Cortesia
de wikipedia e jdact
A
vida de Gregório Matos
«(…)
Os costumes daqueles aldeões eram singelos; trabalhavam de sol a sol,
alongavam-se a conversar nos pátios das igrejas contando lendas e histórias sem
fim, bebiam o vinho rústico diante da lareira, tomando uma malga de sopa e
comendo uma broa feita na lenha, cuidavam das vindimas e desfolhadas, subiam os
montes, iam espiar dentro dos castros, onde se imaginava que estavam escondidos
antigos tesouros, e viviam intensamente a religiosidade cristã, com suas
festas, missas, rezas, procissões. Meninos saltavam como cabritos por cima dos
montes de folhelho, espantando galinhas. Mulheres giravam colheres nas imensas
panelas fumegantes, lavavam roupas no rio, debulhavam e pilavam. O grande
congraçamento social se dava nas festas religiosas, feiras e romarias, de origens
antigas. Ali viveram celtas, romanos, mouros, judeus, suevos, visigodos,
germânicos, que deixaram narizes e cabelos e lábios e temperamento e outros
legados aos aldeões. Os minhotos guardavam na lembrança algumas lendas que
revelavam algo de seu modo ingénuo e encantador de ver o mundo, como a de uma
princesa cristã casada com um rei mouro, que fugia para o monte Abedim, levando
sete bispos; o rei a sitiava, tentando vencê-la pela fome, mas a princesa era
salva por uma águia que lhe levava trutas, no bico, e a princesa demovia seu
esposo, mandando-lhe duas trutas que a águia lhe levara ao seu retiro. A
sabedoria da natureza criada por Deus vem salvar o Cristianismo da prisão
moura, pode ser um dos sentidos dessa lenda. Em Melgaço havia a lenda de Inês
Negra, mulher que venceu num duelo a campeã das tropas inimigas. Monção era
lugar de mulheres temerárias, que lutaram defendendo suas terras, firmes
durante o longo tempo em que foram sitiadas por espanhóis ou por franceses. Em
Gandra, onde havia muitos ratos porque se estocava milho, os aldeões
acreditavam que, se não guardassem o dia de São Pedro de Rates, teriam as casas
invadidas pelos roedores. Novamente a natureza se relaciona com o cristianismo
e a devoção, revelando uma visão religiosa em que o divino tem plena influência
sobre o quotidiano. Outra lenda, passada no século 138 a.C., em que o Lima
seria o rio do esquecimento, era uma repetição do mito do Letes, relacionado
aos sentimentos de abandono da terra natal. Quem atravessasse aquele rio
perderia a memória.
A
família Matos deixou as terras do Minho, embarcando em Viana do Castelo, de
onde haviam saído soldados e marinheiros para campanhas de África, para a
povoação dos Açores e para a saga das grandes descobertas. Os migrantes, excepto
degredados, costumavam viajar em grupos familiares, cientes de que era bem mais
difícil para alguém sozinho vencer uma terra desconhecida. Não sabemos exactamente
o que levava cada família a imigrar para a colónia, mas a Bahia representava
uma possibilidade de enriquecimento; eram muito comuns os casos de gente
tangida pela pobreza ou pela ambição, com espírito de aventura, embora alguns
viessem ao Brasil para ocupar cargos ultramarinos, realizar negócios, fugir a
alguma perseguição, para cumprir pena, ou com a ideia de se estabelecer no
comércio. Portugal não tem outra região mais fértil, mais próxima, nem mais
frequentada, bem como não encontram seus vassalos melhor e mais seguro refúgio
do que no Brasil. O português atingido por qualquer infortúnio para lá emigra. Também
havia a crença de ser o Brasil uma terra que dava condições de longevidade, e
era frequente virem senhores idosos, ou com saúde debilitada, condenados a
poucos anos de vida, que aqui chegando se tomavam de vigor, vivendo mais vinte
ou trinta anos. E avultavam as figuras heróicas que tomavam navios e partiam,
admiráveis navegadores, fidalgos que atravessavam terras e mares para lutar,
mercadores lendários que corriam desertos, reis viajantes; toda uma mitologia
de aventuras pelo mundo desconhecido dignificava e cobria de nobreza o acto de
partir. Apesar da ideia de ser o Brasil uma terra de degredo, para onde se
enviavam os indesejados, os condenados, a ralé, os portugueses sabiam que aqui
se instalava uma sociedade mais aberta e permeável, com grandes possibilidades
de arranjos e maior liberdade, sem a vizinhança das instituições repressoras. A
imigração vinda de Portugal no século XVII era intensa. … uma testemunha
ocular da Bahia conta que todos os navios chegados do Porto e das ilhas
atlânticas da Madeira e dos Açores traziam, pelo menos, oitenta camponeses para
o Novo Mundo. Dez anos mais tarde [1680], um escritor anónimo, possuidor de
ampla experiência quanto ao Brasil, assegurava que todos os anos, aproximadamente
dois mil homens provenientes de Viana, Porto e Lisboa, emigravam para
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. As mulheres brancas não emigravam na mesma
proporção, mas, fosse como fosse, maior foi o número das que fizeram aquela
curta e segura travessia com seus homens do que o das que se aventuraram aos
longos e perigosos seis meses de viagem para a Índia.
Embora
não haja estatísticas acerca dessa emigração, há indícios seguros de que a maioria
dos emigrantes vinha de províncias do Entre-Douro-e-Minho, de Lisboa, e das
ilhas da Madeira e dos Açores. No Minho, região coberta de plantios, não havia
terra suficiente para a densa população. Alguns chegavam ao Brasil para
trabalhar na lavoura como pequenos proprietários de terras, outros como
oficiais mecânicos, carpinteiros, pedreiros, ferreiros; mas todos estes, assim
como os lavradores, logo que podiam compravam africanos para os trabalhos e se
tornavam senhores. Os que tinham alguma instrução tornavam-se caixas,
escriturários, vendedores ambulantes ou balconistas, trabalhando por conta
própria. Empregados assim que chegavam, com frequência pobres e esfarrapados,
através de algum parente ou conhecido que emigrara antes e já se estabelecera,
conseguiam eles, habitualmente, reunir modestos haveres, se fossem industriosos
e poupados. Os que mais sucesso tinham, casavam-se, quase sempre, com a filha
do seu patrão, ou com alguma jovem do lugar. Veremos que a família Matos se
destacou nessa grande leva de aventureiros, e se enraizou, enriqueceu, mesmo
tendo de aprender a conviver com uma justiça corrompida e ineficiente, impostos
escorchantes, moeda e produtos escassos, monopólios reais, contrabando,
burocracia emperrada, falta de apoio e crédito para empreender, opressão
religiosa, e costumes relaxados». In Ana Miranda, Musa Praguejadora, Editora
Record, 2014, ISBN 978-850-106-602-2.
Cortesia
de ERecord/JDACT