Resumo
«Apesar do desafio
aliciante que sempre constitui um enigma, a contradição das fontes mais antigas
sobre a data de nascimento de Afonso Henriques nunca foi devidamente estudada,
por não se considerar o assunto suficientemente relevante para a história,
pouco interessada com a averiguação isolada de factos do passado. Não é de
estranhar, assim, que este artigo surja à margem da historiografia
profissional, apesar de ter sido a recente publicação da biografia do rei
Afonso Henriques que veio renovar o interesse pelo facto. Este trabalho
propõe-se revisitar as fontes coevas à luz da crítica textual. Pretende-se
demonstrar que a Vita Theotonii, sendo a fonte primordial, contém já
em si os vestígios do «pecado original» donde procede a confusão acerca da data
de nascimento do nosso primeiro rei, que perdurou até aos nossos dias. A
finalidade explicitada acaba assim por se tornar um pretexto para uma reflexão
mais ampla sobre os problemas da transmissão textual».
A data de nascimento de Afonso Henriques. Introdução e enquadramento do estudo
Siquidem
mortuo patre suo Comite Domino Henrico cum adhuc ipse puer esset duorum aut
trium annorum (Chronica Gothorum) Pois ao tempo que seu pay o cõde
dom Anrrique faleceo, elle principe dõ Afonso ficou em idade de seys annos (Ásia
de João de Barros)
No ano em que as cidades de Viseu, Guimarães e Coimbra
comemoraram os 900 anos do nascimento de Afonso Henriques, podemos
constatar a importância que estas três cidades colocaram na reivindicação do
fundador da nacionalidade. O confronto entre elas lembra o de várias mães
disputando a mesma criança. À alegria da primeira em acolher o filho que não
sabia que tinha, responde a segunda, dramatizando a perda de um filho que
sempre considerou seu, e a terceira, resignada com a partilha do filho com as
outras duas. Perante estas exacerbadas paixões, o Presidente da Republica demarcou-se,
com evidente sensatez: Às dúvidas dos historiadores, respondemos, e basta:
viu a primeira luz em terra que tornou Portugal e, afortunadamente, nasceu
quando foi necessário. Curiosamente, apesar de todas as polémicas, as
comemorações dos 900 anos sobre o nascimento do primeiro rei português
coincidiram quanto ao ano da sua realização. A mesma data serviu ainda de
pretexto para a realização do colóquio internacional Afonso Henriques: em
torno da criação e consolidação das monarquias do Ocidente Europeu (séculos
XII-XIII), Identidades e liminaridades, realizado na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, de 14 a 16 de Dezembro. Na conferência de
abertura, José Mattoso começou por informar que tinha voltado à história
para escrever a biografia de Afonso Henriques, pelo dever moral de preencher o
lugar vazio deixado por Luís Krus, e que aproveitava a oportunidade para
esclarecer a sua posição acerca da data de nascimento de Afonso Henriques.
Referiu a tradição do nascimento em Guimarães, passando pela posição de
Torquato Sousa Soares, que propôs Coimbra, até à de Almeida Fernandes,
em Viseu, Agosto de 1109. Continuou afirmando que a demonstração
deste lhe pareceu credível, mas que não fez investigação sobre o assunto.
Considerou, contudo, que A. Fernandes preocupou-se pouco com a data. A hipótese
de Viseu dependia assim do ano, dada a contradição das fontes. Só haveria
certeza se dona Teresa tivesse permanecido sempre em Viseu, entre 1106
e 1110. José Mattoso, lamentando não o ter dito anteriormente com
clareza suficiente, afirmou peremptoriamente: Não considero encerrado o
problema da data e local.
Os problemas em história devem ser definidos pela ordem
cronológica dos testemunhos a interpretar como fontes do conhecimento do
passado. Este trabalho analisa o problema da determinação da data de nascimento
de Afonso
Henriques, a partir das fontes coevas. Mas será possível explicar informações divergentes entre fontes
igualmente credíveis? Estamos conscientes que este é um processo
complexo e, à partida, de eficácia duvidosa. Se o conseguirmos, estaremos no
bom caminho para se encontrar a data de nascimento de Afonso Henriques. Caso
contrário, podemos estar perante um problema insolúvel. Optei por seguir um
processo iteractivo, procurando ajustar cada item de informação à seguinte como
se tratasse de um cubo de Rubik. Como no famoso quebra-cabeças
tridimensional, a construção não seguiu um processo linear, sendo necessário
refazer as faces do problema várias
vezes, até chegar a uma combinação que me pareceu adequada. Procurei justificar
cada movimento, cada conjugação
diferente que fui fazendo, em autoridades,
mas também escrevendo aos autores, tendo obtido um número muito significativo
de contribuições directas, numa manifestação de abertura que me surpreendeu
positivamente, encorajando-me a prosseguir com o trabalho. A todos eles
agradeço a colaboração. Queria mencionar especialmente José Mattoso pela
sua disponibilidade, pelos seus ensinamentos e pela sua orientação nesta minha
incursão pela sua floresta medieval,
para a qual não estava preparado. Perdoe-me o historiador insigne por escrever o
seu nome neste tosco trabalho, composto até na mesma linguagem dos velhos
cronicões. Como é evidente, as conclusões apresentadas são da minha inteira
responsabilidade e os pressupostos em que me baseei, em alguns casos, não são
unanimemente aceites. Em algumas questões de pormenor, poucas, em que manifesto
a minha discordância, procuro fundamentar as razões subjacentes. Embora me
pareça que os resultados obtidos reforçam os pressupostos de que parti, não
deixam de depender deles, nomeadamente no que respeita à datação crítica das
fontes. Com outros pressupostos, as conclusões poderiam ser diferentes». In Abel
Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção
de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
Cortesia de Medievalista/JDACT