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Castelo
Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…)
O rio parecia um largo fosso ao redor das altas muralhas de Roma. O barqueiro
mantinha a pequena embarcação próxima do abrigo dos paredões, longe dos olhos
das sentinelas acima. Luca viu à frente a silhueta de uma ponte de pedra se
agigantar e, pouco antes dela, uma grade cobrindo um arco de pedra no muro.
Quando o barco se aproximou, a grade subiu sem ruído e, com um movimento
experiente do remo, eles entraram rapidamente num porão iluminado por archotes.
Acometido por um súbito pavor, Luca desejou ter aproveitado a chance de escapar
no rio. Havia meia dúzia de homens de aparência ameaçadora esperando por ele,
e, enquanto o barqueiro usava uma velha argola presa à parede para estabilizar
a embarcação, eles se aproximaram e retiraram Luca do barco, para então
conduzi-lo por um corredor estreito. O rapaz mais sentia do que via as grossas
paredes de pedra de cada lado e as tábuas de madeira sob seus pés, enquanto
ouvia a própria respiração, irregular devido ao medo. Pararam diante de uma
pesada porta de madeira e, depois de uma única batida, esperaram. Uma voz de
dentro da sala disse Entre!, ao que o guarda abriu a porta e empurrou
Luca para dentro. O rapaz parou, o coração aos pulos, atordoado com a súbita
luminosidade produzida por dezenas de velas de cera, e ouviu a porta se fechar
silenciosamente às suas costas. Havia um homem sentado diante de uma mesa, com
vários papéis espalhados a sua frente. Ele usava um sumptuoso manto de veludo,
de um azul tão escuro que parecia quase preto, e um capuz que escondia todo o rosto
da visão de Luca, que parou diante da mesa e tentou controlar o medo. O que
quer que acontecesse, decidiu, ele não iria implorar pela própria vida. De
algum modo, criaria coragem para enfrentar o que viesse, impassível e forte,
sem envergonhar a si mesmo ou ao pai chorando como uma menina. Deve estar perguntando
por que está aqui, onde está e quem sou eu, disse o homem. E vou-lhe contar.
Mas, primeiro, deve responder a todas as perguntas que eu fizer. Compreendeu? Luca
assentiu com a cabeça. Não deve mentir para mim. Sua vida está em jogo, e não
tem como saber as respostas que eu possa preferir. Trate de dizer a verdade:
seria tolice morrer por uma mentira. Luca tentou assentir, mas percebeu que
estava tremendo demais. Você é Luca Vero, noviço do mosteiro de São Xavier, no
qual ingressou quando garoto, aos 11 anos? Você ficou órfão há três anos, desde
que seus pais morreram, quando tinha 14 anos? Meus pais desapareceram, respondeu
Luca. Ele pigarreou, desconfortável. Talvez não estejam mortos. Foram
capturados numa incursão otomana, mas ninguém os viu morrer. Ninguém sabe onde
estão, é bem possível que estejam vivos. O inquisidor fez uma rápida anotação numa
folha de papel diante dele. Luca observou a ponta da pena preta movendo-se pela
página. Você espera, disse o homem, ríspido. Tem esperanças de que eles estejam
vivos e retornem para si. O modo como falava deu a entender que considerava a
esperança uma grande tolice. Espero. Foi criado pelos irmãos e fez juramento à
ordem sagrada, mas, ainda assim, buscou seu confessor e o abade para lhes dizer
que a relíquia que guardavam no mosteiro, um prego da cruz verdadeira, era
falsa. O tom de voz, uniforme, já carregava a acusação. Luca sabia que aquilo
fora uma menção à sua heresia; também sabia que a única punição para a heresia
era a morte. Não tive intenção... Por que disse que a relíquia era falsa? Luca
desviou o olhar para as botas, então para o piso de madeira escura, a mesa pesada
e as paredes caiadas. Tentou olhar para qualquer lugar que não o rosto sombreado
do interrogador de voz suave. Pedirei o perdão do abade e farei minhas
penitências, respondeu. Não tive intenção de cometer heresia alguma. Deus é
testemunha de que não sou herege. Não quis fazer mal algum. Eu julgarei se foi
ou não herege. Já vi homens mais jovens que você, que fizeram e disseram coisas
menos graves, pedindo misericórdia sob tortura, gritando enquanto as
articulações estouravam. Ouvi homens melhores implorando pela fogueira,
ansiando pela morte como único alívio para a dor. Luca sacudiu a cabeça ao
pensar na Inquisição (maldita), que tinha o
poder de decidir seu destino, vê-lo cumprido e atribuí-lo à glória de Deus». In Philippa
Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, colecção Ordem da
Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.
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