«(…) El-rei não anda sendo só mecenas para a construção de edifícios,
mas deu-se em doador à casa-mãe da Ordem Jerónima das várias alfaias
necessárias ao culto: paramentos de uso, panos pintados pagos a suas expensas,
e tapeçarias do credo que tardam muito em fazer-se, e alfaias litúrgicas em metal
precioso, como a rica custódia, e até a música, pois encomendou mais de
quarenta livros de coro, enormes e todos bem iluminados, como aliás, os sete
volumes de uma Bíblia, a fazer-se na oficina de Attavanti, da Florença...
Aliás, de Itália, el-rei quer esculturas de Della Robbia, veja-se o luxo. Os da
Ordem de Cristo diziam que o lugar de Santa Maria era deles, e vai el-rei já
muito enfadado, entre gritaria e murraças na mesa, deu-lhes a casa grande, que era
a sinagoga dos judeus, e mais cinquenta mil reais de renda em foros de casas no
lugar da judiaria grande, e os tais de Cristo lá se acalmaram, fazendo agora da
sinagoga uma igreja de N. S. da Conceição, que aos judeus irrita e aos cristãos
surpreende e a N.ª S.ª parece ser de grande indiferença, pois lá a casa onde
habita é aos homens que a deve e saberá que nos homens não há assim grande
acerto nem confiança. Estes de Jerónimo vestem diferente: de hábito, túnica
branca e escapulário castanho.
Há ainda os cónegos de S. João Evangelista, os Lóios, que nasceram para
combater os vícios da sociedade, que tantos são, como é sabido, embora estes
agora nem sempre combatam e alguns até se deixam viciar. Não se pode esquecer a
gente da Ordem da Santíssima Trindade que sempre se dedicou ao resgate dos cativos;
os eremitas de Santo Agostinho e os da serra de Ossa, que são os mais recatados
de todos. De modo geral, todavia, são todos muito relaxados, acusando o abuso
das comendas, o excessivo número de fundações, e a falta de escrúpulo no
recrutamento de religiosos, isso é que é verdade. Quem o pode, defrauda o património
monástico e arruína a observância e o espírito regular. Era então arcebispo
Martinho e papa, já foi dito, o tal leão X.
O cardeal coordenava. Mas o grande escândalo da reunião foi rebentado
por um frade menor, jovem muito bem apessoado que, por ser protegido de frei
Nicolau, confessor e companheiro das pândegas de el-rei, passara a frequentar o
palácio. O frade menor, de seu nome Simão Cordovil (assim chamado pela desgraça
de um dia ter sido encontrado, por outros frades que o tomaram a cargo, menino tenro,
recém-nascido, dentro de uma alcofazita, precisamente à sombra de uma oliveira
dessas a que o povo chama cordovesas), Simão Cordovil queixara-se de queixa
segura e mostrara até os danos. Mostrara-os primeiro ao cardeal que, perante
tamanhos estragos e evidências, não pudera ficar indiferente, e depois, por
insistência, mostrara-os a toda a plateia que dele se apiedou. O trabalho feito
sobre e no frade menor fora sem dúvida bem-feito, mas doloroso e vil; há sete
dias e sete noutes que Simão Cordovil vivia de pé, chorava e orava de pé,
penitência involuntária e muito moída…
Simão Cordovil pedira ao cardeal que interviesse junto de Deus e dos
seus representantes para reparar a sua honra perdida. Pensava Simão, para logo
se arrepender de assim se desbocar em pensamento tão ingrato, que, apesar de
tudo, fora essa a vontade de Deus, estranhas vontades pode Deus às tantas
desenvolver... Perante factos tão exuberantemente factuais, o cardeal
providenciara inquérito por conta sua. Pusera bufos a coscuvilhar, pagos pela
sua própria bolsa. Ouvira em consequência relatos de bocas espantadas e
confessas que o deixaram tão de espanto petrificado como muito percorrido de
preocupações justificadas. Até ver, pelo menos quarenta mancebos, entre fâmulos
e guardas do paço, um outro frade menor e um ajudante de cozinha, esses
provados que havia pelo menos mais uma dúzia de suspeitos, para não falar de
uma trintena de donzelas incapazes de o confessar, tinham sofrido os mesmos
tratos. E a carnificina parecia não t parar tão cedo». In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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