Cortesia
de wikipedia e jdact
A
vida de Gregório Matos
«Pedro Gonçalves de Matos, viúvo de dona
Margarida Álvares, é um ferreiro modesto, tem sua oficina junto ao mosteiro da
Senhora da Oliveira, em Guimarães, onde nasceu e se casou. Sua vida é árdua, e
ele sonha com a colónia ultramarina do Brasil, onde se diz que é terra para um
pobre enriquecer. Pedro vê alguns de seus amigos partindo e, diante de cada
dificuldade que precisa enfrentar, o seu devaneio se fortalece. Conversa no
adro da igreja com amigos, alguns deles também sonham com o além-mar, são
homens pobres, valorosos e corajosos, tradicionalmente aventureiros, todos têm
algum parente, pai, filho, tio, primo, avô, ou amigo que partiu em busca de uma
nova vida na colónia brasileira. Deixavam às vezes suas mães, esposas e filhas
a esperar os cabedais que viriam da nova terra. Uns nunca mais deram notícias,
outros retornaram, na mesma pobreza, mas a maioria, em condição superior.
Alguns, até mesmo ricos. O Brasil precisa de oficiais mecânicos, ferreiros,
pedreiros, carpinteiros, canteiros, oleiros, tanto mestres como aprendizes,
lavradores e criadores, lá eles terão trabalho em abundância e muito mais bem
pago do que no Reino. Pedro é ambicioso, quer enriquecer, e não vê essa
possibilidade, nas aldeias pacatas e monótonas do Minho. Conversa com seus
irmãos João e Domingos, que partilham da mesma aspiração. Um amigo que esteve
no Brasil fala da colónia com ardor, da imensidão da costa com mais de
oitocentas léguas, toda coberta de bosques. É uma terra áspera e bravia, mas a
grande quantidade de açúcar que ali se fabrica dá meio de vida e enriquece; em
apenas cento e cinquenta léguas há mais de quatrocentos engenhos, e os
portugueses carregam seus navios de açúcares, não há lugar em todo o mundo onde
se crie tanto açúcar com tanta abundância. Na costa há quantidade de cidades,
fortalezas e belas casas nobres; entrando a trinta léguas pelo sertão, senhores
ali possuem grandes territórios que lhes deu el-rei de Espanha em recompensa
por algum serviço e são elevados, em título de dignidade, a barões ou condes, e
esses senhores dão terras a quem quer ir morar nelas e plantar canas-de-açúcar,
com a condição de mandarem moer aos seus moinhos pagando-lhes a tostão, e ali
os colonos edificam suas casas com jardins e plantações de toda sorte de
frutos, criam muito gado, aves e outros comestíveis, plantam arroz, milho
grosso e miúdo, raízes de mandioca, batatas e mais sementes, os portugueses
extraem do Brasil dinheiro, açúcar, conserva, bálsamo e tabaco, mas não mais
pau-brasil, que el-rei reserva para si. Lá, uns ficam fidalgos e seus filhos
nascem fidalgos. Diante de tantas oportunidades, os irmãos Matos decidem partir
para o Brasil.
O filho de Pedro, o menino Gregório, trabalha no
quintal a debulhar espigas de milho, quando o pai lhe comunica que vão para a
colónia. É o ano de 1616, e a criança tem por volta de doze anos. O menino não
teme as viagens pelo oceano, elas fazem parte das conversas, da imaginação, dos
encantos da infância minhota. Os marujos são quase heróis, as naus, motivo de
orgulho, e o mar, um fascinante espectáculo de novidades. Os irmãos Matos
vendem e doam a parentes tudo o que não podem levar. Fazem uma festa de
despedida, mandando celebrar missa e tomando uma canada de vinho com amigos e
vizinhos. A expectativa é grande. Quase não dormem a noite de véspera da
viagem, uns cheios de temores, outros de esperanças. Rezam piedosamente ao
alvorecer. O menino está ansioso quando segue o pai, os tios, tias e primos a
caminho de Viana do Castelo. Os homens vão a cavalo, as mulheres e crianças,
numa carroça, sentadas sobre pertences da família: ferramentas de trabalho, uns
caixões com roupas e lençóis, uma viola, algumas trouxas. Em Viana do Castelo aguardam
a partida da nau que vai se juntar à frota, rumo ao Brasil. Enquanto esperam,
Gregório, com seu primo, o menino João de Matinhos, assiste a uma estranha
procissão onde aparece a figura da Morte recoberta de patas, cachos de uvas,
ouro, de que jamais se esquecerá. Finalmente a família embarca e a nau levanta
ferros, para cruzar os mares rumo ao Brasil. O oceano parece infinito. O Minho, a parte
geográfica de Portugal ao extremo noroeste, no litoral, tinha como cidades mais
importantes Braga, no Baixo Minho, e Viana do Castelo, no Alto Minho. Seus
limites a norte e sul eram os rios Minho e Douro e a leste um perfil de
montanhas o separava de Trás-os-Montes, formando uma espécie de ferradura
aberta para o mar. Possuía vales largos e de chão plano, por onde corriam, além
do Minho, os rios Lima, Cávado e Homem, e seus afluentes. Com tantas águas, era
uma região húmida e fria, onde chovia bastante. Na terra, boa para criação e
lavoura, havia pasto no Inverno e plantava-se milho no Verão. Também muito
feijão, abóbora, e outras hortas. Videiras e oliveiras. E centeio e trigo. O
rio Minho, a cujas margens estavam de um lado Portugal e de outro a Galiza, era
como a alma da região. Ele determinava paisagens e a vida dos ribeirinhos, uma
população com extremo amor pelo fabuloso e intensa devoção religiosa. Os
minhotos se apegavam à terra, mas possuíam um instinto de arribação, uma
história de migrações eternas, sofridas, e devaneavam, amantes das saudades.
Tinham o rosto cavado pelo sol, pelo frio, ou pelas humidades salgadas do mar.
Uma gente de feição mais para galega, que até no português parecia estar
falando o galaico. O modo de falar do Alto Minho era uma variação do português
setentrional, com alguns traços que o aproximavam do galego e no qual ocorriam
características únicas, um fenómeno típico de lugares isolados. Havia alguns
provérbios locais de intensa sonoridade poética, como este: casa quiero cánta caiba e binho cánto bieba e
tierras cántas bieja. Existiam naquela região as peculiares aldeias
fantasma. Na serra da Peneda os moradores, obrigados a sair de suas casas
durante um período no ano, pelo rigor do frio, precisavam ter duas moradias: a inverneira,
abrigo para quando a neve cobria a serra, e a casa branda, para os
tempos mais amenos. Eram casas simples, de pedras postas umas sobre as outras e
presas de modo rude, com engastes, manchadas de liquens, o telhado coberto de
colmo. Na parte de baixo guardavam o gado, e na de cima ficavam a cozinha com o
forno, e os quartos. Nas brandas os castrejos lavoravam batatas e centeio, e
nas inverneiras apanhavam feijão e milho, ou ficavam em casa fiando,
tecendo linho, lã. Em meio a isso, o capricho da Primavera, a melancolia
mediana do Outono». In Ana Margarida, Musa Praguejadora, Editora Record, 2014, ISBN
978-850-106-602-2.
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