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O
castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
«(…)
Dona Mécia ficou satisfeita por ver que todas as suas raparigas estavam lá ao
trabalho, reunindo em cima da grande bancada tudo o que era necessário para
começar a fazer os bolos, pastéis e outros doces que terminariam a refeição.
Dona Mécia supervisionava directamente as caldas doces que cobririam as
amêndoas e outros frutos secos vindos especialmente de várias regiões do reino.
Usava os seus muitos anos de experiência para medir as quantidades de mel,
ervas e licores que deitava na mistura e para regular a força do lume, para que
o resultado fosse a cremosa mistura doce e aromatizada que tantos apreciavam
naquele castelo. As raparigas mais novas partiam os ovos e as moças mais velhas
já mediam os outros ingredientes que eram depois misturados nos grandes
alguidares vidrados. As várias formas de cobre e ferro empilhadas a um canto
iriam ser enchidas com as várias massas de bolos, e dona Mécia já mandara
perguntar aos fornos se havia espaço livre para elas. Os padeiros deveriam
estar a tirar do forno as bases das tartes e em breve poderiam começar a recheá-las
com frutos, nozes e amêndoas. As horas passavam rápido, e já o Sol baixava
quando começa a ouvir-se o som da louça que os rapazes de serviço ao grande salão
tiravam dos armários de madeira tosca perfilados ao longo das paredes. Os
pratos de cerâmica vidrada e os canecos que cada comensal usaria eram guardados
mais perto do salão, mas dali saíam as grandes taças e travessas cheias de
comida de onde cada um se serviria e os jarros para o vinho e a cerveja, que
andavam sempre numa roda-viva para serem novamente cheios. Tudo isto era
cuidadosamente levado e colocado sobre as longas mesas de madeira que em breve
seriam ocupadas por todos os membros da corte do rei João. Damas e cavaleiros,
padres e frades, portugueses, ingleses e alguns castelhanos, todos se sentariam
a partilhar a grande ceia, aquecidos pelas grandes lareiras e rodeados pelas
longas tapeçarias que cobriam as paredes e tornavam aquele salão um espaço
confortável e acolhedor. Ainda bem que assim era, pois a seguir ao repasto
ainda muito se passaria, entre a música dos menestréis que cantavam as bravuras
do seu rei, pequenos jogos e desafios improvisados e o inevitável passinho de
dança. Toda esta animação era apreciada de perto pela mesa real, que encabeçava
todo o conjunto. Recém-casados e entusiasmados com a vida que agora começavam,
até o rei e a rainha se juntavam às danças e davam o mote para uma grande noite,
digna desta jovem dinastia que agora reinava Portugal e em breve conquistaria o
mundo.
Os
passos de dona Mécia perdem-se no tempo juntamente com as histórias de todos
quantos passaram pelo Castelo de São Jorge ao longo dos séculos. Histórias de guerreiros
e comerciantes, reis e rainhas que se conjugam no topo de uma colina com vista para
o rio. Tudo começa na Idade do Ferro, por volta do século VII a. C., quando ali
se instalam populações atraídas pelas excelentes condições de defesa e que talvez
tenham construído uma primeira muralha. À boa visibilidade que dali tinham para
o território em redor e para o Tejo, juntava-se ainda a existência de nascentes
de água, um bem precioso em qualquer época. Dali viram chegar os primeiros povos
mediterrânicos, navegadores e comerciantes fenícios e púnicos oriundos da actual
Síria e da colónia de Cartago, e que estabeleceram várias rotas comerciais no Mediterrâneo
e costa Atlântica. Apoiados por colónias e entrepostos comerciais que se encarregavam
de adquirir os produtos locais, estes recém-chegados trocavam-nos por mercadorias
que ainda hoje surgem em escavações arqueológicas em Lisboa, como as cerâmicas gregas
e fenícias. A importância comercial do pequeno porto de Allis Ubbo, a amena enseada, acabou por despertar o interesse
de um império romano em expansão e em guerra contra Cartago. Em 138 a. C., o
procônsul Décimo Junio Bruto chega a Olisipo
e usa-a como base para a sua campanha de conquista dos povos lusitanos do Noroeste
peninsular, construindo uma pequena fortificação e instalando o seu exército no
topo da colina do Castelo. Depois de conquistada a paz romana, ao longo dos séculos
seguintes a cidade imperial desenvolveu-se sobre a encosta e os vales em redor e
o topo da colina perdeu importância. Liberto dos exércitos, poderá ter sido
utilizado como espaço público civil ou religioso, que poucos vestígios deixou.
Apesar disso, foram encontradas algumas inscrições romanas reaproveitadas na construção
das paredes do paço real que depois surgiu». In Inês Ribeiro e Raquel
Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-626-706-3.
Cortesia
de EdosLivros/JDACT