Luíseme e jdact
“Tinha os olhos pregados no
navio. Fundeado no Teio, a alguma distância do cais, iluminava-o um clarão
vivíssimo. Se bem que estivesse havia já uma semana em Lisboa, ainda me não
habituara à luminosidade extravagante da cidade. Nas terras donde eu vinha, a noite
fazia das cidades negros blocos de carvão, onde o foco de uma lanterna
representava mais perigo do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa do
século XX”. In Erich Maria Remarque, Uma Noite em Lisboa.
«A noite fez-se para esconder
tesouros. Nela, acontecem as conspirações que mudam a face da História, os
amores que dinamitam os sentidos e os filmes que não podemos esquecer.
Concedem-se direitos aos segredos e corpos às recordações.
Na noite do 1.º de Dezembro de
1940, as cidades da Europa do século XX tinham, de facto, o aspecto de negros
blocos de carvão evocado por Erich Maria Remarque em ‘Uma Noite em Lisboa’. A
Wehrmacht ocupara Paris, a Luftwaffe bombardeava ferozmente Londres, Southampton
e Conventry, os judeus desapareciam, aos milhões, nos campos de concentração,
sem que nada de humano ou divino lhes valesse.
Vivia-se de cócoras, o riso era
uma indecência e o amor uma extravagância. A vida, qualquer coisa que, de
repente, se descobria ter desperdiçado enquanto fora tempo. Nessa noite, no entanto,
Lisboa festeja, como uma louca sem noção do tempo, do espaço ou das
circunstâncias, o duplo centenário. Vive-se a última oportunidade para visitar
essa obra-prima da arquitectura para ver e deitar fora que é a Exposição do
Mundo Português, em Belém. Centenas de lisboetas não perdem tempo e tratam de
se extasiar com o simulacro de Império erguido à beira-Tejo, para maior glória
do Estado Novo.
‘O céu estava como se nada fosse,
falso. Ouviu-se algures uma explosão. Gilles lembrou-se de uma frase feita: Os
deuses são impassíveis’. In Drieu de La Rochelle, Giles.
No dia seguinte, quando soarem as
doze badaladas da meia-noite, será já demasiado tarde. Sob a presidência de
Óscar Fragoso Carmona, apagar-se-ão as luzes, enquanto um monumental coro
entoará o hino nacional. Os Pavilhões da Fundação, Formação e Conquista,
Independência, a Secção Colonial e a Nau Portugal, entre outras obras-primas da
propaganda, passarão a ser uma saudade.
Festejam-se, de ume assentada, os
trezentos anos da restauração da independência, os oitocentos da fundação da
nacionalidade e o ressurgimento da ‘gloria pátria’ pela mão fria do Estado
Novo. Dão-se vivas a (ditador) Salazar e graças a Deus. Rezam-se ‘Te-Deum’ nas principais
igrejas de Lisboa, ouvem-se discursos inflamados pelo fervor nacionalista, […]
Enquanto se festejavam tão nobres
efemérides com a pompa e circunstância prezadas pelo regime, o Belenenses
vencia o Sporting por três a um, o Benfica fazia outro tanto contra o União
Lisboa, mas por quatro a dois, e os Unidos derrotavam o simpático Carcavelinhos
por duas bolas sem resposta. No cinema, passava, por sua vez, um cartaz de
luxo: entre outros, filmes como Ninotchka, de Lubitsch, com a Garbo (São Luís),
O Grande Êxito, com Ann Sothern e Edmund Lowe (condes), A Minha Mulher Favorita
com Cary Grant e Irene Dunne (Tivoti), Garra de Ferro, com James Cagney (Palácio)
e Piedosa Mentira com Edwige Feuillére e George Rigaud (Eden). A guerra parecia
longínqua e um problema dos outros.
Mas não o era. Nessa mesma noite,
enquanto o fogo-de-artifício ribomba sobre Belém, Saint-Exupéry, o
escritor-aviador que acreditou em ‘Principezinhos’, assina uma carta
angustiante. Está instalado no Hotel Palácio, no Estoril, e escreve:
- ‘Guillaumet est mort, il me semble ce soir que je n’ai plus d’amis. (...) Je n’ai plus un seul camarade au monde à qui dire: Te rappel-les-tu? (...) Je croyais que ça n’arrivait qu’aux très vieilles gens, d’avoir semé sur leur chemin, tous leurs amis, tous. Il y a toute la vie à recommencer. Aidez-moi, je vous en supplie, à voir le paysage. Je suis désemparé d’avoir passé la crête. Dis-moi quoi faire. S’il faut revenir, je reviens’.(Guillaumet morreu. Esta noite parece-me que já não me resta nenhum amigo. Já não tenho nenhum camarada a quem dizer: "Lembras-te?" (...) Pensava que isto só acontecia às pessoas muito velhas, deixar todos os amigos pelo caminho, todos. Há toda uma vida a recomeçar. Suplico-te que me ajudes a ver a paisagem. Fui abandonado no cume. Diz-me o que devo fazer. Se for preciso voltar, volto).
Mas este homem apaixonado que, de
repente, se via sem ninguém que lhe percebesse os desenhos e estimulasse os
sonhos é, na sua genialidade, apenas um símbolo. Nessa noite, e noutras que se
seguiram, muitas cartas, com tamanha angústia, foram dirigidas de Lisboa para a
tal Europa do século XX, onde os destinatários nem sempre se mantinham vivos
para as receber. A ‘capital do Império’ afigurava-se, então, um paraíso (bem)
triste (na expressão também de Saint-Exupéry) para os que, procurando um espaço
de tranquilidade, não conseguiam, todavia, esquecer o que ficara para trás.
A Lisboa que se engalana para a
festa domingueira das suas celebrações vive no instante antes do abismo. Nela,
por mais que a encenação política do regime procurasse fazê-lo esquecer,
instalou-se o sinal de um tempo em que a clandestinidade foi morada e a roleta,
muitas vezes, russa.
Pela Lisboa dos pátios das
cantigas, da Praça da Figueira, dos teatros de revista e das esplanadas
soalheiras, passavam várias dezenas de milhares de judeus fugidos ao extermínio
certo, vedetas sem palco, reis sem trono, apaixonados só com memórias e gente
determinada a espremer os amanhãs até que eles cantassem. Passou, por exemplo, Leslie
Howard a bater-se pela causa da liberdade e passou, pelo menos duas vezes,
Louise Rainer, secreta e desesperadamente à procura do pai que ficara na
Áustria. Ante estes e outros dramas, a
ditadura persuadia a população a viver habitualmente, a ler os livros, e ver os
filmes, A ouvir a rádio que a sua censura livrara de intuitos subversivos e,
sobretudo, a deixar-se conduzir, pobrezinha mas honrada, para o ‘ressurgimento
nacional’. Mas a geografia colocara Lisboa no coração de uma História em
turbilhão, e contra esse facto nem mesmo (o ditador) Salazar podia agir». In
Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II
Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.
Cortesia de Vega/JDACT