domingo, 1 de março de 2015

Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «A propaganda pelo facto é sempre a melhor, tinha-me respondido António José Almeida. Há dois homens, um dos quais pertence ao Governo, que encarnaram esta ideia. Já não há dúvida. Vamos entrar em guerra»

Pátio das osgas, desenho de Sousa Lopes 
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O Génio do Povo. Junho de 1916
«(…) A fé é o primeiro postulado da vida para o homem e para os povos. E o homem só por esse esforço sublime ultrapassa a sua estreita animalidade. Se esta excedência é necessária aos indivíduos é imprescindível para os povos. Ai dos que não crêem num grande destino! Uma Pátria, um povo que não ilumine a hora que passa com a visão do Futuro não se impondo uma alta missão, a si mesmo se condena à morte. E todavia há factos reveladores de que este grande esforço mergulha as raízes no que há de mais belo no passado. Portugal confia no seu destino, e volta os olhos suplicantes para as suas divindades gentílicas. Outrora, à partida das naus, dirigiam-se as procissões e as preces a Santa Maria de Belém. E ao surgir dos grandes feitos ou dos grandes homens, os olhos do povo viam aparições de milagre, os altos sinais reveladores cheios da força do Destino. Hoje é a multidão que invade os templos, e a Pátria reza a S. Camões a maior divindade lusitana. Já Lisboa fizera do dia de Camões o Dia Santo da cidade, mas ei-la organiza agora a sua procissão. Lá passa o cortejo: carros alegóricos, figuras evocadoras, palmas, abadas de flores aos pés da estátua do Épico... Mas há uma parte da Nação que não vive este culto. Não o vive porque desconhece tanto o bardo como o epos. É o sonâmbulo povo das aldeias, o povo sem letras e sem cultura que não seja a cristalização moral dos aforismos, das cantigas, das lendas seculares.
Também esse povo, a seu modo, numa floração misteriosa de instinto, nos põe a alma às claras. Dizia, há dias, um jornal de província que em terras de Coimbra e seus lugares vizinhos se afervorava o culto pela Rainha Santa e que entre o povo corria a voz de que ela aparecera no caminho, a um batalhão de mobilizados, anunciando-lhes a vitória. As rosas da lenda, que Santa Isabel dava em abadas aos pobres, voltam a florir secretamente no coração do povo. Também eles, os rudes cavões portugueses e as ingénuas mulherinhas das aldeias, vestem de flores a velha espada das nossas épicas façanhas. Não; eles não conhecem Camões. Mas sabem de cor a história da Santa das Rosas. E sobre o crepúsculo da sua fé e amor pátrio acenderam, num sorriso, aquela estrela de milagre. Porque não hão-de semear de estrelas a sua infinita sombra, que papita em desejos de luz?

O Palácio na Lama. Setembro de 1916
A propaganda pelo facto é sempre a melhor, tinha-me respondido António José Almeida, a quando o interpelara. Há dois homens, um dos quais pertence ao Governo, que encarnaram esta ideia: o ministro da Guerra Norton de Matos e o comandante da Divisão Naval, Leote Rego. São duas forças. Duas tremendas vontades. Devido a eles a nossa participação tem já teatro, o que é indispensável para a multidão. O Povo só aprende olhando. A 2 de Julho foi a parada das Sociedades de Instrução Militar Preparatória. Norton Matos, o general Pereira Eça e o seu estado-maior assistem ao desfile, junto à estação central dos caminhos de ferro. O Chefe do Estado e o Chefe do Governo, com outros dos seus membros, estão na larga varanda do Nacional. A multidão delira. É um reboar de vivas e aclamações. Depois é o corpo de marinheiros, que desfila nas grandes artérias da cidade. O comandante Leote Rego passa em revista. E os senhores já viram o carinho que o nosso povo tem por essa rapaziada de blusa e boina? Não sabem porquê? É o melhor espelho da Raça para um português se mirar.
Agora temos melhor: é a 22 de Junho, a grande parada de Montalvo com as forças que se têm exercitado em Tancos. Lá estão na larga tribuna, ao lado do Chefe do Estado, os membros do Governo, os presidentes das Câmaras, os ministros e os adidos militares estrangeiros, assistindo ao desfile dos 20000 homens, que ali tiveram os seus três meses de aprendizagem. Uma aura viva de esperança refrigera a sede de todas as almas. O Exército ressurge. E depois seguem-se sem interrupção os exercícios finais dessas tropas, enquanto a Marinha de Guerra realiza, também com a assistência do Governo, os seus exercícios de combate. Mas pouco antes Afonso Costa e Augusto Soares chegaram da sua viagem à Inglaterra e à França. Por toda a parte magnificamente recebidos. A 7 de Agosto os dois ministros anunciam à câmara o resultado dos seus trabalhos no estrangeiro. Grande sessão solene a que assiste o Chefe do Estado e os ministros aliados. Já não há dúvida. Vamos entrar em guerra». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

Cortesia PortugáliaE./JDACT