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O Algarismo e o Número
«(…) A nova arquitectura introduziu o arco ogival de dois
centros, de forma pontiaguda, e o arcobotante. Graças a estas duas soluções
técnicas, foi possível abrir aqueles grandes vãos e que o empuxo das abóbadas de
pedra já não fosse suportado directamente pelos muros, mas sim pelos
contrafortes, nos quais os arbotantes descarregavam a pressão, até então
sustentada pelas paredes. O novo estilo garantiu o triunfo da luz, ganhou a
claridade para o interior das igrejas e possibilitou a construção de naves tão
altas como nunca até então se tinha conseguido no ocidente cristão.
Henrique brincava com outros rapazes da sua idade no ribeiro
que corria no sopé da colina onde se apinhava o casario de Chartres. Os rapazitos
costumavam passar as últimas horas da tarde perto do moinho, aproveitando os
momentos prévios ao pôr do Sol, momento em que, com a chegada da noite, corriam
para se refugiarem nas suas casas. O jovem Henrique era filho do mestre João
Ruão, que havia vários anos dirigia a obra da nova catedral de Chartres. Após o
incêndio de 1194 e a destruição da velha catedral estilo românico, o
bispo e o cabido de Chartres tinham decidido construir uma nova, no triunfante
estilo da luz. Aqueles anos de fins do século XII eram na verdade muito
prósperos; havia várias décadas que não se tinha uma má colheita e, Verão após
Verão, as rendas das dioceses aumentavam sem parar. Consequentemente, que
melhor destino para as riquezas obtidas em beneficio de Deus do que dedicá-las
à construção de um templo à sua mãe? Henrique chegou a casa justamente quando o
Sol acabava de se ocultar por detrás da linha crepuscular do horizonte. O pai estava
a lavar as mãos num pequeno alguidar de barro cinzento enquanto a mãe e uma
criada faziam o jantar: talhadas de toucinho guisado acompanhadas com creme de
cebola e nabos, pão de nozes, cerveja e queijo. Amanhã vamos começar a colocar
as chaves das abóbadas do cruzeiro, comentou o mestre João. A construção da
catedral está a ir depressa, disse-lhe a mulher. Sim, muito mais rápido do que
tínhamos pensado. As rendas do cabido são em grande quantidade e o bispo está
empenhado em rezar a primeira missa quanto antes. Ainda esta manhã me disse
que, se precisar de mais operários, os contrate. Mas não são precisamente
operários o que faz falta, mas sim artistas. Há tantas obras por todo o lado
que se torna difícil encontrar escultores, canteiros e vidraceiros cujo
trabalho seja de qualidade. Paris oferece muito dinheiro aos melhores, e Reims e
Amiens não lhe ficam atrás. E depois está a Inglaterra, cujos bispos se
empenharam em construir nas principais sedes episcopais desse reino catedrais
que rivalizem com as de França e até as superem.
O mestre João sentou-se à mesa. Henrique olhou para ele com
admiração e esperou que benzesse o jantar. Enquanto o pai o fez, o miúdo pegou
na colher de madeira e começou a comer a carne guisada. Amanhã vais comigo à
obra. Eu, pai?, estranhou Henrique. Claro que tu. Tens sete anos e já vai
estando na altura de começares a trabalhar no ofício. Durante o próximo ano
aprenderás os rudimentos que qualquer aprendiz deve conhecer. A maioria dos
meus aprendizes começa a trabalhar aos doze ou treze anos, mas tu és filho do
mestre e vais fazê-lo muito antes. Dentro de um par de anos irás para a escola
da catedral. O bispo disse-me que te reservará um lugar na escola. Aí
aprenderás Matemática, Geometria, Filosofia e Latim. Vou fazer de ti um grande arquitecto;
espero que não me desiludas. Ainda não tinham acabado de jantar quando bateram
à porta. O mestre João indicou à mulher que abrisse a porta; era o irmão dele
que acabara de chegar de Paris. Irmão, irmão, consegui, consegui! O exame foi
muito duro e difícil, mas aqui está, aqui o tenho. Luís, o irmão mais novo do
mestre João Ruão, acabava de conseguir o título de mestre-de-obras num exame
efectuado perante um tribunal de mestres em Paris. Logo que recebera o diploma,
partira a galope para Chartres para comunicar a boa notícia ao irmão mais
velho, sob cujos ensinamentos se tinha formado como arquitecto. Parabéns, irmão,
nunca duvidei que o conseguirias, replicou João. Aqui o tenho!, reiterou Luís
mostrando orgulhoso o pergaminho em que o tribunal de cinco mestres lhe havia
concedido a capacidade para dirigir a construção de edifícios. Olha, sobrinho,
olha. Um dia também tu terás um parecido a este. Ainda sobra alguma coisa para
jantar, cunhada? Com a pressa, até me esqueci de comer. Claro; vamos, senta-te,
vou arranjar-te carne e queijo. E cerveja; há que celebrar. É melhor que seja
vinho, disse João. Como foi o exame?» In José Luís Corral, El Número de Deus,
2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos
Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT