swahili, pensou ele automaticamente. O Tim está?, perguntou. Sheila
premiu um besouro e falou para uma caixa. É o Sandy e está com pressa.
Só um
minuto, gritou uma voz de homem. Esperaram. A costa está completamente livre,
agora, disse a mesma voz bem disposta enquanto se abria outra porta. Sheila
recuou e Woodrow seguiu-a para dentro da sala. Tim Donohue, Chefe do MI 5 local,
um metro e noventa, estava de pé diante da sua secretária. Devia ter estado a
arrumá-la, porque não havia um único papel à vista. Donoluie tinha ainda mais
mau parecer do que o costume. Gloria, a mulher de Woodrow, dizia sempre que ele
devia estar à morte. Faces encovadas e sem cor, bolsas de pele enrugada sob os
olhos amarelados e descaídos. O bigode desgrenhado e puxado para baixo numa
expressão cómica de desespero. Olá, Sandy. Que é que podemos fazer por si?,
gritou ele, espreitando Woodrow por cima dos bifocais com o seu sorriso de
caveira. Este é perspicaz demais, lembrou-se Woodrow. Faz um voo planado sobre
o nosso território e intercepta os sinais ainda antes de serem executados. Tessa
Quayle parece ter sido assassinada algures perto do Lago Turkana, disse ele,
com um desejo vingativo de chocar. Há lá um sítio chamado Pousada Oasis.
Preciso de falar pela rádio com o proprietário. São treinados para isto,
pensou. Regra número um: nunca demonstrar os seus sentimentos, se eles
existirem. A cara sardenta de Sheila estava imóvel, pensativa. Tim Donohue
mantinha o seu sorriso parvo, de qualquer modo aquele sorriso nunca tivera
nenhum significado.
O quê,
caro amigo?! Repita lá isso. Assassinada. Método desconhecido ou a polícia não
quer dizê-lo. O condutor do jipe onde ela ia ficou sem cabeça. A história é
essa. Morta e roubada? Assassinada. Só. Perto do Lago Turkana? Sim. Que raio
tinha ido ela lá fazer? Não faço ideia. Ao que dizem, ia visitar as escavações
Leakey. O Justin já sabe? Ainda não. Estará envolvido alguém nosso conhecido? É
uma das coisas que ando a investigar. Donohue conduziu-o a uma cabine à prova
de som que Woodrow nunca vira antes. Havia telefones de cores variadas com
cavidades para introduzir fichas de código. Uma máquina de fax pousada sobre
uma coisa que parecia um barril de petróleo. Um aparelho de rádio formado por
caixas de metal verde. Um livro de endereços escrito à mão pousado em cima. É
então assim que os nossos espiões cochicham uns com os outros dentro das nossas
embaixadas, pensou ele. Nas mais altas esferas ou no submundo do crime? Nunca o
soubera. Donohue sentou-se em frente do rádio, procurou na lista de endereços,
depois manuseou os controles com os dedos brancos e tremelicantes enquanto
entoava ZN13 85, ZN13 85 chamando TKA 6N, como o herói num filme de guerra. TKA
6O, está-me a ouvir, por favor? Escuto. Oasis, está-me a ouvir, Oasis? Uma
explosão de electricidade estática, seguida por uma voz autoritária: Aqui
Oasis. Ouço perfeitamente. Quem é você? Escuto, com um sotaque germânico de
baixa extracção. Alô Oasis, aqui a Alta Comissão Britânica em Nairóbi, vou-lhe
passar Sandy Woodrow. Escuto. Woodrow apoiou as mãos na secretária de Donohue,
para se aproximar do microfone: aqui Woodrow, Chefe de Chancelaria. Estou a
falar com Wolfgang? Escuto. Chancelaria, como a do Hitler? Secção política.
Escuto. Okay senhor Chanceler, eu sou o Wolfgang. Que deseja saber? Escuto. Quero
que me dê, por favor, pelas suas próprias palavras a descrição da mulher que
passou a noite no seu hotel sob o nome de miss Tessa Abbott. É assim, não é?
Foi o nome que ela escreveu? Escuto. Claro: Tessa. Como era ela, fisicamente?
Escuto. Cabelo escuro, sem maquilhagem, alta, vinte e muitos e não era inglesa.
Cá para mim, não era. Alemã do Sul, austríaca ou italiana. Eu sou hoteleiro,
reparo nas pessoas. E ela era linda! Também sou homem. Aquele modo de andar,
sexy como um animal... E o que ela trazia vestido... dava ideia que se podia
tirar aquilo tudo só com um sopro, Parece-lhe a sua Abbott ou outra pessoa
qualquer? Escuto». In John Le Carré, O Fiel Jardineiro, 2001, Editora Dom Quixote, 2001,
ISBN 978-972-203-048-9.
Cortesia
de EDQuixote/JDACT
JDACT, John
Le Carré, Literatura,