quinta-feira, 3 de março de 2016

As Hortênsias Brancas e as Bicicletas. Rita Cerdeiros. «Minha mãe era um poço de virtudes, mas para mim permanecia impenetrável e insondável, por muito que me custasse e doesse, por mais que eu tentasse, por mais que me esforçasse por alcançá-la»

jdact

A Mãe
«(…) Muito quieta impregnava-me de silêncio para melhor lhe ouvir as palavras, e espiava-a mesmo de longe, mesmo que noutra sala. Mas de nada adiantava. A minha porta não se abriria nunca, trazendo-a de repente para a minha beira, os passos já se afastavam, a azáfama passara para o outro lado da casa e, para mim, esfumara-se. E eu permanecia deitada, entre a janela e a cama, já desanimada. Por vezes envolvia-me de música sacra e deixava que uma prece me tomasse, e de mim saísse, e seguisse viagem. Rumo a que cais, procurando que paragens? As preces soltavam-se de mim em esguichos, de outras vezes em borbotões atropelando-se, de outras ainda em soluços convulsivos e sem esperança. Era uma casa fantasma com seus passos abafados, suas vozes silenciadas, e sua penumbra clara. Anos atrás acompanhara-a nos lanches com as amigas, e isso era para mim motivo de júbilo. Ficava a olhar pala ela muito direita na cadeira, ouvindo com atenção e abanando de vez em quando a cabeça, repetindo de tempos a tempos frases compassivas e esperadas. E a outra continuava a sua ladainha interminável, e minha mãe esforçava-se por escutá-la. A empregada vinha com o tabuleiro do chá e ela bebericava, apreciava os bolos, elogiava, deixando a amiga regozijada. Aprendi com elas aqueles meneios longos de cabeça, aqueles olhares atentos que não querem dizer nada, aquele espartilho rígido em que se movimentavam, de nunca nada poder sair de limites bem estreitos, como quem engole um copo de água. Tinham trejeitos ansiosos, requebros de voz de quando em quando, e gestos compassados e previsíveis. Olhavam-me distraidamente, mas a maior parte do tempo ignoravam-me, esqueciam-se de mim em meio a tantas receitas de cozinha e pontos de crochet intermináveis. E afinal o que quereriam? Finalmente Ema queixava-se do marido que sempre a atazanava, e Clotilde falava dos filhos que tão bons alunos se revelavam. Minha mãe calava-se. Nunca da sua boca saiu uma palavra mais íntima, nunca um elogio ou uma queixa aflorou aos seus lábios, nunca um gemido lhe escapou em público. Ouvia-as e calava-se. Ouvia-as e concordava. Que redemoinhos interiores soletraria a sós consigo mesma? Acho que nunca ninguém o saberia. Havia uma ausência no olhar, uma espécie de paragem, como se tivesse suspendido no tempo a sua imagem. A imagem que lhe ficara, da mulher que, garota ainda, se vê casada. Imaginei-a sorrindo, o que me tranquilizaria e atenuaria as mágoas. Mas não consigo recordá-la com um sorriso nos lábios, como não recordo um único riso ou gargalhada. Minha mãe era assim, sempre séria, muito fechada, envolta num véu de que não se separava nunca, e que dela nos distanciava. Deve ter sorrido em pequena, nas travessuras que faz a garotada, mas nem essas travessuras consigo imaginar, como se nunca as pudesse ter tido, um dia que fora. Sempre distante, sempre séria, sempre alheada, antevendo dos dias as tarefas que a esperavam. E, no entanto, e talvez por isso, era invejada. Admiravam-lhe o porte, a compostura, a voz que não se alterava, a contenção perfeita e aparentemente adequada. Via-lhes a admiração nos olhos, ouvia os elogios à sua passagem, dava-me conta de como as mulheres a queriam imitar a todo custo, copiando-lhe os penteados e os hábitos, e ficava tão perplexa quanto extasiada. Minha mãe era um poço de virtudes, mas para mim permanecia impenetrável e insondável, por muito que me custasse e doesse, por mais que eu tentasse, por mais que me esforçasse por alcançá-la». In Rita Cerdeiros, As Hortênsias Brancas e as Bicicletas, Fenda Edições, Lisboa, 1997, ISBN 972-918-449-6.

Cortesia de FendaE/JDACT