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Anno Domini MMVII
«(…) O calculismo do mais velho assoma-lhe à boca. Não é dado
a imponderabilidades ou surpresas de última horta. Com certeza. Recolhi tudo
antes de as autoridades chegarem. A idade dele também ajudou a que encerrassem
tudo mais rapidamente, explica o mais novo com um tom frio e profissional. Perfeito.
Continuam a comer em silêncio durante algum tempo. Deste modo se percebe quem
marca a cadência da conversa, para não a rotular de interrogatório, pelo menos
nesta fase, pois este não é um almoço de confraternização ou convívio, mas uma
reunião com um plano de trabalhos bem delineado pelo mais velho. Ambos comem,
pausadamente, enchendo o garfo com pouca comida de cada vez e parando para
mastigarem sem pressa. A segunda parte do plano vai iniciar-se de imediato,
começa o mais velho. Vai ser cada vez mais exigente. Não pode haver falhas. Não
haverá, garante o mais novo, confiante. Como está a equipa? Já no terreno há
algumas semanas, conforme ordenado. Todos os alvos estão sob vigia permanente,
excepto um. Pois, pois. Óptimo. Só faltava esfregar as mãos de contente, se
fosse um homem dado a elocuções gestuais. Todas as emoções são guardadas para
si e jamais partilhadas. Porém, aquele que falta não será fácil de agarrar. E
em Londres? O nosso homem conseguiu acesso privilegiado ao alvo, explica. Assim
que eu dê o ok, o caminho será aberto. São as partes mais difíceis de
concretizar do plano. Londres e JC, informa com dureza o homem de costas para a
sala de refeições. Ainda não há sinal dele?, quer saber o mais jovem. Não. É
uma raposa velha, como eu. Mas somos obrigados a fazê-lo aparecer, caso
contrário, o plano ficará comprometido. Fá-lo-emos aparecer. Londres provocará
isso. Sim. Assim que surja, não pense, aja. Se se der ao luxo de pensar durante
um segundo que seja, quando der por si, já estará dominado por ele. O jovem não
consegue imaginar um cenário desses. Não que não esteja preparado para tudo,
mas a ideia de haver pessoas com tanta rapidez de raciocínio como ele
parece-lhe um tanto ou quanto improvável. Além, disso estamos a falar de um
velho com mais de setenta anos. Que mal poderá ele representar? Não deixa,
porém, transparecer tais pensamentos perante o idoso sentado na sua mesa, ou
antes, na mesa dele. Sei o que pensa, adverte o mais velho. Todos os seres
humanos têm fraquezas. A minha é a Igreja, a sua é a autoconfiança. É um erro.
Retire tudo isso da equação, o seu próprio ego. Só assim poderá garantir que
não falhará.
Será feito. Terá mesmo de ser. Caso contrário, não será você a
olhar para o cadáver deles. E mesmo em Londres não vai ser fácil. Tenho lá um
homem muito eficiente que abrirá o caminho para eu fazer o trabalho. Uma
ressalva antes de tudo o resto. De momento, não tenho qualquer motivo para criticar
ou censurar o seu trabalho. Cem por cento de eficácia, mas sem nunca ter defrontado
as forças que vai ter pela frente desta vez... O plano é praticamente infalível,
contesta o jovem, ousadamente. Isso não existe, argumenta o outro. Existe um
plano que tem tudo para dar certo, aliás, tem de dar certo, é essa a minha
vontade, mas infalível nem o papa. Claro, mas... Para terminar a minha ressalva,
interrompe, apenas uma pequena advertência. Espera que o jovem o fite bem nos
olhos, captando toda a sua atenção: JC foi o homem que matou João Paulo I,
em 1978 e, apesar disso, não conseguiu matá-lo em Londres. E, também ele,
nunca tinha falhado antes. O jovem absorve as palavras e queda-se pensativo
durante alguns momentos. O velho tem razão. O excesso de confiança é inimigo da
concretização. É essa a mensagem que ele quer fazer passar. Compreendi. Não
darei margem de manobra a ninguém. Também ele está ciente de que se falhar não
sobreviverá. Seja por intermédio de JC ou deste cliente frequente do
restaurante localizado em cidade incógnita, não verá o dia seguinte. É hora de
mudar de assunto, dentro do mesmo tema, seguindo a enorme abrangência do plano.
E quanto a Mitrokine?
Está tratado, responde o velho. Os meus contactos em Moscovo
estão a tratar do assunto neste preciso momento. E o turco? Deixe-o continuar
preso. Esse não faz mal a ninguém. Não se esqueça que não voltaremos a
comunicar até que o plano se conclua. Sim, compreendo. Não esquecerei. Só
falta... O Vaticano, interrompe o velho. Desses tratarei pessoalmente. Pela
primeira vez o velho esboça um sorriso esbatido. Tudo tem um início.
Wojtyla. 13 de Maio de 1981
De entre aquelas vinte mil pessoas, nenhuma saberá dizer ao
certo se chovia ou se o céu estava limpo naquele longínquo décimo terceiro dia,
do quinto mês, do ano da Graça do Senhor de 1981. Porventura, se fizessem um esforço,
pudessem afirmar com alguma dose de certeza que estava um dia de sol brilhante,
um calor primaveril aprazível, apesar de ter chovido um pouco a meio da tarde,
não muito, apenas durante cinco minutos. E, destas vinte mil pessoas, mais de
metade não se lembrará do calor primaveril aprazível, tão-pouco do sol, mas não
esquecerá a chuva, conseguirão ainda senti-la a molhar o corpo, a ensopar os
ossos, tal como no próprio dia em questão. Alguns duvidarão inclusive de que
tenha chovido somente durante cinco minutos, não, foi muito mais, cinco minutos
apenas não molham assim tanto. Mas de todas as reminiscências, estas vinte mil
pessoas não se lamentarão nem da chuva nem do sol, contudo ainda sentem a dor e
as lágrimas a escorrerem pelas suas faces, e o som agudo de cada tiro bem vivos
na mente, um, dois, três, quatro, cinco, seis, primeiro, segundo, terceiro,
quarto, quinto, sexto. E o impacto que rasgou a carne e fez chiar de mágoa as
vinte mil pessoas, tanto como a própria vítima. Disso sim, lembram-se. Que
importância tem o sol e a chuva no meio de um calvário desses? Que importam as
horas certas, se o papa podia ter morrido? Vinte mil pessoas aguardavam-no
nesse dia, na majestosa Praça de São Pedro, a sala de visitas do mundo
católico. Para aqueles eleitos pelo acaso adequava-se a máxima de ir a Roma e
ver o papa. No número magno de um bilião de fiéis católicos que, segundo o
mundo estatístico, se espalham pelo globo, apenas alguns poucos milhões poderão
dizer que já viram o papa e desses, menos ainda poderão gritar a viva voz que o
viram a uma distância identificável. E, no fim de contas, apenas um parco
número na ordem dos milhares poderá afiançar que tocou no Santo Padre ou que
trocou palavras com ele. Para a maioria, o papa não passa de uma imagem na
televisão, de uma fotografia, de uma ilusão. Para o jovem de 23 anos que
aguardava no meio da multidão, sempre com as duas mãos enfiadas nos bolsos do
casaco, o Sumo Pontífice, Karol Wojtyla, era apenas um trabalho». In Luís
Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN
978-989-813-400-4.
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