terça-feira, 5 de outubro de 2010

David Mourão Ferreira: «Quantas mãos... Quantos dedos, para que em seda cedam as paredes»

Cortesia de comunidade

Canção Amarga
Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.

Agora, tu, só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.

Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!
David Mourão-Ferreira, in «A Secreta Viagem»
 
Paisagem
Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.

E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»

Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)
David Mourão-Ferreira, in «A Secreta Viagem»

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