«(…) Na falta de fontes diplomáticas que nos informem sobre o
assunto, a questão só pode ser examinada à luz da crítica textual das fontes analíticas
e dos textos narrativos. O trabalho que apresento divide-se em duas partes. A
primeira é dedicada ao estudo da Vita Theotonii, escrita
cerca de 1162, que creio ser a fonte
mais antiga a fazer referência à data de nascimento de Afonso Henriques. Na segunda
parte, são examinadas as duas tradições que a partir dessa mesma fonte surgiram
relativamente ao mesmo facto. A primeira tradição é representada pela Translatio
et Miracula S. Vincentii, pelo Indiculum Fundationis Monasterii
Beati Vincentii Vlixbone, escritos ainda no século XII, e pelo texto
perdido de um martirológio da Sé de Lisboa. A segunda encontra-se representada
pelo De expugnatione Scallabis e pelos Annales D. Alfonsi
Portugalensius regis, ambos escritos por volta de 1185, e ainda por dois testemunhos dos Annales Portucalenses
veteres de 1168 (perdido): o Livro de Noa I
e os Anais Lamecenses. Serão sempre transcritas as fontes nas
partes que considero essenciais, submetendo-as a um trabalho de crítica
textual. Finalmente, fazendo uso de um stemma da transmissão das várias
tradições, uma síntese das conclusões deste trabalho.
A Vita Theotonii
O único manuscrito latino da Vita Beatissimi Domni
Theotonii primi prioris monasterii sanctae crucis colimbriensis é um texto
da segunda metade do século XII, com o nº 29 da velha catalogação dos
manuscritos provenientes do Mosteiro de Santa Cruz, que se encontra na
Biblioteca Pública Municipal do Porto. De autor anónimo, mas discípulo do
biografado, exprime a saudade causada pela morte do primeiro prior de Santa
Cruz. A não referência à canonização do santo, e o facto de não mencionar
quaisquer acontecimentos miraculosos ocorridos depois da morte do primeiro Prior
de Santa Cruz, são argumentos que levam Aires Nascimento a supor que esta
hagiografia possa ter sido redigida no período compreendido entre a data em que
morreu e a data em que foi canonizado, que teria ocorrido no primeiro
aniversário da morte do prior. Esta é uma das razões para dedicarmos especial
atenção às datas da morte e da canonização de São Teotónio. A outra é,
como veremos, a relação que se estabelece no texto, entre a data da morte do
nosso primeiro santo e a data de nascimento do primeiro rei. Antes, porém, de
examinar o passo que nos interessa, convém averiguar os usos do cômputo
adoptados no scriptorium de Santa Cruz. O prior Teotónio
nasceu no Alto-Minho, no lugar de Ganfei. No início da adolescência foi levado
para Coimbra pelo seu tio materno, Crestónio, bispo de Tui, quando este foi
transferido para a diocese de Coimbra (1092-1098). Frequentou a escola capitular,
sob a orientação de Telo, arcediago da mesma Sé. Depois da morte do tio seria
nomeado administrador da Diocese de Viseu, então confiada à administração da
Diocese de Coimbra. Em Viseu, Teotónio vem a ocupar o lugar de prior por
insistência do bispo Gonçalo (1109-1128). Por volta de 1121, abandona o cargo para fazer uma
peregrinação a Jerusalém6. Faria ainda uma segunda peregrinação, antes de ser
convidado por Telo para fundar a nova comunidade de Cónegos Regrantes de
Santo Agostinho, tendo sido nomeado primeiro prior do Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra.
Os usos cronológicos
de Santa Cruz e a data de fundação do Mosteiro. Na Vita Tellonis
O arcediago Telo é o fundador do Mosteiro de Cónegos Regrantes
de Santa Cruz de Coimbra. O acto fundacional vem descrito na Vita
Tellonis, escrita talvez antes de 1155.
Embora não seja uma fonte directa no âmbito do nosso estudo, ela é importante
para o conhecimento dos usos cronológicos adoptados pelos cónegos e
consequentemente para a interpretação das datas contidas na Vita
Theotonii. O primeiro problema coloca-se a respeito do uso da indicção e do estilo relativo ao começo do ano. Na Vita Tellonis refere-se
que: no ano de 1131 da
Incarnação do Senhor, oitava indicção (…), o arcediago Telo, agregando a si uma
falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze Apóstolos,
começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrabaldes de
Coimbra. Recorde-se que no estilo da Encarnação ou da Anunciação o ano começava
a 25 de Março, mas há uma diferença de um ano entre a contagem segundo o
cômputo de Pisa e o de Florença. Tomando o ano da encarnação de 1131, este, segundo o cômputo de Pisa,
começaria a 25 de Março de 1130,
enquanto pelo cômputo de Florença começaria a 25 de Março de 1131. Qual dos dois cômputos é que devemos considerar? A pista
deixada no próprio texto, relativa a esta questão, é-nos dada pela indicção. Recorde-se
que a indicção era um período de 15 anos usado em Roma para marcar a cobrança
dum imposto e mais tarde empregado nas Bulas Pontifícias, mas que apresenta
a dificuldade de haver variantes quanto ao começo da sua contagem. Note-se que
a bula Desiderium quod de 26 de Maio do ano da encarnação de 1135 refere a 12ª indicção. A sua
contagem é consistente com a indicção grega, com o seu ponto de partida a 1
de Setembro do ano 313 d. C., que mereceu a preferência dos papas do ano de
584
a 1147. Os quatros anos que separam a data da fundação do mosteiro da
data da bula têm correspondência nas quatro indicções que separam as duas datas».
In
Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção
de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
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