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Primavera
de 1453
«(…)
A aia fez-lhe sinal com a cabeça para lhe indicar que tinha de me obedecer, ele
voltou-se e fez-me uma vénia. Eu servia o duque de Bedford, na França, quando
ouvimos falar de uma rapariga que acompanhava os Franceses, disse. Alguns estavam
convencidos de que ela era bruxa; outros, que ela tinha um pacto com o Diabo.
Mas a minha barregã…, a aia estalou os dedos na direcção dele, e ele engoliu a palavra.
Uma jovem que eu conhecia, uma francesa, disse-me que essa rapariga, Joana, de Domrémy,
tinha falado com anjos e que prometera fazer o príncipe francês ser coroado e ocupar
o trono da França. Era apenas uma donzela, uma rapariga do campo, mas afirmou que
os anjos falavam com ela e que a visitavam para protegerem o país dela de nós. Fiquei
extasiada. Os anjos falaram com ela? Ele sorriu de modo insinuante. Sim, menina.
Quando ela era uma menina, pouco mais velha que vós. Mas como é que ela fazia as
pessoas ouvirem-na? Como as levava a perceber que era especial? Oh, ela montava
um excelente cavalo branco, vestia roupas de homem, inclusive usava armadura. Tinha
um estandarte com flores-de-lis e anjos e, quando a levaram à presença do príncipe
francês, ela reconheceu-o de entre a corte inteira. Ela usava armadura?, murmurei
com espanto, como se fosse a minha vida a revelar-se diante de mim e não a história
de uma rapariga francesa desconhecida. O que é que eu poderia ser, se as pessoas
se apercebessem de que os anjos falavam comigo, tal como com essa tal Joana? Ela
usava armadura e conduzia os homens na batalha, ele assentiu com a cabeça. Eu
vi-a. Apontei para a leiteira. Trazei-lhe alguma carne e cerveja leve para beber.
Ela saiu teatralmente em direcção à despensa, aquele homem desconhecido e eu saímos
da leitaria e ele deixou-se cair sobre um banco de pedra, ao lado da porta dos fundos.
Eu fiquei à espera, enquanto ela pousou uma travessa aos pés dele e ele atafulhou
a boca de comida. O homem tragou a comida como um cão faminto, sem dignidade, e,
quando terminou. bebeu tudo o que tinha na caneca, de um gole. Eu retomei o interrogatório:
onde a haveis visto a primeira vez? Ah, respondeu ele limpando a boca à manga. Estávamos
a preparar-nos para montar cerco a uma cidade francesa chamada Orleães, com a certeza
de que iríamos vencer. Naqueles tempos, ganhávamos sempre antes de ela aparecer.
Tínhamos os arcos grandes, e eles não; nós costumávamos limitar-nos a cortá-los
em pedaços, para nós, era como apontar para os alvos no treino. Eu fui arqueiro,
fez uma pausa, como se tivesse vergonha de esticar demasiado a verdade. Eu fui seteiro,
corrige-se. Fazia as setas. Mas os nossos arqueiros venceram todas as batalhas.
Isso não é importante, e a tal Joana? Estou a falar-vos dela. Mas tendes de compreender
que eles não tinham hipótese de vencer. Homens mais sábios e melhores do que ela
sabiam que estavam perdidos. Perderam todas as batalhas. E ela?, murmurei. Ela dizia
que ouvia vozes, os anjos a falarem com ela. Diziam-lhe que fosse falar com o príncipe
francês..., um pateta, um insignificante..., que fosse ter com ele e que o convencesse
a reivindicar o trono como rei e que nos expulsasse das nossas terras na França.
Conseguiu chegar até ao rei e dizer-lhe que ele tinha de ocupar o trono e permitir
que ela liderasse o seu exército. Ele pensou que talvez ela tivesse o dom da profecia,
não sabia, mas não tinha nada a perder. Os homens acreditavam nela. Ela era
apenas uma rapariga do campo, mas vestia-se como um soldado, tinha um estandarte
bordado com flores-de-lis e anjos. Enviou um mensageiro a uma igreja, e aí encontraram
uma espada antiga de um cruzado, precisamente no lugar onde ela havia dito que estaria...
Tinha estado escondida durante vários anos. De verdade? Ele riu-se e depois
tossiu e cuspiu. Quem sabe? Talvez haja alguma verdade nisso... A minha barregã...
A minha amiga considerava que Joana era uma donzela sagrada, que havia sido chamada
por Deus para salvar a França de nós, os Ingleses. Acreditava que nenhuma espada
conseguia tocá-la. Que ela era um pequeno anjo. E como é que ela era? Uma rapariga,
tal como vós. Pequena, de olhos claros, confiante em mesma. O meu coração ficou
inchado. Como eu? Muito parecida convosco. E as pessoas estavam sempre a dizer-lhe
o que tinha de fazer? Que ela não sabia nada? Ele abanou a cabeça. Não, não,
ela era a comandante. Seguia a sua própria visão de si mesma. Liderava um exército
com mais de quatrocentos homens e caiu sobre nós quando tínhamos montado acampamento
fora de Orleães. Os nossos lordes não conseguiram levar os nossos homens a lutar
contra ela; ficámos aterrorizados, só de a ver. Ninguém se atreveu a erguer uma
espada na direcção dela. Todos estávamos convencidos de que ela era imbatível. Avançámos
para Jargeau, e ela foi atrás de nós, atacando, sempre ao ataque. Todos
estávamos apavorados com ela. Jurámos que ela era uma bruxa. Que era uma bruxa ou
que era guiada por anjos?, perguntei. Ele sorriu. Eu vi-a em Paris. Não havia nada
de cruel nela. Parecia que o próprio Deus a segurava em cima daquele cavalo enorme.
O meu senhor chamou-lhe uma flor da cavalaria. De verdade. Era bonita?, murmurei.
Eu não sou uma menina bonita, o que constitui uma desilusão para a minha mãe, mas
não para mim, porque eu elevo-me acima da vaidade». In Philippa Gregory, A Rainha
Vermelha, 2011, Civilização Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-263-013-9.
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