domingo, 30 de novembro de 2014

A História Secreta dos Jesuítas. Edmond Paris. «… misticismo por alguém possuidor de uma inteligência brilhante. A mente fraca, entregue ao misticismo, encontra-se em área perigosa, mas o místico inteligente representa um perigo muito maior, pois seu intelecto trabalha em maior profundidade e amplitude…»

Cortesia de wikipedia

Fundação da Ordem Jesuíta
«(…) Ele deixou os livros de lado e começou a imaginar e sonhar. Um típico caso de sonhar acordado, uma continuação na vida adulta do jogo imaginário infantil. Se deixarmos que este invada o domínio físico, o resultado é uma neurose e uma alienação da vontade: o que é real fica em segundo plano. À primeira vista, esse diagnóstico parece difícil de ser aplicado ao fundador de uma Ordem tão activa. O mesmo ocorre em relação a outros grandes místicos e criadores de sociedades religiosas, todos aparentemente muito capacitados para organizações. Acreditamos, no entanto, que todos fossem incapazes de resistir a suas imaginações superactivas e, para eles, o impossível torna-se possível. O mesmo autor também diz sobre o assunto: Quero ressaltar o resultado óbvio da prática do misticismo por alguém possuidor de uma inteligência brilhante. A mente fraca, entregue ao misticismo, encontra-se em área perigosa, mas o místico inteligente representa um perigo muito maior, pois seu intelecto trabalha em maior profundidade e amplitude. Quando o mito assume o controle da realidade, através de uma inteligência activa, torna-se mero fanatismo; uma infecção da vontade que sofre de um alargamento ou distorção parcial. Ignácio de Loyola foi um exemplo típico desse misticismo activo e distorção da vontade. A transformação do cavaleiro-guerreiro em fundador da Ordem mais militante da Igreja Romana foi muito lenta; haveria muitos passos vacilantes antes dele encontrar sua verdadeira vocação.
Na primavera de 1522, ele deixou o castelo ancestral com a ideia de se tornar um santo semelhante àqueles cujas façanhas edificantes havia constatado naquele grande livro gótico. Além disso, segundo ele, a própria Virgem lhe teria aparecido numa noite, segurando nos braços o menino Jesus. Um soldado desobediente e presunçoso, disse um de seus comandantes; levava uma vida desregrada em tudo que tratasse de mulheres, jogos e duelos, acrescentou seu secretário Polanco. Tudo isso foi relatado por um de seus filhos espirituais, R Rouquette, que tentou de alguma maneira explicar e desculpar esse temperamento explosivo que, posteriormente, se tornou ad majorem Dei gloriam (para a glória suprema de Deus). Como é o caso de muitos heróis da Igreja Católica Romana, era necessário um golpe físico violento para mudar sua personalidade. Ele havia sido mensageiro do tesoureiro de Castilla até à desgraça do seu chefe. Depois tornou-se cavaleiro sob as ordens do vice-rei de Navarra. Tendo vivido tal qual um cortesão, o jovem começou a sua vida de soldado defendendo Pampeluna (Pamplona) contra os franceses, comandados pelo conde de Foix.
O ferimento que decidiu o futuro de sua vida foi-lhe infligido nessa ocasião. Com a perna quebrada por um tiro, foi levado pelos franceses a seu irmão, Martin Garcia, no castelo de Loyola, iniciando-se o martírio das cirurgias sem anestesia, pois o trabalho não havia sido bem feito. Sua perna foi quebrada novamente e recolocada no lugar. Apesar de tudo isso, Ignácio acabou ficando coxo. É compreensível que apenas uma experiência como essa poderia causar-lhe um esgotamento nervoso. O dom das lágrimas, o qual lhe foi, então, outorgado em abundância (e que seus biógrafos acreditam como um favor dos céus), pode ser o resultado de sua natureza profundamente emocional, afectando-o mais e mais. Enquanto estava deitado, sofrendo as dores do ferimento, seu único divertimento era a leitura de A Vida de Cristo e A Vida dos Santos, os únicos livros que encontrou no castelo. Praticamente iletrado e ainda afectado por aquele choque terrível, a angústia da Paixão de Cristo e o martírio dos santos tiveram um forte impacto sobre ele; essa obsessão levou o guerreiro aleijado ao caminho do apostolado. Após uma confissão detalhada no monastério de Montserrat, Ignácio tencionava ir a Jerusalém. A peste era comum em Barcelona e, como todo o tráfego marítimo estava interrompido, teve de permanecer em Manresa por aproximadamente um ano.
Passava o tempo em orações, longos jejuns e auto-flagelação, praticando todas as formas de maceração. Além disso, nunca perdia a chance de se apresentar diante do tribunal de penitência, apesar de sua confissão em Montserrat ter aparentemente durado três dias. Tal confissão minuciosa teria sido suficiente a um pecador menos escrupuloso. Tudo isso descreve claramente o estado mental e nervoso desse homem. Finalmente, ao se libertar da obsessão de pecado, decidiu que aquilo era, nada mais nada menos, que um truque de satã, e devotou-se inteiramente às ricas e variadas visões assaltavam sua mente conturbada. Foi por causa de uma visão, diz H. Boehmer, que ele começou a comer carne novamente. Uma série completa de visões que lhe revelou os mistérios do dogma católico e o ajudou a vivê-lo verdadeiramente. Dessa forma, ele medita sobre a Santíssima Trindade como sendo um instrumento musical de três cordas:
  • o mistério da criação do mundo a partir de alguma coisa nublada e a luz vinda de um raio de sol;
  • a milagrosa vinda de Cristo na Eucaristia, como flashes de luz penetrando na água consagrada, quando o sacerdote a toma durante a oração;
  • a natureza humana de Cristo e da Virgem Santíssima, sob a forma de um corpo branco deslumbrante;
  • satã como uma forma sinuosa e cintilante, semelhante a uma imensidão de olhos brilhantes e misteriosos.
Não é este o começo da produção da imagem jesuítica conhecida? Em Abril de 1527, a Inquisição (maldita) leva Ignácio à prisão para julgá-lo por acusações de heresia. O inquérito examinou aqueles incidentes estranhos ocorridos entre seus devotos; as declarações excêntricas do acusado sobre o poder excepcional que sua castidade lhe conferia, e sua teoria bizarra sobre a diferença entre os pecados mortais e veniais. Essas teorias tinham afinidades assustadoras com as teorias dos jesuítas casuístas do período seguinte. Libertado, mas proibido de realizar reuniões, Ignácio partiu para Salamanca e logo deu início às mesmas actividades. Suspeitas parecidas entre os inquisidores o levaram novamente à prisão. A liberdade só lhe seria possível mediante a suspensão de tal conduta. Assim foi; viajou a Paris para continuar seus estudos na faculdade de Montaigu. Seus esforços para doutrinar seus colegas estudantes dentro de seus métodos singulares criaram-lhe novos problemas com a Inquisição (maldita). Tornando-se mais prudente, passou a se encontrar com apenas seis de seus amigos de faculdade. Dois dentre eles viriam a se tornar recrutas profundamente estimados: Salmeron e Lainez. O que teria ele de especial, que pudesse atrair de forma tão poderosa jovens a um velho aluno? Talvez o seu ideal e um certo charme, além de um pequeno livro, na verdade um livrete que, independente de sua pequena dimensão, tornou-se um dos livros de maior influência nos destinos da humanidade. Esse livro foi editado tantas vezes que o número de cópias é desconhecido; também foi objecto de mais de 400 comentários. É o livro guia dos jesuítas e, ao mesmo tempo, o resumo do longo desenvolvimento pessoal do seu mestre: os Exercícios Espirituais».
In Edmond Paris, Histoire secrète des jésuites, A História Secreta dos Jesuítas, tradução de Josef Sued, 1997, Chick Publications, 21ª edição, Fundação Biblioteca Nacional, 2000, ISBN 093-795-810-7.

Cortesia de FBN/JDACT

Philosophari placet sed pavcis. Nair de Nazaré Soares. «Salutati será o pregoeiro do ideal de vida activa e integrará com Leonardo Bruni e Leon Battista Alberti a primeira geração do humanismo civil italiano. Entre nós, Cataldo, o introdutor do Humanismo em Portugal»

Cortesia de wikipedia

Philosophari placet, sed pavcis…
«(…) Traduções em língua vulgar fazem-se em toda a Europa culta até finais do século XVI, de que são exemplo as versões francesas de Claude Seyssel, Étienne de la Boétie, Amyot e Louys le Roy. Em língua castelhana, as de Diego Gracián de Alderete e em língua portuguesa, as de Duarte de Resende, Damião de Góis, Diogo de Teive e António Pinheiro. Não resistimos a referir, a este propósito, a importância das descobertas de textos essenciais da Antiguidade clássica e o empenhamento e afã dos primeiros humanistas na sua busca, Petrarca, Boccacio, Salutati, Poggio, de quem se conhece a correspondência com os monges de Alcobaça, no sentido da aquisição de exemplares existentes neste mosteiro. São os primeiros humanistas italianos, empenhados na vida pública das suas cidades e na formação integral dos concidadãos, que impõem ao mundo culto os padrões de uma educação aristocrática. Os studia humanitatis deixam de limitar o seu âmbito aos auctores medievais e abrem-se à literatura, à filosofia e até à arte da Antiguidade Clássica. O novo curriculum, alargado à história, à poesia, à ética e às artes da pintura, escultura, arquitectura e desenho, figura já no Panepistemon de Angelo Poliziano. Intencionalmente, a filosofia moral torna-se um traço característico da vida intelectual deste período, de par com o conhecimento da história e do direito, disciplinas que preparam para a vida activa. Na linha da tradição aristotélico-tomista, em convergência com a doutrina platónica, e sob o signo do franciscanismo e do scotismo, Salutati será o pregoeiro do ideal de vida activa e integrará com Leonardo Bruni e Leon Battista Alberti a primeira geração do humanismo civil italiano.
No humanismo renascentista, o saber clássico é essencialmente fruto da instituição docente. Se alguns dos primeiros humanistas italianos, a começar por Petrarca, não se encontram directamente ligados à docência, a segunda geração de humanistas e os principais representantes do humanismo europeu são em grande parte indissociáveis da história da pedagogia. São eles os autores dos tratados pedagógicos desta época, subsidiários, quer do ponto de vista estético, quer do ponto de vista doutrinal, dos ideais educativos do humanismo greco-latino, que confluem com a ética cristã, numa interdependência e complementaridade entre humanitas epietas, a exemplo do que já acontecera com os autores da Patrística. Menção especial, neste sentido, merece o opúsculo de S. Basílio Magno sobre a forma de ler os clássicos, que Leonardo Bruni traduz para latim e dedica em 1405 a Coluccio Salutati. Este texto de S. Basílio, De legendis antiquorum libris, é frequentemente citado pelos humanistas, o que prova bem a orientação dada à leitura das obras da Antiguidade pagã. Entre nós, Cataldo, o introdutor do Humanismo em Portugal, apresenta a autoridade de S. Basílio, ao aconselhar a leitura dos escritores e poetas da Antiguidade pagã para inteligência da sacra página. Fá-lo em carta que dirige a Fernando Meneses, escrita em fins de 1499 ou em Janeiro/Fevereiro de 1500, considerada o primeiro manifesto publicado em Portugal, em defesa do latim humanístico contra a barbárie estilística do latim medieval, na linha de Lorenzo Valia. Aliás os autores da Patrística são ensinados nas escolas humanistas, como na de Guarino de Verona, considerado, com Vittorino Feltre, modelo de educador. Figuram, a par dos clássicos, na ratio studiorum proposta pelos tratadistas pedagógicos europeus e merecem ser comentados e editados, desde o Quattrocento italiano, e designadamente por Erasmo. Santo Agostinho, com Cícero e Séneca, moldou a alma de Petrarca, o primeiro humanista. Além disso, a concordância entre a doutrina de Cícero no De oratore e a de Santo Agostinho no De doctrina christiana tomou-se pedra angular na definição de uma estética retórica cristã, de que é expoente máximo, no século XVI, a obra de Erasmo, bem como de uma oratória eclesiástica tridentina. Ilustrativa, neste particular, é a Ecclesiasticae rhetoricae libri sex (Olissypone, 1576) de frei Luís Granada». In Nair de Nazaré Castro Soares, Philosophari placet sed pavcis, Universidade de Coimbra, Revista Hvmanitas, volume L, 1998.

Cortesia da UCoimbra/JDACT

sábado, 29 de novembro de 2014

Largada das Naus. História de Portugal (1385 – 1500). António Borges Coelho. «No movimento económico que impulsionava a sociedade portuguesa do início do século XV, sentimos duas dinâmicas principais: ‘a do mundo que vivia das rendas’; e ‘a do mundo que ganhava riqueza, rápida’»

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Armadas de socorro
«(…) Em Ceuta, os muçulmanos voltavam ao assalto, mas também eles viram os navios da segunda armada a aproximar-se. Começou a fuga dos cercadores. Só uma galé os foi recolher à praia de Almina. Os cercados, entre eles Gonçalo Velho, o povoador da ilha de S. Miguel, e Soeiro Costa, de Lagos, navegador henriquino, saíram fora a matar. Quando os infantes Henrique e João desembarcaram e avançaram para o lugar da peleja, já andavam judeus e mulheres e outra gente a roubar. Os portugueses capturaram 986 combatentes, fora os que os captores esconderam para fugir ao pagamento do quinto e aqueles que se entregaram depois. Viram uma mulher levar três mouros ante si.

Ideias sobre o significado da conquista
No século passado, a reflexão sobre os motivos que impulsionaram os portugueses à conquista de Ceuta proporcionou um debate fecundo que mobilizou historiadores como António Baião, David Lopes, Jaime Cortesão, Duarte Leite, Veiga Simões, Joaquim Bensaúde, António Sérgio e, na geração seguinte, Vitorino Magalhães Godinho. Não vou voltar ao painel das causas e das consequências, assinalarei tão só algumas linhas da génese da conquista de Ceuta, o mesmo é dizer do início da expansão marítima dos portugueses. Desde logo, os capitães que ocuparam Ceuta pertenciam à geração de Aljubarrota e à dos seus filhos. Há quem negue a evidência. Sigamos os nomes e as histórias contadas pela Crónica da Tomada de Ceuta. A ideia da conquista partiu de João Afonso Alenquer, ex-contador do exército de Nuno Álvares Pereira, combatente de Aljubarrota, vedor da fazenda e organizador financeiro da jornada. A resolução de a levar por diante saiu da reunião sigilosa do Conselho Régio, que decorreu nos Paços de Torres Vedras, na sala dianteira, junto à capela. Estiveram presentes os infantes Duarte, Pedro e Henrique e os velhos capitães de Aljubarrota e das lutas pela independência. Entre outros, o condestável Nuno Álvares Pereira, os Mestres das quatro Ordens Religiosas Militares, Gonçalo Vasques Coutinho, um capitão da batalha de Trancoso, Martim Afonso Melo, guarda-mor, e João Gomes Silva, alferes, ambos combatentes de Aljubarrota. No final da reunião, João Gomes Silva disse: Quanto eu, Senhor, não sei al que diga senão ruços além. O Conselho de Torres Vedras, onde luziam os cabelos brancos dos principais conselheiros, envolvia directamente, na tomada de Ceuta, a geração de Aljubarrota e, através dos infantes, a dos seus filhos.
Numa segunda linha de compreensão, os grupos dominantes e até o povo miúdo das cidades e vilas apoiaram a iniciativa, cada grupo a puxá-la para o campo dos seus interesses. Nenhum bispo participou na empresa, o que é obra, mas a Igreja será uma das forças que mais pugnará pela conservação da praça. A nobreza feudal estava disponível para qualquer aventura que aumentasse o seu poder e influência, mas pendia mais para o objectivo de Granada, pois poderia redesenhar a geografia política do espaço peninsular. O entusiasmo e o impulso decisivo pertenceram aos cavaleiros dos meios urbanos, particularmente aos de Lisboa, do Porto e das cidades e vilas marítimas, e ao entusiasmo dos infantes e da nova geração. Para os burgueses, a empresa abria os caminhos do mar, do comércio, do contrabando e da pilhagem. E evitaria que a mais alta nobreza, muita dela ligada pelo sangue à nobreza de Castela, se envolvesse em aventuras no país vizinho, que poriam em risco as conquistas e o equilíbrio alcançados pela revolução e as guerras que se lhe seguiram. No movimento económico que impulsionava a sociedade portuguesa do início do século XV, sentimos duas dinâmicas principais: a do mundo que vivia das rendas; e a do mundo que ganhava riqueza, rápida e espectacularmente, com o comércio dos produtos da pequena e média produção agrícola e artesanal, e a venda dos produtos armazenados nos celeiros dos grandes senhores e o corso. Os principais fidalgos e o alto clero lideravam o primeiro mundo; no segundo, campeavam os homens que exerciam o ofício da mercadoria. As águas fluíam compactas à superfície, mas as correntes seguiam o seu curso cruzando-se, fundindo-se, opondo-se. Os mercadores dos séculos XIV e XV não eram apenas os homens que compravam e vendiam a retalho, como indica qualquer dicionário. Podiam exercer ou acumular outras actividades, a de lavradores, de arrematantes das rendas do rei, do clero e dos nobres, de vedores da fazenda, de almoxarifes, de escrivães, de administradores de nau, mestres de navio, cambadores, fretadores, senhorio de naus, armadores de pesca, financeiros que usavam letras de câmbio no comércio inter-regional europeu». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385 – 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.

Cortesia de Caminho/JDACT

Viriato. O nosso avô. Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias. Aquilino. «Como se chamava, antes da imposição das vírias, esse homem que deu água pela barba aos pretores e cônsules de Roma? É possível que a essa data já houvesse um onomástico pessoal. Os homens, em regra, chamavam-se pelo prenome que não pelo apelido. E a origem dos prenomes?»

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Viriato. O nosso avô
«(…) Nos primeiros alvores da manhã radiosa o esquadrão de bandoleiros caía sobre a pequena cidade, confiadamente adormecida sob as brisas tépidas do mar, com vilas brancas, casas de campo de hispanos latinizados, lojas de quincalharia, armazéns, columbários, e levavam tudo raso. Ao que podiam deitar mão, deitavam; se os habitantes reagiam alçava.-se no ar o cutelo ou a espada. Manhã fora, tropeavam as coortes romanas nas ruas da localidade posta a saque. Bandoleiros? Já lá eram levados de rédea abatida, a caminho de seus valhacoitos nos fragoais das serras. Como resgatar as ricas terras, com seus colonos fiéis, seus romanos sibaritas, deste pesado tributo de bens e de vidas? Como pôr cobro ao pesadelo? Os romanos organizaram expedições sumptuosas e, de par e passo, pelo ferro e pelo fogo, pelo afago e pela blandícia procuraram correr com os abutres da montanha.. A montanha era o reparo infernal; a montanha era o inçadoiro. Oh, quem pudesse arrasá-las com seus penedais, seus barrocos, seus desfiladeiros, seus covões, e estava resolvido para os romanos o problema da colonização ibérica!
Como se chamava, antes da imposição das vírias, esse homem que deu água pela barba aos pretores e cônsules de Roma? É possível que a essa data já houvesse um onomástico pessoal. Segundo explicam os etnólogos, estes nossos nomes corriqueiros foram pedidos ao facto ou à coisa rnais relevante na existência dos indivíduos. Fulano chamou-se de Carvalho em virtucle de qualquer circunstância, efémera ou intemporal, o haver associaclo àquela árvore, imprimindo-lhe momentâneo relevo. Igualmente o nome de Lobo assentaria àquele cuja existência uma destas feras fortuitamente ilustrasse. Os homens, em regra, chamavam-se pelo prenome que não pelo apelido. E a origem dos prenomes? O apelido é já uma distinção. Nas sociedades primitivas eram todos iguais, como hoje nas aldeias todos são tios. Aquele que mais tarde entrou na História com a designação de Viriato teria antes um nome comum, dado que os homens da tribo fossem designados por mais que o epíteto gentílico. O facto da designação singular dar-se-ia exclusivamente com ele e com os homens de prol, isto é, aqueles que se salientassem por dotes pessoais ou feitos de distinção. O nosso léxico de patronímicos releva mais que tudo do germânico e do latim. Onde estão os apelativos de origem hispânica, celtibéricos, turdetanos ou vasconços? O homem desenganado e resoluto que a tribo julgou digno das vírias, chamasse-se como se chamasse, a partir da imposição não teve outro nome: viriato. Viriato quer dizer, investido com as vírias, como um monarca pela graça de Deus. De certo era a mais alta dignidade conferida por aquele povo, pastores honrados na tribo e piratas temíveis na terra alheia. Vírias eram grandes argolas de metal, tantas vezes de oiro, com que guarneciam o braço que segurava a espada ou que ornavam a perna dos cavaleiros. Divisas do comando, com significação gradual talvez, representavam simultâneamente o emblema de um posto, um enfeite e ainda um emparo contra a lança e a espada. Algumas, pelo diâmetro, só podiam destinar-se à coxa; outras, pela largura da banda, equivaliam a um pequeno broquel para o braço.
Pela sua grossura, uma vez enfiadas na perna e apertadas com uma martelada ou pressão nas duas pontas, mantinham a rigidez, cinginclo o fémur como uma precinta. Já as vírias do braço eram uma. espécie de anilhas que se introduziam pela mão. Todos os guerreiros podiam trazê-las ou eram apanágio exclusivo dos capitães? Ao seu número andava adstrita a ideia de patente, ou a investidura pública das vírias era como que uma formaliclade graciosa, complementar, da aclamação? É possível que com o tempo o nome de Viriato tenha acabado por degenerar na Lusitânia para um trivialíssimo patronímico. Nas legendas das lápides, com efeito, citam-se muitos e vários Viriatos. Mas tudo leva a crer que de princípio se tratasse do guerreiro que recebia as insígnias de capitão-general. As vírias seriam as suas dragonas. Na Punica, Caio Sílio Itálico celebra a morte de Viriato, comandante dos lusitanos, caído na batalha de Canas». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.

Cortesia de LB/JDACT

As Emoções Racionais e a Realização Prática do Direito à Luz da Proposta de Martha Nussbaum. Ana Carolina Silvestre. «Os juízes não são neutros e o seu julgamento convoca-envolve-produz emoções (racionais e irracionais). As emoções racionais não devem ser suprimidas, elas devem ser assumidas na sua inevitabilidade e importância no âmbito do processo racional de decisão e no âmbito da decisão judicial»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«Qual será o papel das emoções no processo de tomada de decisão racional e no processo de tomada de decisão judicial, enquanto espécie pertencente ao gênero? A possibilidade de se colocar comprometidamente esta pergunta implica no enfrentamento crítico da posição tradicional, ancorada na tradição filosófica ocidental, que assume uma dualidade estrutural entre as emoções e a razão. As emoções, sustentam, devem ser dominadas ou, preferencialmente, estripadas do debate racional, revelando-se especialmente nocivas no âmbito da deliberação pública. A decisão racional é também uma decisão não-emotiva e, portanto, um bom julgador, para além de ser uma pessoa intelectualmente dotada de conhecimentos sólidos sobre as leis e sobre as coisas do mundo, deve ser capaz de suprimir suas emoções. No entanto, questiona Nussbaum, será possível decidir um caso com justiça sem a convocação das emoções? Os juízes não são neutros e o seu julgamento convoca-envolve-produz emoções (racionais e irracionais). As emoções racionais não devem ser suprimidas, elas devem ser assumidas em sua inevitabilidade e importância no âmbito do processo racional de decisão e no âmbito da decisão judicial».

O papel das obras literárias e das emoções racionais no processo de tomada de decisão judicial.
«É familiar ao senso comum a assunpção da razão e das emoções como dimensões antagónicas, em constante tensão. As emoções são, sob esta divisão asséptica, forças incontroláveis que conduzem os homens a mares bravios ou a calmarias, que se sucederiam ininterrupta e inadvertidamente, condicionada a sua felicidade ou infelicidade por factores exteriores ao eu-sujeito. Na outra face da moeda ter-se-ia a razão; luminosa, capaz de levantar o véu que obscurece a verdade, de acedê-la e de conduzir-nos ao gozo da felicidade imperturbável dos conceitos e das matemáticas. O predomínio da razão sobre a emoção teria a potencialidade de orientar a acção humana para o bem e, em última análise, nos conduziria à realidade de uma comunidade de iguais. Platão, exemplarmente, compreendia que o acesso à verdade pressuporia o cultivo da faculdade da alma que mais nos assemelhava aos deuses (a razão) e o afastamento do corpo. A alma imortal dos homens entregues à satisfação dos sentidos ganharia corporalidade, impedindo-os de aceder à verdade encerrada no mundo inteligível. Todos os seres pertencentes ao género humano possuíam uma alma imortal, assumia Platão, constituída por diferentes faculdades. A alma epitética, comum às plantas, aos animais e aos homens, relacionar-se-ia aos instintos e aos apetites (baixo ventre). A alma irascível, comum aos homens e aos animais, relacionar-se-ia à vontade como virtude cavalheiresca (peito). Para além, os seres humanos seriam dotados de uma faculdade exclusiva alcunhada de alma logística, a alma logística deveria preponderar sobre as demais, nos capacitando a todos, ainda que em potência, a aceder às verdades encerradas no mundo inteligível.
O acesso à verdade estava condicionado à racionalização das emoções, dos ímpetos, dos instintos e da vontade, ou seja, ao abandono do corpo e ao cultivo da recta razão. As guerras e os combates, sustentava Platão, estavam imediatamente relacionados à acumulação de riquezas, que servem única e exclusivamente para satisfazer os desejos e caprichos da carne. A restrição da vida à dimensão corpórea condenaria o homem a uma eternidade de sombras e de ilusão. A razão, assim como o cocheiro de uma carruagem, deveria definir a trajectória e guiar com mão firme os impulsos, as paixões e as emoções, sob pena de não mais conseguir corrigir o curso da alma arrastada pelos apelos da carne e da satisfação hedonista dos sentidos. A ataraxia seria o resultado necessário do domínio das emoções pela razão, que tudo penetra e revela um mundo estruturado sob leis ontológico-substancialmente cunhadas. As investigações platónicas, como sabemos, estavam ancoradas sob uma perspectiva mítico-teológica do mundo e das coisas do mundo. No cerne das afirmações acerca da dualidade de mundos e de justiças, da busca pela verdade encerrada num plano transcendente de inteligibilidade, da luta perpétua da alma contra o corpo, como condição necessária para o acesso à verdade, estava a crença em um mundo concebido enquanto dado (ontológico-substancialmente concebido). Um mundo constituído por (enquanto) leis eternas e imutáveis, criadas em tempos imemoriais e que incidiriam sobre todos os seres, irremediavelmente. O homem, naquele contexto cultural cunhado pela fatalidade, nada podia fazer em face daquilo que é, cabendo-lhe somente a atitude de espantar-se em face do iniludível e do inevitável». In Ana Carolina Faria Silvestre, As Emoções Racionais e a Realização Prática do Direito à Luz da Proposta de Martha Nussbaum, O Papel das Obras Literárias e das Emoções Racionais no Processo de Tomada de Decisão Judicial, Universidade de Coimbra, Revista de Estudos Jurídicos, Ano. 15, n.º 22, 2011.

Cortesia da REJurídicos/JDACT

Galveias. José Luís Peixoto. «Galveias e todos os planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais, não se confundiam: Galveias era Galveias, o resto do universo era o resto do universo»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo. O serão ia adiantado e sem lua, só estrelas geladas a romperem o opaco do céu, espetadas a partir de dentro. Galveias descaía lentamente para o sono, os pensamentos evaporavam-se. A escuridão era muito fria. Ao longo das ruas desertas, os candeeiros entornavam cones de luz amarela, luz fosca, engrolada. Passavam minutos e quase podia haver silêncio, mas os cães não deixavam. Ladravam à vez, de uma ponta da vila à outra. Cães novos, sozinhos em quintais, a gritarem latidos que terminavam em uivos; ou rafeiros moribundos de sarna, encostados ao lado de fora de um muro e a levantarem a cabeça apenas para lamentar a noite, revoltados e fracos. Se alguém estivesse a prestar atenção àquela conversa , talvez enquanto adormecia entre lençóis de flanela, seria capaz de distinguir a voz de cães maiores e mais pequenos, cães ariscos, nervosos, estridentes ou de voz grossa, gutural, animais pesados como bois. E um cão lá longe, a ladrar sem pressa, o som do seu discurso alterado pela distância, erosão invisível; e um cão aqui perto, demasiado perto, a raiva do bicho quase a levantar uma espertina no peito; mas depois um cão noutra ponta da vila e outro noutra e outro noutra, cães infinitos, como se desenhassem um mapa de Galveias e, ao mesmo tempo, assegurassem a continuação da vida e, desse jeito, oferecessem a segurança que faz falta para se adormecer. Lá do alto, do cimo da capela de São Saturnino, Galveias era como as brasas de um lume a apagar-se, cobertas de cinza e imperturbáveis. Mesmo como as brasas de um lume, certas chaminés largavam fios de fumo muito direitos: gente que ainda estava acordada, a espicaçar restos de fogo com conversas ou cismas. Mas as casas, noite e janeiro, firmavam-se no chão, faziam parte dele. Rodeada por campos negros, pelo mundo, Galveias agarrava-se à terra.
No espaço, numa solidão de milhares de quilómetros onde parecia ser sempre noite, a coisa sem nome deslocava-se a uma velocidade impossível. O seu sentido era recto. Planetas, estrelas e cometas pareciam observar a decisão inequívoca com que avançava. Eram uma assembleia muda de corpos celestes a julgar com os olhos e com o silêncio. Ou, pelo menos, essa impressão era provável porque a coisa sem nome atravessava a lonjura do espaço com uma velocidade de tal ordem, de tal indiferença e desapego que todos os astros pareciam estáticos e severos por comparação, todos pertenciam a uma imagem nítida e pacífica. Assim, o mesmo universo que a lançara, que a insuflara de força e direcção, assistia suspenso ao seu percurso. Existia o ponto de onde tinha partido, mas cada segundo destruía um pouco mais a memória desse lugar. Aquela sucessão de instantes compunha um tempo natural, isento de explicações. Passado sim, futuro sim, no entanto aquele presente impunha realidade, era composto apenas por ambições límpidas. E nem a violência que a coisa sem nome fazia ao rasgar caminho conseguia sobrepor-se à tranquilidade da sua passagem, distante de tudo e, mesmo assim, integrada numa arrumação cósmica, simples como respirar. Avisados por um alerta secreto, os cães calaram-se durante um instante que não dava mostras de fim. O fumo das chaminés paralisou-se ou, se continuou, seguiu uma linha imperturbável, sem sobressaltos. Até o vento, que se entretinha apenas com o barulho de alisar as coisas, pareceu conter-se. Esse silêncio foi tão absoluto que suspendeu a acção do mundo. Como se o tempo soluçasse, Galveias e o espaço partilharam a mesma imobilidade.
E até aqueles que estavam sozinhos nas suas casas, esparramados numa soneira ou distraídos na última tarefa do dia: pousar o púcaro de esmalte no armário, esticar o dedo para desligar a televisão, descalçar as botas. Todos mantiveram a sua posição única e todos ficaram parados no acto que os ocupava. Até a Lua, onde quer que estivesse, invisível naquela noite. Até o adro da igreja, lá no alto, com vista para a Deveza, imóvel como a estrada de Avis. E os campos em redor, trevas arborizadas, a estenderem-se até à Aldeia de Santa Margarida, conforme se sabe, e imóveis também. Até o terreiro. Até o jardim de São Pedro e a estrada de Ponte de Sor, a recta da tabuleta. Até a rua de São João. Até o monte da Torre e a barragem da Fonte da Moura, até o Vale das Mós e a herdade da Cabeça do Coelho. Galveias e todos os planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais, não se confundiam: Galveias era Galveias, o resto do universo era o resto do universo. E o tempo continuou. Tudo muito de repente. A coisa sem nome continuou à mesma velocidade desmedida, como um grito. Quando entrou na atmosfera da terra, já não tinha o planeta inteiro à sua disposição, tinha aquele ponto certo». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Uma leitura d’O Encoberto. Arcaica e futura. A dramaturgia de Natália Correia. Armando N. Rosa. «… peça publicada em 1969, ‘é de imediato interditada de circular e de ser posta em cena’. A autora endereça então uma carta a (…) mas o esforço é vão. A peça só viria a ser produzida cenicamente em Lisboa, pela primeira vez, em 1977»

Cortesia de wikipedia

«Arcaica e futura, assim chamei à dramaturgia de Natália Correia, não tendo apenas em conta a temática do presente colóquio. De facto, a obra dramática nataliana aparece-nos numa tensão criativa permanente entre a ascendência dramatúrgica que bebe nas fontes dos dois teatros clássicos (greco-latino, por um lado, e ibérico por outro, nas suas manifestações renascentista e barroca) e o ensaio de formas novas numa expressividade poético-dramática de cunho pessoalíssimo, que se confronta livremente com correntes teatrais novecentistas (surrealismo, teatro épico, teatro antropológico, etc). Entre 1952 e 1989, Natália Correia produz uma obra dramatúrgica, composta por quinze títulos (para além de muitas outras traduções e versões para cena de textos alheios), que fazem dela um dos mais originais dramaturgos portugueses da segunda metade do século XX. Lugar de experimentação híbrida de formas, e não obstante o silenciamento cénico (e também editorial) de que é vítima durante o salazarismo (e não só), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma irrequieta diversidade de registos genológicos e estéticos: da fábula surrealista, infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) e adulta (Sucubina ou a Teoria do Chapéu, 1952), ao absurdismo em sátira política (O Homúnculo, 1965); do mito-drama existencial pós-simbolista (D. João e Julieta, 1957-58) ao poema-drama mito-crítico ou auto-referencial (O Progresso de Édipo, 1957, e Comunicação, 1959); do teatro épico-catártico pós-brechtiano e pós-artaudiano (A Pécora, 1967 e O Encoberto, 1969) ao teatro histórico-mítico, que colige o pathos romântico com o estranhamento da alegoria barroca (Erros Meus Má Fortuna, Amor Ardente, 1980); do libreto operático socio-crítico (Em Nome da Paz, 1973, com música de Álvaro Cassuto) ao drama antropológico e arquetípico (Auto do Solstício do Inverno, 1989); do texto para cantata cénica (O Romance de D. Garcia, 1969, com música de Joly Braga Santos) ao teatro versificado ou em prosa que revisita temas da tradição literária, da herança trovadoresca e do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai à Guerra, e D. Carlos de Além-Mar, três peças de datação incerta).
De entre estas obras, O Encoberto é um excelente exemplo para observar o jogo criativo nataliano, arcaico e futuro, ao articular a revisitação de matrizes dramatúrgicas ibéricas, perspectivando a partir delas novos horizontes da escrita e da cena em português. Sobre a sua afinidade consciente face a matrizes dramatúrgicas ibéricas, diz a autora: [o meu teatro], embora tenha alguma coisa a ver com o surrealismo, tem muito mais a ver com a tradição ibérica. A minha atracção pela estética barroca, que tem raizes peninsulares, portanto portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde eu encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia portuguesa, por um preconceito anti-castelhano, estão abafadas. (...) Os [autores] que eu encontro mais próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso de Molina. Valle Inclan ainda continua essa tradição (in Lello, 1988). Com O Encoberto, dá-se a tardiamente possível estreia cénica de Natália, para um público adulto, ocorrida já após a revolução de Abril, e dezanove anos depois de Dois reis e um sono ter sido encenada no Teatro Monumental, pelo Teatro do Gerifalto, esta última uma fábula política, disfarçada de peça infanto-juvenil, que transfigurava o confronto entre Humberto Delgado e Salazar, escrita com a colaboração de Manuel Lima. O Encoberto, peça publicada em 1969, é de imediato interditada de circular e de ser posta em cena. A autora endereça então uma conhecida carta a Marcelo Caetano para que este contrarie o néscio ditame da censura, mas o esforço é vão. A peça só viria a ser produzida cenicamente em Lisboa, pela primeira vez, em 1977, no Teatro Maria Matos, pela Repertório-Cooperativa Portuguesa de Teatro (1976-1984), liderada por Armando Cortez, numa encenação de Carlos Avilez, com realização plástica do pintor Lima de Freitas, música de Fernando Guerra, e um vasto elenco liderado por Ruy de Carvalho (no papel de Bonami/Sebastião), acontecendo a estreia mundial na ilha natal da autora, no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, nos Açores (11/2/1977). Segundo Eugénia Vasques, O Encoberto corresponde na dramaturgia nataliana: à fase de maturidade e de domínio de uma escrita que, para além de afirmar a voz da poesia no teatro através das figuras heróicas e condenadas de feiticeiras, vates, loucos, actores e poetas, afirma também a procura de um modelo de teatro épico-narrativo com preferência pela forma em três actos (in Vasques, 1999).
Obra de ficção histórico-cénica, baseia-se ela numa das diversas variantes da lenda do monarca Sebastião I, que se difundiu e desenvolveu a partir dos finais do séc. XVI, e que afirmava ter o jovem rei sobrevivido da batalha contra os mouros de Marrocos, tendo escapado para Itália, onde se manteria sob falsa identidade até conseguir condições para reconquistar a independência perdida de Portugal, entretanto sob o domínio da dinastia dos Filipes de Espanha, desde 1580. Nunca como neste texto a autora, amante da visão barroca, mergulha intencionalmente na indistinção de fronteiras entre o teatro e a representação do mundo, num determinado tempo histórico passado, repetidamente objecto de ironização; de facto, toda a peça aparece como uma reflexão aplicada, a um tempo dramatúrgica e paródica, sobre as virtualidades expressivas do teatro dentro do teatro, que tanto podemos filiar primeiro em Shakespeare, como depois na experimentação modernista de Pirandello. E isto porque a acção nunca deixa de situar-se, objectiva ou simbolicamente, no palco do teatro. Ao reinventar o teatro da História, com esta sua fábula em torno do messianismo sebastianista, a autora pretendeu deixar visíveis e insolúveis as passagens entre a representação e a matéria representada». In Armando Nascimento Rosa, Arcaica e Futura, A dramaturgia de Natália Correia, Uma leitura d’O Encoberto, Dramaturgo e ensaísta, Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

Origem das Cruzadas 1095-1119. José Luís Corral. «… las ciudades duplicaron e incluso triplicaron su extensión, siendo necesario construir nuevos barrios para acoger a la creciente población, la construcción disfrutó de un auge inusitado y los ya grandes templos románicos de la primera mitad del siglo XII…»

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O Despertar da Europa
«(…) Superada la época de las llamadas segundas invasiones (musulmanas, normandas y magiares), asimilados en lo social, lo económico, lo cultural y lo religioso los vikingos y los húngaros, y mantenidos a raya los musulmanes, los reinos cristianos de Occidente pudieron al fin vislumbrar tiempos menos convulsos. Durante el siglo XI el Occidente cristiano comenzó a salir del largo y oscuro período que caracterizó buena parte de la Alta Edad Media y que ha sido denominado en algunas ocasiones como las Épocas Oscuras. A ello no fue ajeno el nuevo modelo socioeconómico que se había venido configurando desde fines del mundo romano y que se concretó en el feudalismo. En efecto, la descomposición del poder centralizado y su sustitución por los poderes locales, feudales, en suma, no generó un gran Estado capaz de recoger la herencia romana, pero esa multiplicación de los centros de poder fue un factor que contribuyó decisivamente al triunfo del modelo feudal. Un gran imperio, aparentemente sólido y estable, puede ser aniquilado de un plumazo por otro más poderoso o más ágil, como le ocurrió a los persas sasánidas con los musulmanes, pero acabar con todo un conglomerado de reinos, principados y Estados feudales parece mucho más difícil. Sin duda, la atomización del poder y de sus centros de control en Europa occidental en la Alta Edad Media fue uno de los pilares de su supervivencia.
Entre tanto, la Iglesia, que había logrado mantener en condicio nes aceptables su red de obispados y su poderosa influencia social, se regeneró merced a la reforma impulsada por el papa Gregorio VII (1073-1085) y ganó prestigio y espacios de influencia social y política. No en vano había sido la única institución que, pese a tantos problemas, se había mantenido firme y unida hasta entonces. Al abrigo de esta nueva situación, la transformación de Europa occidental comenzó a ser patente. La economía y el comercio florecieron, se abrieron nuevos mercados, surgieron talleres artesanales, las ciudades crecieron, la agricultura se desarrolló ganando espacio a los bosques y a las marismas y multiplicando la producción, y los Estados lograron establecer nuevas formas políticas en torno a dinastías reales que se consolidaron. Tras varias centurias de descomposición política y caos social, entre los siglos XI y XII en Europa se fueron asentando los nuevos reinos: Inglaterra, Francia, el Imperio romano-germánico, los reinos hispánicos (los Estados de la Corona de Aragón, Navarra, Castilla y León y Portugal)... Semejante crecimiento económico y un desarrollo social concretado en la aparición de una incipiente burguesía impulsaron a toda la sociedad a un despegue generalizado: las ciudades duplicaron e incluso triplicaron su extensión, siendo necesario construir nuevos barrios para acoger a la creciente población, la construcción disfrutó de un auge inusitado y los ya grandes templos románicos de la primera mitad del siglo XII fueron sustituidos por las todavía más grandes catedrales del nuevo estilo gótico, que encarnó el triunfo de la cristiandad en el siglo XIII.
Nunca hasta esa época la cristiandad de Occidente había disfrutado de una bonanza similar. La misma Iglesia participó de esta situación y contempló cómo se multiplicaron las órdenes monásticas y se fundaron monasterios, conventos y parroquias por todas partes. Los siglos XII y XIII fueron los de la gran expansión de Europa. Desde el siglo II, el de mayor apogeo del Imperio romano, Occidente no había vuelto a vivir una situación tan bonancible, y por ello los dirigentes políticos y religiosos se creyeron en condiciones de ir más allá de lo que habían heredado. En la Península Ibérica, los reinos cristianos del norte se lanzaron a la conquista del territorio musulmán del sur; en el centro de Europa, los alemanes avanzaron hacia el este en un proceso a la vez colonizador y cristianizador, y ante estos primeros grandes triunfos se despertó tal euforia que se vio factible la realización de un viejo sueño: la conquista de la perdida Tierra Santa y la recuperación de los Santos Lugares, aquellos en los que Cristo había nacido, predicado la buena nueva y muerto.

La idea de Cruzada
La mayoría de las religiones aspira a ser católica, es decir, universal, verdadera y santa, y por tanto única y excluyente. Durante los primeros siglos de nuestra era, el cristianismo monopolizó la interpretación de la Revelación divina en los países ribereños de la cuenca mediterránea, con la excepción de algunos núcleos de irreductibles judíos dispersos por ella. Pero en los primeros decenios del siglo VII, un individuo llamado Muhammad (Mahoma) convulsionó desde el corazón de Arabia la creencia en Dios y provocó una profunda ruptura religiosa que todavía permanece. El islam, la nueva religión, o mejor, la nueva forma de religión predicada por Mahoma entre los años 610 y 632 se extendió a una velocidad increíble desde Arabia por Asia occidental y central y por todo el norte de África; y en el año 711 cruzó el Estrecho de Gibraltar para imponerse en la Península Ibérica y en el sur de Francia». In José Luís Corral, Breve História de la Orden del Temple, Ensayo Edhasa, 2006, ISBN 978-84-350-2684-0.

Cortesia de Edhasa/JDACT

Lisboa. Encruzilhada de Muçulmanos Judeus e Cristãos. 850º Aniversário da Reconquista de Lisboa. Paulo Pereira. José Mattoso. «Em 1947 considerava-se que a conquista de Lisboa tinha sido como que um ponto zero. Um começo absoluto. Reduzia-se, assim, a nada, ou a aspectos puramente negativos o passado muçulmano»

Cortesia de wikipedia

Arqueologia na Grande Cidade. 850º Aniversário da reconquista de Lisboa
«(…) Quero começar a apresentação deste Encontro, confessando que tenho muita pena por não ter podido aqui apresentar nenhuma investigação original, juntando-me assim ao notável conjunto de especialistas de história medieval que aqui se reuniram para tratarem de vários temas relativos à conquista de Lisboa em 1147. Não preciso de explicar as razões da minha impossibilidade nem as da minha pena. Creio que elas se podem imaginar facilmente. Quis todavia dar o meu apoio a esta iniciativa, antes de mais pela amizade que me liga à maior parte dos seus participantes, mas também pelo inegável interesse do tema e sobretudo pela maneira como os organizadores lhe imprimiram uma determinada orientação. Creio, ir ao encontro dos seus objectivos fazendo nesta apresentação do Encontro uma breve reflexão sobre o significado daquilo mesmo que aqui se procura. A melhor maneira de o tomar evidente parece-se ser partindo de uma breve comparação da temática privilegiada pelos autores das comunicações com a maneira como se comemorou há 50 anos o 8º Centenário deste mesmo acontecimento. De facto, em natural que, sendo então um Centenário pleno e não apenas um aniversário, se tivesse dado a maior solenidade e o maior relevo às comemorações de então. E todavia, não ficou delas senão a lembrança de um grande cortejo histórico organizado, se não me engano, por Leitão de Barros. Não sei se houve também alguma iniciativa de carácter científico, mas, se existiu, deve ter ficado circunscrita às salas das Academias, e deve ter consistido antes em algum discurso de predominantemente laudatório ou meramente evocativo. Não me lembro de nessa altura se ter apresentado nenhum texto histórico inovador sobre o facto que então se comemorava. Era esse, de resto, o tom habitual das comemorações nacionalistas, como se tomou evidente em 1940 e nos anos seguintes: o trabalho científico produzido nessa época tem de se considerar quase insignificante face ao esforço do governo, que se concentrou, como se sabe, na Exposição do Mundo Português, na reconstrução de castelos e nas cerimónias comemorativas que deixaram dezenas de lápides evocativas por esse país fora. Como é evidente, o propósito de situar os factos históricos no seu contexto e para os compreender em si mesmos era muito menor do que para desenvolver em torno deles uma retórica exortatória centrada nas virtudes nacionais, para desenrolar rituais colectivos de que se esperava como efeito o reforço da coesão social e política, para explorar e popularizar mitos, muitas vezes de forma artificial e forçada. Hoje, os rituais e os mitos demasiado presos a glórias passadas perderam a sua eficácia social, entre outras razões porque o carácter propagandístico demasiado pronunciado lhes retirava credibilidade e revelava propósitos que não podem, hoje, deixar de se considerar alienantes. O uso e abuso dos mitos e glórias nacionais tomou-se assim um instrumento de degradação da sua própria eficácia social. Hoje deixou de ser possível falar do passado sem partir de uma análise objectiva historicamente fundamentada e desprendida de intenções ideológicas. Os mitos e rituais continuam, obviamente, a constituir uma componente fundamental da vida social, mas deixaram de se basear nas glórias passadas. Não sabemos bem quais são esses mitos: talvez um deles seja o de que a nossa salvação colectiva depende da integrarão na Europa comunitária. Seja como for, os sucessos do passado deixaram de ser penhor das vitórias que desejamos alcançar no momento presente. O presente impõe-se-nos como um desafio e obriga-nos a sermos racionais e realistas.
Nesta conjuntura, apercebemo-nos cada vez mais de que a compreensão do passado se tomou ela própria forma privilegiada de construir o presente. Parte-se do princípio de que a percepção dos factores de que dependeu outrora o desenrolar dos acontecimentos decisivos no devir histórico permitirá também orientar as nossas escolhas perante a complexa realidade que nos envolve. Apercebemo-nos de que há nela fenómenos e estruturas que só se podem compreender devidamente quando os colocamos num contexto histórico. Acontece isto mesmo, até para factos tão longínquos como a conquista de Lisboa em 1147. Trata-se, na verdade, de um acontecimento decisivo não só para a história nacional, mas também para a história europeia. É preciso analisá-lo e tentar compreendê-lo em todos os seus aspectos e condicionantes, assim como em todas as suas consequências.
Tal é a melhor justificação para o Encontro que hoje iniciamos. As comunicações previstas concentram-se na sua quase totalidade sobre o mundo e a época islâmicas. Também este facto é significativo de uma alteração fundamental em relação com o que aconteceu há cinquenta anos. Nessa altura, o que chamava a atenção era o ponto de vista dos conquistadores, e portanto a inclusão da cidade no espaço cristão, assim como o papel que passou a desempenhar na construção do País. Em 1947 considerava-se que a conquista de Lisboa tinha sido como que um ponto zero. Um começo absoluto. Reduzia-se, assim, a nada, ou a aspectos puramente negativos o passado muçulmano. A vitória sobre os mouros teria esmagado por completo o passado islâmico. Portugal não devia nada à civilização árabe. Pelo contrário, a construção da nação só teria sido possível devido ao esmagamento da barbárie sarracena.
Hoje considera-se, com razão, que esta interpretação da conquista de Lisboa é puramente absurda. Em História não há começos absolutos. A ignorância histórica acerca do passado muçulmano, que se verifica na historiografia portuguesa é, portanto, demasiado gritante para que não se considere urgente preenchê-la. Mas a quase total ausência de uma tradição científica nesta área tomou a tarefa especialmente difícil e morosa. Foram necessário passarem mais de vinte anos depois do 25 de Abril, ou seja depois da data em que desapareceu a opressão política, consciente ou inconsciente, sobre a investigação universitária, para que finalmente se pudesse reunir um número considerável de conhecedores capazes de trabalharem sobre esta área. Esperamos, pois, que este Encontro constitua um importante contributo para se desenvolverem os estudos e os conhecimentos nesta área tão carenciada». In Paulo Pereira, José Mattoso, Arqueologia na Grande Cidade, Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º aniversário da reconquista de Lisboa), Projectos Portos Antigos do Mediterrâneo, Acção Piloto Portugal/Espanha/Marrocos, FEDER, Edições Afrontamento, Porto, 2001, ISSN 0872-2250.

Cortesia de EAfrontamento/JDACT

Judaísmo. Os Manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto. Conferência. Porto. Geraldo Coelho Dias. «… quando Qumran foi destruído e ocupado por um posto militar romano. Fugindo à invasão e perseguição romanas, os habitantes esconderam os seus preciosos tesouros culturais…»

Cortesia de wikipédia

O acaso da descoberta e a riqueza das pesquisas arqueológicas.
«(…) Livros Bíblicos canónicos. Segundo o que sabemos, foi no Concílio rabínico de Jâmnia ou Jabne, entre os anos 80-90, que se formou o Cânone hebraico da Bíblia. Do Antigo Testamento, entre os manuscritos só não está representado o Livro de Ester e de alguns livros há vários manuscritos fragmentados. Os exegetas e críticos atribuem grande significado ao Livro de Isaías, que aparece em dois exemplares. O exemplar completo, com 7,35m de comprido e 66 capítulos, tem particular relevo, porque na coluna 33 apresenta entre o capítulo 39 e o 40 um espaço em branco, que os homens da crítica literária bíblica assumem como um indício e uma reminiscência da distinção estabelecida pelos exegetas entre o Proto-Isaías (séc. VIII) e o Deutero-Isaías (séc. VI). Isso seria a confirmação da exegese crítica moderna sobre a pluralidade de autores daquele livro sagrado. Apareceram também alguns livros considerados Deuterocanónicos (Tobias, Eclesiastico ou Ben Sirac, Carta de Jeremias), isto é, livros bíblicos que só mais tarde a autoridade cristã incluiu na lista dos livros sagrados, o que demonstra o seu interesse. É enorme a série de fragmentos com textos da TENAK, isto é, dos três grandes blocos em que se subdivide a Torá hebraica ou Antigo Testamento cristão.

Livros para-bíblicos ou Apócrifos. São livros que não pertencem ao Cânone da Sagrada Escritura ou são supostamente atribuídos a figuras bíblicas: Livro dos Jubileus, Henoc, Testamento dos 12 Patriarcas, Oração de Nabónides, apócrifo do Génese e os Pesharyim ou comentários aramaicos a livros bíblicos hebraicos (Pesher de Habacuc), bem como os Targumim ou traduções com paráfrases sobre livros bíblicos em aramaico, Levítico, Job, etc..

Literatura de ideologia essénia. Sérek HaYahad, isto é, Livro da Regra também chamado Manual da Disciplina em dois exemplares fragmentados, Sérek Há Eda, isto é, Regra da Congregação, Séfer HáMmilhamah, isto é, Livro da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, Documento de Damasco, já conhecido pela descoberta na guenizá do Cairo em 1892, Hinos (Hodayot), um conjunto de oito salmos próprios da comunidade, colecção de Bençãos.

Literatura vária. Rolo do Templo em dois exemplares (4 Q e 11 Q) e outros muitos fragmentos (dezenas de milhar), que só a paciência e o amor foram identificando. Pelo que foi dito se pode imaginar o trabalho e a técnica a que foi preciso recorrer para se chegar aos textos que agora nos são oferecidos em leitura bilingue. Com a breve resenha apresentada se vê a extraordinária importância destes manuscritos para a Bíblia, em primeiro lugar. É que, desconhecendo ainda a posterior vocalização massorética, mas usando já a escrita plena com as matres lectionis (Alef, He, Yod, Vau), os homens de Qumran vieram em certa medida provar a fidelidade substancial do texto hebraico ou massorético estabelecido pelos rabinos já em adiantada era cristã. Por outro lado, vê-se que, para os textos gregos da Bíblia, os habitantes de Qumran já conheciam a versão grega dos LXX, que tinha sido traduzida no Egipto. É arriscada e não provada a hipótese de se encontrarem textos do Novo Testamento, como quis provar José O’Callaghan. Por exemplo, ele pretendeu num minúsculo fragmento de papiro (3,9cmx2,7cm e 4 linhas), datado de 50 d.C., reconstituir com poucas letras gregas o texto de Marcos sobre o milagre da multiplicação do pão. Quanto ao tipo de escrita semítica usada nos manuscritos hebreus e arameus, vê-se que a letra ainda tem características arcaicas, mas está em nítida evolução para o que vai ser a típica escrita quadrada.

Que comunidade era a detentora do lugar e autora dos textos?
As escavações arqueológicas de 1952 puseram a descoberto as grandiosas ruínas de Qumran na plataforma de marga argilosa sobranceira ao Wadi Qumran, a 50 metros acima do Mar Morto, mas a 330 metros abaixo do nível do mar. Desde logo, esse lugar foi identificado com o mosteiro dos essénios, Essénoi, como informa Flávio Josefo na transcrição grega do aramaico Hasdin ou do hebraico Hasidim = piedosos. Tratava-se dum complexo habitacional, com longo aqueduto e canais de água para sustento das pessoas e abluções rituais, comprovadas pelos vários tanques ou Miqvéh, e onde os arqueólogos foram identificando diversos espaços, a que deram o nome de torre, scriptorium, cozinha, sala de reuniões, oficina de cerâmica, depósito de louça, estábulo, cemitério. Sem dúvida nenhuma, portanto, um vasto espaço de vida comum, apesar de se notarem vários cortes cronológicos nas sucessivas camadas do terreno. A ocupação do lugar estende-se, com certeza, desde 152 a.C. até à guerra 66-70, quando Qumran foi destruído e ocupado por um posto militar romano. Fugindo à invasão e perseguição romanas, os habitantes esconderam os seus preciosos tesouros culturais, fugiram uns e juntaram-se outros aos guerrilheiros da resistência, como informa Flávio Josefo. O complexo ficou deserto, possivelmente, até 132-135, se é que não foi reocupado por outros judeus, que ignoravam a fuga dos anteriores e os esconderijos dos seus manuscritos. À volta de Qumran, outras descobertas foram feitas em Murabba`at, Masada, Hirbet Mird, lugares altos e quase inacessíveis da resistência judaica. Na verdade, toda aquela zona parece ter sido envolvida pela ocupação romana de Pompeu em 63 a.C. e pelas duas guerras judaicas contra os romanos de Tito em 66-70 e de Adriano em 132-135, quando até a cidade de Jerusalém foi arrasada ao solo e reconstruída à maneira romana com o nome de Aelia Capitolina em honra do Imperador Élio Adriano». In Geraldo Coelho Dias, Judaísmo, Os Manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto. Texto inédito. Conferência no Museu dos Transportes e Comunicações. Porto. Maio de 2005.

Cortesia de MTC do Porto/JDACT

Mitos Celtas da Irlanda. Canal História. «… muitos factos e personagens foram preservados também no folclore da Irlanda, da Ilha de Man e da Escócia. ‘A magia’ é uma característica constante: humanos assumem a forma de animais…»

Cortesia de wikipedia

Ciclo Mitológico. O Livro das Invasões da Irlanda
«(…) Conhecido como a Canção de Amergin, esse poema é uma ode à Natureza, tão nobre e inspirador quanto os textos sagrados hindus. Parafraseando Peter Ellis, grande pesquisador dos mitos e lendas celtas, nesta canção Amergin une o universo a seu próprio ser, num pensamento filosófico que remete à declaração de Krishna no Bhagavad Gita hindu. Assim como os textos mitológicos indianos estão repletos de referências históricas e vice-versa, também na Irlanda celta o mesmo se aplica. Por analogia, se Shiva, Sarasvati, Ganesh e outas deidades hindus são ainda hoje cultuadas após a restauração do hinduísmo nos últimos séculos, também os deuses e deusas celtas permanecem vivos nos corações, nas mentes e nas almas dos que procuram restaurar a mitologia/espiritualdiade celta como fonte coerente e válida de inspiração para nossas vidas.

Ciclo do Ulster
A Irlanda celta era dividida em cinco províncias:
  • Leinster, a leste; 
  • Munster, ao Sul; 
  • Mídhe, no centro; 
  • Connacht no oeste; 
  • Ulster ao norte.
Daquela região nos chegam as lendas e feitos de heróis como Cuchulainn, Conchobhar mac Nessa e Fergus mac Róich, poderosas mulheres como Macha, Maedbh e Fedelm, e a trágica história de amor de Deirdre dos Pesares. Menos divino do que o Ciclo Mitológico, o Ciclo do Ulster, também conhecido como Ciclo do Ramo Vermelho tem os seus primeiros registos por escrito datando do século VIII, e muitos factos e personagens foram preservados também no folclore da Irlanda, da Ilha de Man e da Escócia. A magia é uma característica constante: humanos assumem a forma de animais e interagem com os divinos Tuatha de Danann. Os hábitos e costumes relatados fornecem um retrato bastante claro dos valores dos celtas da Irlanda:
  • sociedades guerreiras em busca de prestígio e ascensão, mulheres e homens em paridade, riqueza representada pela posse de gado, heroísmo individual e irmandade tribal.
Alguns dos textos mais importantes do Ciclo do Ulster são: O Banquete de Bricriu; A Destruição da Pousada de Da Derga; A Doença de Cuchulainn e o Único Ciúme de Emer e, principalmente, O Roubo de Gado de Cooley (Táin Bó Cuailgne), onde vemos a saga de Cuchulainn como o guerreiro irlandês por excelência.

Ciclo Feniano
Como diz o próprio nome, este grupo de lendas, poemas e contos apresentam as aventuras dos Fianna Éireann, um mítico grupo de guerreiros liderados pelo herói Fionn mac Cumhaill. Os relatos apresentam diversos factos históricos que retratam a transição da religião celta para o cristianismo, especialmente no Colóquio dos Anciães, em que Oisín, filho de Fionn, argumenta com S. Patício a favor da antiga religião, enaltecendo suas virtudes: a coragem, a generosidade, a hospitalidade e a liberdade da sociedade celta original. Oisín também é o protagonista da bela história de amor A Balada de Oisín em Tír na nog, na qual o nobre guerreiro é atraído para o Outro Mundo pela aparição de Niamh dos Cabelos Dourados, uma donzela de irresistível beleza. Também as lutas entre tribos celtas do sul e do Oeste da Irlanda são retratadas. Assim como no Ciclo do Ulster, as lendas do Ciclo Feniano estão repletas de eventos mágicos e contactos com deuses ancestrais. Além de O Colóquio dos Anciães, dois outros textos significativos são Os Feitos de Fionn na Infância, que relatam como ele se tornaria o grande guerreiro e sábio que é, e a história de amor A Perseguição de Diarmuid e Gráinne, que pode ser identificada como uma das mais remotas raízes para o clássico Romeu e Julieta de Shakespeare». In Canal História, Jean Markale, Wikipédia.

Cortesia de CHistória/JDACT

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Abóboras no Telhado. Polémica e Crítica. Aquilino Ribeiro. «Também me minguava a pachorra. A pachorra e o tempo. O ‘rat de bibliotèque’ é um bicho especial que tem por si a eternidade e uma sorte de pulmões de pescador de pérolas. ‘Podia, não podia?’ Não sei. Naturalmente, estava fora da esfera a natureza do seu artesanato»

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Uma aventura Literária
«(…) Missanga, é possível. A obra, uma vez realizada, parece fácil. Não é tão fácil como isso. A figura do Cavaleiro estava, de facto dentro dos seus livros, como os Lusíadas estão dentro do dicionário de Morais. Tudo vai em acertar o mosaico, em que cooperam engenho, inteligência e saber. A figura do Cavaleiro, social, vivedoira, com os seus cinco sentidos, aquela sua agilidade de pintalegrete, estava de pé e, embora com as suas sombras esfumadas, era palpite meu que não era nenhum manequim convencional, nenhuma personagem do Museu Grévin siderada aos olhos do espectador. Entretanto Jordão Freitas, um operoso garimpeiro de tombos, começou a publicar, ipsis verbis, no jornal a Época, documentos exumados dos arquivos, concernentes ao Cavaleiro. Eram todos de essência oficial e reportavam-se à sua actividade em tanto que empregado de secretaria, na embaixada de Viana, ao serviço do conde de Tarouca. Além destes, transcritos na sua secura tabelionar, poucos mais, e todos procedentes dos cartórios e arquivos públicos como fica dito, publicou Jordão Freitas. Aconteceu porém que veio a lume nos jornais diários o programa cultural da Biblioteca. Como nesse programe se anunciasse o meu trabalho sobre o Cavaleiro de Oliveira, Jordão Freitas, a fugir à contingência de ser ultrapassado na publicação dos documentos, deu-se a publicá-los à lufa-lufa, ou pelo menos mais aceleradamente do que até ali. Tal conjuntura vinha favorecer os meus desígnios.
Nunca eu pensara em disputar-lhe a -glória de pioneiro. A velha papelada, com suas surpresas esplêndidas embalsamadas em bolor e miasmas, nunca me seduziu. Também me minguava a pachorra. A pachorra e o tempo. O rat de bibliotèque é um bicho especial que tem por si a eternidade e uma sorte de pulmões de pescador de pérolas. Respira na poeira dum sótão como o mergulhador no fundo do mar. Para e1e, a suprema volúpia é furar através de papéis arrumados desde o princípio dos princípios, por mão em fantasmas. Um múnus assim tem o seu quê dos limpa pára-raios. Há uma data a rectificar: … pois, senhores, não foi em 6 de Fevereiro de 1164 que se deu a batalha dos Chifres Esmurrados; foi em 7 de Janeiro. A prova é que..., o marechal do Chuço em Riste tivera na véspera um desaguisado sério..., etc., etc. Há que chumaçar a vida dum grande macabeu, dum apóstolo dos negrinhos da Guiné, dum navegador antártico?... Desmonta os maços pulverulentos dos armários, percorre os cartários das sacristias, folheia quantos armoriais os velhos fidalgos, desde Atanagildo, mandaram lavrar por seus capelães. E acaba por encontrar o pábulo precioso. Não raciocina como a gente de cuidados raciocina. Tem outra tábua de valores mentais.
João Freitas era destes. A sua biografia do marquês de Pombal não começa assim : … duas datas importantes há a considerar na vida deste estadista: a do seu nascimento e a da sua morte. O movimento de sofreguidão era mais que razoável. Observar-se-á: … Jaime Cortesão podia ter confiado a Jordão Freitas o encargo de fazer o referido trabalho... Podia, não podia? Não sei. Naturalmente estava fora da esfera de Jordão Freitas, dado que não superasse a natureza do seu artesanato. Este era particularmente um sacerdote de Hermes Trimegista, um verificador de mausoléus. E o que interessava no Cavaleiro não era o autor das Cartas nem do Amusement, livros de terceira ordem, plagiados noventa por cento, e, quanto a espírito, como muitos outros que vieram a lume nesse espiritual e sacripanta século XVIII». In Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand, Lisboa, 1955.

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