quinta-feira, 31 de maio de 2018

No 31. Poesia. Erotismo. Maria Tereza Horta. «O rigor da calma o rigor das pernas o rigor dos seios quando minto»

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Depoimento
«Eis que desço
As mãos
Os dedos nus

Eis que empunho
O vidro
Pela face

Eis que te utilizo
E te
Destruo

Eis que te construo
E te
Desfaço

Eis o gume novo
Desta
Pedra

Eis a faca aberta
Na
Manhã

As árvores
Ocultas nas palavras

O couro a violência
O trilho
A lã

Eis o linho
Bordado
Numa cama

A linha
Na fímbria
Da toalha

O fuso o feltro
O fundo
Da memória

Eis a água
Dita
Como vã

Depostos
Objectos
Da batalha

A tenda a espada
A sela
A sede a vela

Eis que deponho
Aquilo
Que me ganha

E que retorno
À sede com que visto
A faca de sede com que rasgo

O rigor da calma
O rigor das pernas
O rigor dos seios quando minto».
Poemas de Maria Teresa Horta, in ‘As Palavras do Corpo

In Maria Teresa Horta, As Palavras do Corpo, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-204-903-0.

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Poesia no 31. Erotismo. Maria Tereza Horta. «É o manso fascínio da onda que se inventa. É o mar, meu amor mestiço nos teus olhos»

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A Tua Velocidade
«Os cavalos brancos
Do teu ventre
Como veneno do vento

Os cavalos brancos
Do teu sono
Como vício brando no veneno do vento

Os cavalos brancos
Dos teus dentes
Como vidros no veneno do vento

Os cavalos brancos
Do teu tempo
Como varas venenosas do teu vento».


O Mar nos Teus Olhos
«É o mar, meu amor
Na febre dos teus olhos

É o manso fascínio
Da onda que se inventa

É o mar, meu amor
Mestiço nos teus olhos

É o mirto, o queixume
A mansidão tão lenta

É o mar, meu amor
O lastro dos sentidos
Que afogas nos olhos
Sem nunca te afundares

É o mar, meu amor
Que transportas nos olhos
E onde eu nado o tempo
Sem nunca me encontrar».
Poemas de Maria Teresa Horta, in ‘As Palavras do Corpo

In Maria Teresa Horta, As Palavras do Corpo, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-204-903-0.

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No 31. O Número de Deus. José L. Corral. «O intenso azul das terras do Midi tornava-se num esvaído azul-esbranquiçado. Mas os campos de searas e a paisagem monótona e ondulada continuavam a dominar tudo»

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O Algarismo e o Número
«(…) Durante várias semanas viajaram para norte, sempre pelo Caminho Francês; quando perderam de vista os Pirenéus, a paisagem tornou-se monótona: suavíssimas colinas a meio de uma planície infinita coberta de campos de trigo, nos quais de vez em quando se destacava a torre de uma igreja ou um castelo no alto de urna suave colina. Nas encruzilhadas e nas margens dos rios agrupavam-se numerosos casarios de tamanhos muito diversos; alguns eram apenas pequenas aldeias de pouco mais de uma dúzia de casas e outros configuravam-se aglomerações tão grandes como Burgos, e até maiores. Muitas dispunham de fortalezas imponentes construídas com pedras bem talhadas, ornadas de torreões poderosíssimos lavrados em pedras tão brancas que reflectiam os raios do Sol como se de um espelho de azougue se tratasse. Essas cidades possuíam magníficas igrejas e catedrais, todas elas construídas no velho estilo românico, mas todos os bispos dessas dioceses aspiravam construir em breve novas catedrais, tal como as que estavam a ser erguidas a norte do rio Loire.
A Aquitânia tinha sido um grande Estado autónomo, rico e poderoso, onde a riqueza e o bem-estar haviam florescido por todo o lado. Muita gente ainda recordava os tempos em que Leonor, a sua excelsa duquesa, reunia na sua refinada Corte dezenas de trovadores que rivalizavam na beleza das suas composições. Havia apenas meio século que a mulher que ostentara sucessivamente as coroas reais de França e de Inglaterra tinha feito da Aquitânia a terra do amor, do luxo e do estilo de vida mais refinado que o Ocidente havia conhecido.
Os trovadores ainda poetizavam as façanhas daquela portentosa mulher que, seguindo o seu primeiro marido, o rei Frederico de França, até à Terra Santa, tinha levantado o ânimo aos abatidos cruzados mostrando o seu peito nu e a sua maravilhosa cabeleira ao vento, montando o seu cavalo à frente dos soldados de Cristo. Os últimos jograis cantavam nas esquinas das praças das cidades e nos pátios dos palácios e castelos a paixão amorosa de Leonor de Aquitânia e Henrique de Inglaterra, cujo amor venceu o mundo, e a energia que manteve, já anciã, para sustentar sobre os seus delicados e envelhecidos ombros os direitos ao trono do seu filho, o rei Ricardo Coração de Leão.
A grande dama das cortes de amor e dos cavaleiros galantes, a mulher que tinha assombrado a Europa, jazia agora, dormindo o seu sono eterno, na Abadia de Fontevrault, num sarcófago de pedra policromada ao lado dos túmulos das duas paixões da sua vida, o marido, o rei Henrique II de Inglaterra, e o seu filho Ricardo, o Coração de Leão.
A norte do Loire o céu era menos luminoso. O intenso azul das terras do Midi tornava-se num esvaído azul-esbranquiçado. Mas os campos de searas e a paisagem monótona e ondulada continuavam a dominar tudo». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT

No 31. Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «Villon contenta-se com dobrar um joelho, para observar as conveniências. E contudo sente uma presença, ou um sopro, que paira por cima dos telhados…»

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«(…) O grito do capitão ressoa na cabeça de François: rumo à Terra Santa, Terra Santa, Terra Santa... Tal como Colin, ele imagina grandes extensões ocre semeadas de palmeiras, de gordas plantas espinhosas, de oliveiras centenárias. Um céu azul do qual o sol nunca se ausenta. Um céu onde voam somente pombas brancas, em silêncio. E depois uma terra pedregosa e recortada em relevos nítidos e claros, sem musgos nem lama. É uma região maravilhosa, quase quimérica, que ele povoa sem dificuldade alguma de toda a espécie de anjos, de profetas barbudos, de génios maus e de madonas, mas cujos habitantes, a gente, não consegue figurar seja como for. Serão seres curtos de perna e muito morenos, ou antes altos e esbeltos? Musculados ou franzinos? Parecer-se-ão com os italianos, com os mouros, com os gregos? As mulheres usarão véus na cabeça ou a cabeleira ondulada ao vento? Pouco importa, trata-se de uma terra demasiado fabulosa para pertencer seja a quem for. E é porque não pertence a ninguém que todos, uns ou outros por seu turno, dela se apoderam. Os próprios deuses a disputam. Os seus senhores actuais são mamelucos, antigos mercenários e escravos vindos do Egipto, tal como os hebreus. Suplantaram os cruzados que suplantaram os bizantinos que suplantaram os romanos, os gregos, os persas, os babilónios, os assírios. E eis que já os otomanos batem às portas de Jerusalém para expulsar dela os mamelucos. Todos são apenas ocupantes. A sua presença está votada a ser ali precária, transitória, muito simplesmente porque todos cometem o mesmo erro, uns atrás dos outros, ao longo de séculos: confundem constantemente a questão. A quem pertence, então, a Terra Santa? Àqueles que a possui? Àqueles que a ocupa? Àquele que a ama? Se for deveras tão santa como se diz, uma terra assim não pode ser conquistada pelas armas. Não pode ser possessão, domínio ou sequer território. E, nesse caso, não deveria inverter-se a pergunta e questionar: qual é o povo, então, que lhe pertence? Deveras. Os mamelucos?
Acre nada tem de muito bíblico. É uma fortaleza como essas que se vêem um pouco por toda a parte nos campos de França. As suas ameias grosseiras, talhadas improvisadamente na massa, recortam-se sobre um céu límpido, que os pardais invadem precipitando-se em bandos sobre os resíduos que juncam os cais. O porto é pequeno. Dois navios oscilam molemente no calor, tangidos por uma leve brisa de oeste. Marinheiros e soldados deambulam, procurando o caminho que os levará às tabernas e às raparigas. Viam-se amontoados por toda a parte barris gordurosos, cheios de azeite, sacos de especiarias, caixotes vazios, abandonados aos ratos. Nem François nem Colin experimentam emoções de circunstância. Não se prosternam para beijar o solo sagrado, que jaz sob os detritos.
Villon contenta-se com dobrar um joelho, para observar as conveniências. E contudo sente uma presença, ou um sopro, que paira por cima dos telhados, alastra até às encostas do Carmelo, cobre as dunas que orlam o litoral. Uma presença invisível que não é necessariamente Deus. Antes, uma espécie de irradiação implacável que torna tudo mais claro, mais certo. Será da luz fulgurante que, aqui, não se sobrecarrega de cambiantes? François tem a impressão de que este país árido e duro lhe lança um desafio». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT

No 31. João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Não se podia exigir mais de uma rapariguinha tímida, frágil, sempre empurrada pelas ambições da Corte e ferida no seu íntimo orgulho pela terrível mácula de bastardia»

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A morte de Lancelot
«(…) Embora João sempre tivesse achado, o que evidentemente nunca referiu em público, que o pai era dotado de uma tremenda falta de senso político, e o jovem bem podia, já nessa altura, dar-lhe alguns ensinamentos, apoiava o pai contra as opiniões do Conselho. Evidentemente que o Príncipe era novo, nimbado recentemente dos louros da glória em Arzila, e a luta, a guerra, no plano pessoal, como guerreiro, agradavam-lhe, mas não tenho dúvidas de que a esse seu entusiasmo presidia mais que uma simples vaidade pessoal. O duque de Bragança sentiu-se aborrecido com a premente oposição do real primo e até a sua obstinada pressão sobre os conselheiros para apoiarem as pretensões do Rei a casar com a juvenil Princesa de Castela e envolver-se numa guerra que em breve se traduziria por muito mais que a simples interferência de um país, cujo exército ia meter-se na luta intestina entre duas facções que se digladiavam além-fronteiras, mas no grave litígio entre duas Coroas.
O chanceler Rui Gomes Alvarenga, um velho com idade de ser pai do Rei, opôs-se frontalmente e as razões eram muitas, de peso e, de entre elas, a que se prendia com o facto de o Rei não ser homem destinado a tal empresa. Mas o Príncipe sonhava com a Coroa de Castela. Na sua alma ávida, educada pela leitura dos textos latinos e gregos, por Aristóteles e Cícero, pela história de César, brotava a semente do futuro. Hoje sei o que ele pensou. Aliás, comecei a compreender logo antes da morte do pai… Fernando de Aragão e Isabel de Castela não estavam minimamente interessados em largar para Portugal a Coroa de Castela. Que o primo se casasse com a Beltraneja era redondo disparate, mas que pusesse em causa a legítima herança de Isabel, isso nunca! Era a guerra.
Não sei o que a jovem dona Joana, então apenas com treze anos, pensou daquele seu cavaleiro andante, quase com quarenta anos, ou já nos quarenta, de barba cerrada e calvo, que fora já elegante, mas começava a ficar obeso, respirando com dificuldade quando se cansava, embora de cândido e sorridente olhar. Ainda há pouco largara as suas bonecas de criança e, embora a sua idade fosse já a conveniente para umas bodas, não sei se teria visto nesse bem-intencionado Lancelot de meia-idade mais que a pedra necessária ao seu mantimento no trono do pai contra as violentas oposições e desejos exacerbados de Fernando e Isabel. De resto, ela foi, toda a vida o seria, apenas o peão no tabuleiro de xadrez do jogo peninsular, desde as estúpidas decisões do pai, que lhe negara a paternidade em Toros de Guisando, até, depois, às labirínticas opções do Príncipe João, em 1480 e, depois como Rei, quando ergueu o seu estandarte à custa dela e do seu nome para pressionar os Reis vizinhos. Dona Joana também não desejava morrer como o seu hipotético noivo, Afonso, talvez envenenado por Fernando e Isabel, como lhe sussurravam seus apoiantes, e, de entre eles, o arcebispo de Toledo.
Dona Joana era bonita, embora sem a estonteante beleza da mãe nem aquela auréola fascinante das mulheres que nascem com um destino especial. Não se podia exigir mais de uma rapariguinha tímida, frágil, sempre empurrada pelas ambições da Corte e ferida no seu íntimo orgulho pela terrível mácula de bastardia que a marcaria até à morte como um ferrete de patíbulo. Vítima eterna, dona Joana não teve nenhuma oportunidade na vida e também nunca ninguém a deixou exprimir-se em liberdade. Pertence àquele tipo de seres a quem o destino tudo roubou menos a agonia de se saberem condenados ao silêncio, porque só o facto de existirem lhes retira o direito mínimo a um lugar e à felicidade na Terra. Conheci, ao longo da minha vida, e sem sangue real, outras pessoas como ela.
Afonso de Portugal não conseguiu mais na sua campanha em Castela que andar em círculos como um cão atrás da cauda. Ele e o seu exército. O Verão escoou-se sem que uma saída definitiva brilhasse no escuro horizonte das ambições do Rei português. Não fui recrutado, como muita gente que conheci, mas dois serviçais do mercador Bartolomeu Lagos e três braceiros amigos de Rainiero por lá andaram e no regresso, um deles ficou sem uma perna e outro morreu, os sobreviventes contavam o que foi aquele cirandar sem descanso, com um Verão tórrido que fazia arder o couro e as roupagens debaixo das couraças e das cotas, e as lâminas e ferros, depois da soalheira, em água, até ferviam em vapores como os do Inferno. Nem um nem outro, que relataram a campanha, sabiam Latim, nem ler nem escrever, é o mais certo e, se o conseguiam, era à custa do suor e do tempo a juntar, letra a letra, a palavra que a tinta negra do copista desenhara, mas quantas vezes eu recordei, naquele quadro ardente de homens em guerra cirandando por terras estrangeiras, Horácio: nos manet Oceanus circumvagus; arua. beata petamus arua, divites et insulas...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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No 31. Joana. A Louca. Linda Carlino. «Nem eu, mãe?, perguntou Joana de ânimo leve, sabendo que sempre fora e sempre seria uma substituta secundária das irmãs no coração da mãe»

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«(…) Da catedral até à casa de Beatriz, a marquesa de Moya, era uma curta distância. Era aí que se iriam alojar durante a estada em Toledo. Fernando, Joana e Filipe passaram da luz brilhante e do calor do Sol e do ruído da multidão para a sombria sala do trono. Das paredes pendiam tapeçarias mostrando a prisão de Cristo, a lavagem dos pés e Pôncio Pilatos atormentado pela sua dúvida. Não era uma atmosfera muito alegre para receber o jovem e orgulhoso casal. Sobre um estrado ao fundo da sala, via-se uma velha curvada, sentada no trono. Joana engoliu em seco. Isabel, com um aspecto velho e doente, trajava inteiramente de negro, à excepção de uma gola com pequenos motivos de setas douradas, incrustadas de rubis e pérolas. Apenas duas damas acompanhavam a mãe: a sua amiga de longa data, Beatriz, e a homónima de Joana, filha natural de Fernando.
Joana contemplou a mãe que pensara não voltar a ver. O tempo e os acontecimentos haviam desafiado selvaticamente aquela rainha, em tempos invencível. O corpo apresentava-se pesado e inchado, o rosto flácido e profundamente enrugado, o cabelo grisalho. Joana tentou pegar na mão da mãe para o beijo tradicional, mas Isabel impediu-a e, levantando-se com dificuldade, desceu os degraus penosamente. Minha querida filha! Isabel abraçou-a, apertando-a contra o amplo peito, beijando-a e chorando. E o nosso filho Filipe. Príncipe, sois muito bem-vindo. Fez-lhe sinal para que se aproximasse, para receber o abraço de boas-vindas. Espero que estejais totalmente recuperado.
Também ele se ofereceu para lhe beijar a mão, mas ela retirou-a para lhe poder apertar os braços numa demonstração de afecto. Joana traduziu a breve conversa. Bom, Filipe tem de ficar com o rei, enquanto eu vos guardo para mim, minha filha. Santo Deus, já não sois uma menina, mas uma mãe. Vamos para os nossos aposentos. Caminharam juntas, de braço dado, lentamente; cada passo era para Isabel uma agonia. Uma vez no quarto e instalada confortavelmente com Joana a seus pés, começou a interrogá-la. Estava ansiosa por notícias dos três pequeninos deixados em Bruxelas. Eram saudáveis, com quem se pareciam, quando teria os seus retratos e, ainda mais importante, quando viriam a Espanha?
Depois vieram as perguntas difíceis. Isabel exigia a verdade sobre o comportamento de Filipe para com Joana, as obrigações religiosas da filha, auto-impostas ou não. Especificou os inúmeros rumores que guardara cuidadosamente ao longo dos anos. Joana sentiu-se em terreno movediço, pois as informações eram de uma precisão desoladora. Não se atrevia a responder, preferindo negar a importância das perguntas. Preocupais-vos demasiado. Essas coisas, muitas exageradas, pertencem todas ao passado e devem ser esquecidas. Contai-me sobre vós, pois haveis sofrido muito mais que eu.
Isabel decidiu não insistir e, afinai, a filha pareceu-lhe bem e feliz. Falou-lhe das mortes trágicas da família e de como cada uma tinha sido um punhal espetado no seu coração. E as minhas irmãs, Maria e Catarina? Estão ambas casadas e de boa saúde e as cartas delas dão-me um grande consolo. Mas sinto-me muito só. Não há solidão que se compare à de um lar vazio. Tenho uma profunda dor no coração que nada alivia e nada consegue tirar-me este terrível peso da mágoa. Nem eu, mãe?, perguntou Joana de ânimo leve, sabendo que sempre fora e sempre seria uma substituta secundária das irmãs no coração da mãe». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.

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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Joana. A Louca. Linda Carlino. «Joana, Filipe e Fernando desmontaram e aproximaram-se dos degraus. O silêncio desceu sobre a multidão e o arcebispo Cisneros avançou, transportando o seu magnífico báculo de ouro…»

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«(…) Um céu de um azul brilhante e um sol quente estendiam-se pelo vale e subiam até aos montes. Ela e Filipe, cada um sob um dossel que ostentava os seus brasões e acompanhados pelo enorme séquito, estavam a uma légua de Toledo. O pai, rodeado pelos seus nobres, clérigos e guardas, viera ao seu encontro. Eram umas boas-vindas para além de tudo quanto sonhara. O único desapontamento era a ausência da mãe, que ficara em casa, ainda indisposta. Subiram juntos o monte, entrando na cidade pelo arco em ferradura da antiga Porta Bisagra. Depois prosseguiram pelas ruas estreitas, atapetadas de alecrim e tomilho, até à Porta do Sol. O cortejo era um esplendor de cores que brilhavam como ouro e prata. O povo, inclinado nas varandas adornadas com tecidos de todos os tipos e cores, dava-lhes vivas, enquanto subiam até à catedral. Longa vida aos Reis Católicos. Longa vida à princesa Joana e ao príncipe Filipe. Que Deus abençoe os vossos filhos, lá tão longe, e lhes conceda uma longa vida. Joana acenava e sorria, sentindo que o coração lhe ia rebentar de orgulho, adorando cada momento.
Os tambores, as cornetas, as trompas e os cornetins aumentavam o clamor. Pétalas de flores caíam profusamente sobre os dosséis e sobre os ombros e as cabeças dos que seguiam no cortejo. Entraram, por fim, na grande praça sobranceira à catedral. Também ali a multidão era enorme, apertando-se em espaços que pareciam não existir antes, agarrando-se às paredes e às grades das janelas, tal era a sua determinação em ver a princesa. A larga frontaria da sua igreja, com os seus portais enormes, era ainda mais imponente do que se lembrava. Os santos de pedra no topo das colunas e os que repousavam nos nichos arqueados olhavam, como se se alegrassem pelo seu regresso, alguns pareciam mesmo ter os braços estendidos em boas-vindas. Aquela catedral, onde Joana fora baptizada, iria testemunhar daí a dias a proclamação dos seus direitos hereditários às coroas de Espanha.
Joana, Filipe e Fernando desmontaram e aproximaram-se dos degraus. O silêncio desceu sobre a multidão e o arcebispo Cisneros avançou, transportando o seu magnífico báculo de ouro cravejado de jóias. Era aquele homem que em tempos tanto a intimidara? Os seus olhos não lhe trespassavam a alma e a boca já não era dura e pronta a criticar. Joana decicliu que parecia muito mais um tio simpático do que um padre desaprovador. Talvez o tivesse julgado mal no passado. No interior da catedral, os pilares, a arcaria das capelas, as divisórias e as estátuas eram banhados pela luz do Sol que entrava a jorros pelas inúmeras janelas. O cortejo passou pela coluna que marcava o local do primeiro altar, havia muitos séculos, quando a Virgem Maria descera à Terra e abençoara o monge Ildefonso por defender a sua virgindade contra os descrentes. Joana sabia que Filipe não daria importância a isso, mas mesmo assim tinha de lhe dizer. Passaram finalmente para lá da divisória de prata do coro e foram levados aos seus lugares.
À missa solene foi demasiado longa, para já não falar dos cânticos a partir do intróito, que, apesar de imaculados graças a um excelente cantor, se revelaram uma grande frustração. Filipe inspeccionava as unhas finamente tratadas com mais intensidade a cada minuto que passava e Joana deixou o olhar vaguear para além das nuvens azuladas do incenso até às capelas laterais; pousou-o, por fim, nos arautos chorosos, em tamanho natural, com os seus tabardos de cores magníficas, que guardavam o túmulo de Catarina de Lencastre, sua bisavó. Começou, então, a pensar na irmã Catarina e em como seria a vida em Inglaterra. O coro cantava o Kyrie Eleison, Christe Eleison. Acabou, por fim. Agora podia ir ver a mãe». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.

Cortesia de EPresença/JDACT

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «Quem não achava graça às quimeras de Fernando I, nem abria mão de um metro do território castelhano, era Henrique de Trastâmara»

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O reino precisava mais do que um homem bonito
«(…) Dos dois reis castelhanos, um, D. Pedro I, o Cru, matara a mãe do meio-irmão Henrique que, por sua vez, o matou a ele. Então que ordem iria Fernando I repor na Galiza? Sintetizemos o que Lopez Ayala, consagrado cronista castelhano, disse deste episódio: Henrique não jogou com as mesmas armas do meio-irmão. Levava consigo tantos fidalgos quantos precisava para eliminar Pedro, o Cru, apanhado desprevenido nos seus aposentos. Assim que entrou, Henrique atirou-se cego de vingança e de ódio sobre o irmão. Em vez de lhe levar um abraço fraterno, o que tinha para lhe oferecer era um desvairado aperto assassino. Ora, abraços dá-se aos amigos, não é coisa de matar, mas este que Henrique deu a Pedro tinha duas finalidades: vencer ou morrer. Pedro por baixo, Henrique por cima, pés e mãos dos seus vassalos em cima do desgraçado, pois sem o manietarem o seu senhor não conseguiria aplicar-lhe o golpe mortal. Com as mãos livres, Henrique segurou no punhal punitivo, apontou-o à garganta do irmão e desferiu-lhe as punhaladas que o seu íntimo vingativo lhe requisitou, mais do que seriam precisas para matar o filho mais velho do seu pai, que não da sua mãe.
Antes de marchar para tomar posse do que os nobres galegos lhe ofereciam, assegurou o apoio do rei granadino, Mohamad, como se o andaluz tivesse alguma intenção de provocar Henrique de Trastâmara. Depois, para consolidar uma frente na rectaguarda de Henrique, um contra-senso militar, tratou de oferecer o seu belo corpo à princesa Leonor, filha do rei de Aragão, assegurando assim mais um reforço contra o Trastâmara. Para este subsídio, Pedro IV de Aragão, o Cerimonioso, só de cognome, aceitou logo a proposta, aprontando-se o casamento dos dois jovens na igreja de São Marinho
(sic) de Lisboa. Havia ainda uma razão circunstancial para Fernando I apostar tudo na aventura galega. Então não é que se deixou convencer de que, sendo neto da rainha Beatriz, teria direito à coroa castelhana, depois da morte do primo Pedro? Era uma descendência no mínimo longínqua. A princesa casara com o rei português Afonso IV, era filha de Sancho IV um rei que governara Castela e Leão havia quase cem anos. Pelas contas que fizeram a Fernando, sendo bisneto do dito Sancho, mesmo que fosse pela via feminina, era o mais legítimo herdeiro ao trono castelhano. Quem era o néscio que se convencia desta ligação? Só quem queria, e Fernando, pelos vistos, era um destes.
Quem não achava graça às quimeras de Fernando I, nem abria mão de um metro do território castelhano, era Henrique de Trastâmara. Quando soube da pretensão do jovem rei de Portugal ao trono de Castela, deve ter passado o dia a rir de cada vez que lia a árvore genealógica e perdia a ligação de Fernando com Sancho IV. Mas isso que interessava ao Formoso rei? A cabeça dele não aguentava tanta lisonja, era tudo em frente, rumar a norte, passar o Minho, jantar e pernoitar em Tui para dias depois, se chegasse a tempo, se instalar na Corunha. Pelo caminho ia construindo ilusões e tácticas destrutivas, até se sentar na cadeira de onde Henrique não queria levantar-se». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Que mal há em saber ler? As freiras não aprendem nos conventos? Na minha terra todas as mulheres sabem letras. Sabeis ler, dona Sofia?»

Cortesia de wikipedia

O contrato da carne
«(…) No quarto da hospedaria, Valentim olhou a mulher deitada na cama. A visão do corpo nu da negra causou-lhe tes…e desejo. Tirou a roupa. Aproximou-se da meretriz.
Quantos anos tens? Dezasseis, senhor. Põe-te de joelhos, disse Valentim, virando-a de costas.
Escondido pela escuridão da noite, Bento Amaral Coutinho, a cavalo, atravessou os canaviais da família Gago. Avistou a casa do engenho ao longe. Tirou duas pistolas de pederneira dos talabartes e carregou-as, colocando a bala e a pólvora. Aproximou-se com cautela do solar. Luzes brilhavam no andar superior. Não havia guardas, ou escravos, ou sentinelas. Puxou as rédeas e o cavalo curveteou, relinchando. Um rosto surgiu à janela. Ouviu-se ruído de passos na casa. A porta abriu-se e um jovem magro, usando óculos de vidros grossos, apareceu na varanda. Era o filho do senhor das plantações. Quem está aí?, perguntou. Esquecestes de mim?, disse Bento, saltando do cavalo, já empunhando a sua espada. Vim cobrar o que me deveis. O homem desembainhou a espada e colocou-se em posição de guarda.
Bento aproximou-se, iniciando uma luta feroz. Feriu-o com muitas estocadas no peito, nos braços, até que o jovem deixou cair sua a arma. De joelhos, sacou uma faca e perfurou Bento na parte interna da coxa. Sangue escorreu, entrando pela bota. Bento deu o último golpe no peito do filho do plantador, matando-o. Dois escravos armados surgiram de trás da casa. Bento sacou uma das pistolas e disparou. Ele só sabia atirar com a mão direita, mas a sua pontaria era certeira. Empunhando a outra pistola, matou o segundo escravo. Com um puxão vigoroso, Bento arrancou a faca da perna, sentindo uma dor insuportável. O pé estava pegajoso dentro da bota. Rasgou a camisa e amarrou-a sobre o ferimento. Municiou novamente as suas pistolas. Arrastando a perna acutilada, entrou na casa e andou pelas salas, atento. Na cozinha duas negras escondiam-se agachadas atrás do fogão. Correi, correi daqui, cotias medrosas, disse Bento. As mulheres escaparam pela porta e desapareceram na escuridão.
Bento revistou a casa até encontrar o que procurava, um cofre de tamanho médio com o selo da família. Ao arrombá-lo verificou que continha barras de ouro. Foi buscar os alforjes no seu cavalo e voltou à casa, enchendo apressadamente os sacos com as barras de metal fundido. Com a chama das velas do candelabro, ateou fogo às cortinas, que se incendiaram num instante.
Bateu com força a vergasta no lombo do cavalo e partiu a galope. Na areia da praia, ao lado de uma canoa, um remador esperava-o. Bento embarcou rapidamente e a canoa partiu. Durante a travessia da enseada, Bento assistiu ao incêndio que se alastrara por toda a casa; o fogo tingia as nuvens de vermelho. O seu ódio foi substituído por sentimento de glória, que não ia durar muito, ele sabia, mas era agradável. Tinha que fugir. O homem que matara era de uma família importante. Poderia ir para as Minas, onde, diziam, não havia justiça nem governo. Apenas montanhas de ouro.
Sentada na poltrona da sala, na sua casa, Mariana ouvia o ruído do mar ao longe. Sentia no vento o aroma das flores. Imaginou o seu pai, velho, arrastando-se com uma bengala, coberto de ouro, cercado de criados e áulicos, a ironia de sempre, a engenhosa capacidade de ferir as pessoas, dando ordens, não cumprindo as determinações do cirurgião-barbeiro, blasfemando, esbravejando contra a morte. Ainda menina, Mariana recebera, uma noite, ordem de seu pai, Afonso, para que fosse à sala de biblioteca. Ela entrara, assustada. Sempre que o pai tinha uma repreensão ou castigo para as filhas chamava-as a tal lugar. O barão, em pé, diante da mesa, parecera-lhe um gigante. Batendo ritmadamente o chicote na mão, perguntara se ela estava pretendendo aprender a ler. Apontara com o chicote para um volume sobre a mesa, uma cartilha das primeiras letras. Mariana baixara os olhos, sentindo o sangue tomar-lhe o rosto. O pai Afonso pegara o livro e aproximara-o da chama da vela. A cartilha demorou a pegar fogo e lentamente foi-se consumindo. Cuida-te com os teus desejos, dissera. Se eles te tomam, e não tu a eles, vais arder no fogo do inferno. No seu quarto, a velha aia Sofia esperava-a, com uma vara na mão. Tira a roupa, dissera a alemã. Essas meninas da colónia são educadas como vacas. Que mal há em saber ler? As freiras não aprendem nos conventos? Na minha terra todas as mulheres sabem letras. Sabeis ler, dona Sofia? Cala-te, menina. Tira a roupa. Mariana, nua, curvada sobre o baú, esperara. Trata de gritar bem alto para que o teu pai ouça, Sofia sussurrara. E aplicara, sem nenhuma força, vinte vergastadas nas costas de Mariana, para cumprir a ordem do pai». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
                                                                                 
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terça-feira, 29 de maio de 2018

A Marquesa de Santos. 1813-1829. Paulo Setúbal. «Que há, minha filha? Que há? Nossa Senhora! Pois será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, pároco? Mas que é que aconteceu?»

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«(…) No começo não foi nada: arrufos, azedumezinhos, coisicas. História de marido e mulher. E lá iam vivendo. Mas depois! Depois, pe. Bernardo, que inferno! Aquilo eram brigas a toda hora, fusquinhas de parte a parte, bate-bocas, nomes feios, ciumadas, o diabo! Enfim, para coroa disso tudo, lá vai o bruto e enfia a faca na mulher. Duas facadas! Duas facadas na coxa. Ora, aí está no que deu um casamento tão bem começado... Numa sangueira, atalhou o padre, numa sangueira de enojar a gente! O bugre deixou a menina a esvair-se, continuou João Castro. Deixou a menina quase morta. Ah, o que padeci! A filha a morrer nos meus braços e a cidade inteira a ferver de mexericos. Que escândalo tremendo! O maior escândalo de São Paulo. Afinal, pároco, depois de muita barulheira as coisas foram-se arrumando devagarinho: a menina sarou, o casal separou-se, ele para lá, ela para cá, e a vida, com a graça de Deus, tornou ao velho ramerrão. Eis que agora, com a chegada do Príncipe, corre pela cidade um zunzum de enlouquecer um homem. Diga-me lá, pe. Bernardo, vosmecê ainda não escutou o falatório? Escutei, respondeu o padre com reserva. Escutei!
Então, reverendo, aqui entre nós, como amigos, seja franco: que é que vosmecê escutou? Pe. Bernardo aproximou-se de João Castro. Pigarreou. E confidencial, a voz baixa, murmurou sisudamente: anda por aí muita coisa. O que anda, porém, de boca em boca, muito falado, é que o Príncipe antes de entrar na cidade, portou casualmente na chácara de vosmecê, onde conheceu a sra. Domitila. É verdade? É! Pois bem; dizem então que Sua Alteza, daí para cá, ficou perdido pela moça. E é um cortejá-la! E um cortejá-la muito às escâncaras. Com muito desabrimento! Com muito rapapé! Será isso verdade?
João Castro ia responder. Nisso, quebrando a pacateza da cidadezinha, irrompeu bruscamente larga troada ensurdecedora. Era a artilharia do Carmo que disparava com estrondo. Eram os sinos de Santa Tereza que repicavam bimbalhantes. Roquetes e morteiros que salvavam. Girândolas e foguetes que estouravam no ar. É o príncipe! Enquanto ambos prestavam ouvidos ao barulho, passos violentos, muito apressados, ecoaram de golpe no corredor. Logo após, arfando, surgiu na varanda a Titília Castro. Tinha o ar de quem viera correndo. Estava fremente. Bradou aos dois homens com alvoroço: sabem a grande novidade? João Castro e pe. Bernardo olharam para a moça com surpresa. Aquele rompante, aqueles modos, a exaltação da voz, o desabalo dos gestos, tudo aquilo, assim de imprevisto, veio desentorpecer, como grossa lufada de ar fresco, a morna pasmaceira dos velhos. Que há, minha filha? Que há? Nossa Senhora! Pois será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, pároco? Mas que é que aconteceu?, exclamou o padre com impaciência. Vosmecê assusta a gente! Que há? Vamos! Desembuche. Diante dos ouvintes, com largo gesto, a filha de João Castro, rasgadamente, teatralmente, lançou esta coisa enorme: o Príncipe acaba de proclamar a Independência do Brasil! O coronel e o padre, como tocados por um ferro em brasa, ergueram-se dum salto. Quê? Quê? O Príncipe acaba de proclamar a Independência.
Vosmecê está doida, atalhou o padre, atordoado. Doida! Isso é lá possível? Doida, pe. Bernardo? Doida, eu? Mas é só ver o que vai pela cidade. Um rebuliço. Bandeiras hasteadas por toda a parte. Foguetes pelo ar. Já se reuniu o Senado da Câmara. O Largo do Colégio está assim de povo! Prepara-se já grande manifestação ao Príncipe. Mas isso é um sonho, exclamava João Castro. É de assombrar!, tartamudeava o pároco. Isto é de assombrar! Pe. Bernardo agarrou as mãos da moça. E sacudindo-as: como vosmecê sabe de tudo isso? Como sei? Pois vi, pároco! Viu? Vi. Vi com estes olhos! Mas viu o quê? Vi tudo! Mas tudo o quê?, bradava o padre, ansiado. Tudo o quê, moça? Vamos lá, fale! Desembuche! Irra... Eu vi a proclamação, pároco! Viu a proclamação? Sim, senhor! Vi! A coisa deu-se assim: eu ia à chácara de meu pai, que o reverendo bem conhece, lá no Ipiranga. Foi quando topei com a Guarda de Honra e a comitiva do Príncipe sesteando no outeiro...» In Paulo Setúbal, A Marquesa de Santos, (1925-1935), Wikipédia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.

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A Marquesa de Santos. 1813-1829. Paulo Setúbal. «… eu não me canso de repetir a Vossa Senhoria: a hora da separação está soando! E está soando porque José Bonifácio é separatista»

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«(…) E fr. Sampaio? Aquele tonto do franciscano vive a pregar sermões de mil demos, a acolher o Príncipe na sua cela, a tramar com Sua Alteza planos de independência. E os clubes então! Hein, coronel? Que me diz do Clube da Resistência! Vamos lá: que é que vosmecê diz daquilo? Mas não é só. Infelizmente, não é só. Veja lá esse tal decreto do cumpra-se! E a convocação da Assembleia! E as representações de 9 de Janeiro! E o fico! E o fico, hein, João Castro? Que tal a brincadeira? Ainda vosmecê acha que isso tudo são moinhos de vento? Pois olhe, coronel, confesso-lhe uma coisa: para mim, naquele dia em que o Clemente Pereira, depois do seu falatório, debruçou-se numa das sacadas do Paço e gritou à multidão que se estacionava fora: o Príncipe manda dizer que fica, nesse dia, escute bem!, nesse dia o Brasil separou-se de Portugal...
Vosmecê aumenta muito, pároco! Não é assim! As coisas ainda não chegaram a esses extremos. Creia, pe. Bernardo, essas arengas e essas discurseiras são tudo fogo de palha. Tudo é coisa de pouca monta. O principal é tropa e munição. No dia em que aportarem por cá fragatas bem recheadas de soldados, já não há mais independência. Com dois canhões assentados no Morro do Castelo qualquer fuzileiro faz calar a boca dos patriotas... Esta demasiada confiança de vosmecê, como de tantos outros portugueses, é o que nos vai perder, coronel. Não há tropa que consiga abafar tanta fervedura. É tudo a conspirar contra Portugal. Tudo! Demais, para remate, aí está esse José Bonifácio, esse perigoso Primeiro-Ministro, que maneja o Príncipe a seu talante, que move os gestos de Sua Alteza, como quem move um polichinelo de cordel.
Ora, aí está, exclamou João Castro, ora aí está! O pároco acha que eu exagero pouco as coisas; pois eu acho que vosmecê enxerga demasiado. Afinal de contas, diga-me lá: que grande perigo pode haver em José Bonifácio? Tanto se fala nesse homem! Tanto se fala nos Andradas! No entanto, José Bonifácio é ministro como outro qualquer. Não é melhor nem pior. Que é que tem o Primeiro-Ministro de diferente? Que é que tem? Vosmecê está zombando, coronel! José Bonifácio é a primeira cabeça do Brasil. Ou será que vosmecê ainda não ouviu dizer que o Primeiro-Ministro é um sábio? Pois o é, coronel. E grandíssimo! Esse homem, que eu conheci no Reino, leccionando em Coimbra, espantou Portugal inteiro com a sua ciência. E não foi só Portugal: foi a Europa toda...
Depois de fungar nova pitada, despeitado e azedo, pe. Bernardo rumou contra José Bonifácio. Pois vosmecê ainda não atentou no poderio deste homem? Mas é só ver as coisas. Olhe o caso da bernarda. Vai o Francisco Inácio e escorraça o Martim cá da Província. Que é que acontece? José Bonifácio, não sei com que manhas, nem com que artes, faz o Príncipe acolher o irmão com todo o agasalho, cobri-lo de todas as honrarias, e até, isto é que é!, até convidá-lo para ministro. Lá está como Ministro da Fazenda. Que escândalo! Mas a coisa não pára aí. Chega o Príncipe agora em São Paulo. Sabe o primeiro cuidado que teve? No Paço, em presença de toda a gente, só para desafrontar os Andradas, recusa-se a dar a mão e beijar a Francisco Inácio! Pode haver maior acinte? Impossível! Pois o Príncipe não se contentou com tudo isso. Monta a cavalo e toca para Santos. E que é que vai fazer Sua Alteza em Santos? Uma coisa só: visitar a família de José Bonifácio. Ora, com franqueza, isto é demais. E demais, coronel! É por isso que eu não me canso de repetir a Vossa Senhoria: a hora da separação está soando! E está soando porque José Bonifácio é separatista. Com um homem deste prestígio, com um brasileiro destes a dirigir os negócios da colónia, está bem visto que a causa da Independência ganhou a sua vitória.
Pois seja o que Deus quiser, pe. Bernardo, atalhou João Castro, com filosofia. A mim já não me afligem coisas políticas. Não aspiro outra coisa senão a uma velhice em paz. Mais nada! Tenho sofrido muito, pe. Bernardo... Tenho sofrido muito! O velho pároco sentiu o tom melancólico do amigo. Abrandou logo as suas iras portuguesas. Sabia bem o padre a causa daquelas amarguras. E meneou a cabeça com tristeza: tem razão, coronel! Tem muitíssima razão! Aquele casamento da sra. Domitila foi um desastre. Foi um raio, pe. Bernardo, exclamou o velho com vivacidade. Foi um raio que me caiu em casa! Nunca imaginei, na minha vida, que aquele casório, festejado com tanto gosto, viesse a ter um dia o desfecho que teve! Ah, pe. Bernardo, que desmoronamento!» In Paulo Setúbal, A Marquesa de Santos, (1925-1935), Wikipédia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.

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segunda-feira, 28 de maio de 2018

Poesia. Erotismo. Maria Tereza Horta. «Que trigo boca se doba na manhã? Que lentidão se acende na garganta?»

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Perguntas
«Que suspensa
morte
se levanta?

Que trigo boca
se doba
na manhã?

Que lentidão
se acende
na garganta?

Que gado é este
comendo
a sua lã?

Lassa a maneira
do cristal do tempo
laço do corpo a nascer na roupa

Rente à nudez
que te mostro aberta
demora as mãos numa carícia louca

Nardo a crescer
já perto dos meus
seios

Seta dormente
já rente
dos meus lábios

Que lentidão
secreta
nos defende?

Que loucura
secreta
nos invade?

Perversa imagem
a minha
nos teus olhos

Talvez um espanto
uma incerteza
breve

Uma tontura leve
que nos prende
dentro do gesto que feito não nos serve

Mas já nos toma
a sede
da voragem

Mas já os dedos
vão
na sua arte

Os meus em mim
e os teus tão devagar
que em mim desfolham e em ti se alastram

Seda das coisas
onde se penetra
piscina funda de nadarmos sós

Se o caminhar em nós é tão secreto
como descer ainda mais degraus
para caminhos ainda mais desertos?»
Poemas de Maria Teresa Horta, in ‘As Palavras do Corpo

In Maria Teresa Horta, As Palavras do Corpo, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-204-903-0.

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