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Papéis.
1991-2003
As
costureiras das mães
«Cara
Sandra.
Esta
história do prémio está a perturbar-me muito. Devo dizer-te que aquilo que me faz
mais confusão não é o meu livro ter sido premiado, mas o prémio ter o nome de
Elsa Morante. A fim de escrever algumas linhas de agradecimento, que fossem
acima de tudo uma respeitosa homenagem a uma escritora que muito amei. pus-me à
procura, nos livros dela. de passagens adequadas à circunstância. Descobri que a
ansiedade nos prega partidas desagradáveis. Folheei, folheei, e não encontrei uma
única palavra que servisse para aquilo que pretendo, quando na realidade me recordava
nitidamente de muitas. Será necessário reflectir sobre como e quando é que as palavras
fogem dos livros, e os livros acabam por parecer túmulos vazios.
O que
foi que me impediu de ver, neste caso? Procurava uma passagem claramente feminina
sobre a figura materna, mas as vozes narradoras masculinas inventadas por Elsa
Morante toldaram-me a vista. Sabia bem que essas passagens existiam, todavia, para
encontrá-las teria de me inserir de novo na impressão causada pela primeira leitura,
quando fora capaz de sentir as vozes masculinas como um disfarce de vozes e sentimentos
femininos. Porém, para conseguir algo desse género, a pior coisa que se pode
fazer é ler com a pressa de encontrar um passo para citar. Os livros são organismos
complexos, as linhas que nos perturbaram profundamente constituem o momento mais
intenso de um terramoto nosso, de leitores, que o texto iniciou desde as primeiras
páginas; ou se encontra logo a falha geológica, e nos tornamos a própria falha,
ou então já não encontramos as palavras que nos pareceram escritas para nós, e,
se as encontrarmos, parecem-nos banais, não mais do que um lugar-comum.
Por fim
recorri à citação que conhecem. queria usá-la como epígrafe em Um Estranho Amor:
mas é difícil de usar, porque ao lê-la hoje parece, justamente, óbvia, nada mais
que uma passagem irónica sobre a desmaterialização do corpo da mãe por acção do
macho meridional. Por isso, caso vos pareça necessário citar aquele passo para tornar
mais compreensível a leitura do meu texto de agradecimento, transcrevo abaixo a
página por inteiro. Elsa Morante resume livremente aquilo que a sua personagem,
Giuditta, dirá ao filho, comentando os modos de siciliano que o rapaz usou para
marcar o fim, depois de uma feia humilhação, da experiência teatral da mãe, e o
regresso dela a uma aparência menos perturbante: Giuditta agarrou-lhe uma
mão e cobriu-a de beijos. Naquele momento (disse-lhe em seguida), ele tivera precisamente
uma atitude de siciliano, daqueles sicilianos severos, honrados, sempre atentos
às suas irmãs, para que não saiam sozinhas à noite, para que não alimentem esperanças
aos apaixonados, para que não usem bâton! E, para os quais, mãe significa duas
coisas: velha e santa. A cor apropriada para as roupas das mães é o preto, ou, quando
muito, o cinzento e o castanho. Os seus vestidos são informes, pois ninguém, a começar
pelas costureiras das mães, vai pensar que uma mãe tem um corpo de mulher.
Quantos anos têm é um mistério sem importância, uma vez que a sua única idade é
a velhice. Essa velhice informe tem olhos santos que choram, não por si mas pelos
filhos; tem lábios santos que recitam orações, não por si mas pelos filhos. E
ai daquele que pronuncie em vão, diante desses filhos, o santo nome das suas mães!
Ai dele! É uma ofensa mortal!
Recomendo-vos
que leiam este trecho sem ênfases. em voz normal, sem tentarem fazer os tons declamativos
dos maus actores. Aquele que o ler deverá apenas sublinhar, ligeiramente, informes,
costureiras das mães, corpo de mulher, mistério sem importância. E aqui vai também
a minha carta para o júri do prémio, espero que se perceba que as palavras de Elsa
Morante não estão de modo nenhum gastas. Peço-vos uma vez mais desculpa pelas
maçadas que vos dou.
Elena
In Elena
Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN
978-989-641-666-9.
Cortesia de Relógio d’AguaE/JDACT