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«(…)
A meu ver, a tese da coerência global do texto, defendida por Filipe Moreira,
devia-se basear prevalentemente em argumentos formais e textuais. Neste
sentido, façamos um pequeno exercício quantitativo. Reparemos que a primeira
sequência (morte do conde Henrique) tem 34 linhas; a segunda (conflito com a
mãe e o imperador), 53; a terceira (Bispo Negro), 72; e a quarta (Badajoz), 21
(sem contar com a secção de carácter analístico, com 21 linhas). É evidente a
extensão francamente maior da terceira. Ora é precisamente aquela que mais
claramente constitui uma verdadeira estória. Este carácter pode-se também
atribuir à narrativa da luta com a mãe, mas a sua extensão é menor. Todavia, o
redactor atribui a esta, e não àquela, a função de comandar a intriga
envolvente, pois é ela que liga entre si os episódios de S. Mamede, da luta com
o imperador, da derrota de Badajoz, e até da intervenção do legado papal. Se há
alguma unidade no texto ela inspira-se no conflito entre Afonso e sua mãe. De
facto, textualmente falando, os elementos de ligação existem. Mas, entre a
segunda e a terceira sequência, a fórmula usada pelo redactor é de tal modo
tosca que não se pode ignorar o seu carácter artificial: e despois ouve
batalha em nos quampos d’Ourique e venceo-a. E dês ally em diante se chamou el
rey dom Affonso de Portugal. E o apostólico ouvio dizer como prendera sa madre,
e que a trazia consigo presa. A esta observação pode-se acrescentar o
carácter conclusivo da fórmula que encerra a terceira sequência, como se fosse
um texto autónomo: e en todos seus dias nem huum nom fez al em toda sa terra
senom o que ell quis. Em tempos sustentei que o meio social onde, segundo
os conhecimentos históricos actuais, seria lógico (acentue-se este
qualificativo) situar o nascimento da história do Bispo Negro seria no meio dos
cavaleiros de Coimbra. Aquele mesmo onde, também hipoteticamente, teria sido
redigida a narrativa latina da conquista de Santarém. Depois de eu ter sugerido
tal aproximação, a minha hipótese viria a ser de certo modo confirmada e
aprofundada pelas objectivas investigações de Leontina Ventura acerca dos
contornos e evolução desse mesmo grupo social. A existência de um grupo de
cavaleiros que teriam sido os fiéis auxiliares de Afonso Henriques nas
expedições que conduziu entre 1135 e 1169, cujos sucessores
formaram um grupo ligado por afinidades de parentesco, sedeado em Coimbra e nas
regiões mais próximas, embora não possa ser demonstrada de uma forma
apodíctica, apoia-se em vários indícios concretos e concordantes. Creio que se
lhe pode atribuir consistência suficiente para o propor também para explicar o
que há de típico na história do Bispo Negro, incluindo as reminiscências do
conflito em torno do ritual moçárabe, prolongado pelos ódios que a intervenção
papal desencadeou no conflito entre a Sé de Coimbra e o mosteiro de Santa Cruz.
Em termos textuais, esta hipótese apoia-se na maneira como a narrativa relata a
intervenção dos vassalos que anunciam ao rei a fuga do cardeal quando
ele se levanta de manhã, e a intervenção dos quatro cavaleiros que em
Vimieiro o aconselham a não o decapitar. Em nenhuma outra fonte medieval,
exceptuando a da conquista de Santarém (com origem semelhante), aparece tão bem
delineada a relação que se teria estabelecido entre Afonso Henriques e os seus
apoiantes mais fiéis. A imagem do rei rodeado dos seus vassalos, quase como
chefe de um bando armado, concorda perfeitamente com o que sabemos do grupo de
cavaleiros de Coimbra, que constituiu o núcleo duro da corte afonsina
até ao desastre de Badajoz. Na narrativa, porém, o comportamento de Afonso
aparece já transfigurado pela distância de uma memória de duas ou três
gerações.
Os
cavaleiros de Coimbra constituem, porém, um grupo diferente do meio
linhagístico do Norte, a que pertenciam os magnates da corte e os ricos homens
governadores das principais terras, de tradições independentes e mais antigas.
Neste, cultivar-se-iam, pelo contrário, sentimentos de rivalidade que
suscitaram pequenas narrativas depreciativas para com Afonso Henriques, também
com inegáveis resultados textuais preservados pelos Livros de Linhagens, mas
que não deixaram qualquer vestígio na Primeira Crónica, a não ser, na minha
opinião, sob a forma moderada que revestiram as palavras de Soeiro Mendes
entre a primeira e a segunda fase da batalha de S. Mamede. Apesar de
interpretáveis, na opinião de Filipe Moreira, como palavras de um adjuvante
do herói, não me parece que se possa ignorar o evidente tom de censura que a Crónica
Portuguesa lhe atribui: nom fezestes sisso que aa batalha fostes sem mim.
Custa-me a crer que um algum escriba da corte de Afonso III se lembrasse de as
escrever numa obra destinada a exaltar a autoridade régia, se não as tivesse
antes lido ou ouvido em algum lado. Que o redactor não ignorava as reservas e
resistências suscitadas contra Afonso Henriques por alguns sectores do reino, é
o que se verifica, com toda a clareza, através das palavras com que,
aparentemente, deveria terminar, numa certa fase do seu trabalho, o texto sobre
o seu reinado: e em como foi da primeira muy esquivo asi tornou despois pela
graça de Deus a ser muyto a serviço de Deus, qua em seu tempo, quando era
mancebo, non conhicia tanto Deus nem sabia que era. Se não é difícil
aceitar a tese de uma versão de tipo cronístico a que um autor único teria
procurado dar forma coerente, de certo modo preservada pelo seu estado actual,
não parece razoável ignorar o interesse de um trabalho mais arqueológico
que consiste em identificar a origem de várias narrativas, sobretudo no caso de
indiciarem posições contraditórias de diferentes grupos sociais, como acontece
justamente neste caso». In José Mattoso, A Primeira Crónica
Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Número 6, 2009, Instituto de Estudos
Medievais, Lisboa, ISSN 1646-740X.
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