Cortesia
de wikipedia e jdact
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Em primeiro lugar, por meio de uma cuidadosa comparação textual das três
versões mais extensas, a IV Crónica
Breve, a Crónica de Veinte Reyes e o Livro de Linhagens, procura
reconstituir, tanto quanto é possível, a versão primitiva da obra em que se basearam
essas mesmas versões, aperfeiçoando, assim, o trabalho ensaiado outrora por
António José Saraiva apenas para as duas primeiras. A reconstituição de Filipe
Moreira passará, sem dúvida a ser usada como a versão canónica, digamos assim,
daquilo que o seu autor chama, com razão, a Primeira
Crónica Portuguesa, título que tem a vantagem de simplificar o criado
por Diego Catalán. Os historiadores e filólogos interessados por estes temas
agradecerão, sem dúvida, o facto de assim poderem dispor de um texto seguro e
fiável. Em segundo lugar (é este, a meu ver, o principal mérito da obra),
Filipe Moreira circunscreve, de forma mais fundamentada e completa do que até
aqui, o efectivo conteúdo do mesmo texto. Com efeito, até agora, as atenções
concentravam-se sobre a estória de Afonso Henriques. Poucos foram os autores
que se interessaram pelas notícias da IV Crónica Breve acerca de Sancho
I e dos reis seguintes. Filipe Moreira, a meu ver com razão, demonstra que
estas informações faziam já parte integrante da obra primitiva. Todavia, a sua
reconstituição incide sobre um texto cujo conteúdo não vai além da morte e
sepultura de Sancho II em Toledo. A reconstituição formal da Primeira
Crónica Portuguesa infunde-lhe, assim, uma coerência e uma especificidade que
até hoje não tinham sido percebidas. Torna-se inevitável considerá-la como uma
obra redigida na corte régia. O teor e a forma da mais longa notícia de todas
(embora com escassas 20 linhas…), acerca da deposição de Sancho II, para além
das consagradas a Afonso Henriques, confirmam essa mesma origem. Com efeito, o
ponto de vista favorável ao conde de Bolonha e o relevo dado ao clero na
exposição dos factos tendem a legitimar a sucessão do rei deposto, o que só pode
ter acontecido em ambiente cortesão criado pelo triunfo de Afonso III. Ora
estes dados permitem alterar a opinião comum segundo a qual a obra de que a IV
Crónica Breve deriva teria sido redigida em meios senhoriais. Eu próprio admiti
essa tese, como a mais verosímil dentro das alternativas possíveis, tendo em
conta que se admitia datar dos anos 40 do século XIV. Trata-se também de uma
questão a aprofundar.
Por
último, Filipe Moreira procura demonstrar, sem todavia transformar a sua
argumentação em tese, que se trata de um texto com uma inegável unidade. Na sua
opinião, as hipóteses anteriormente avançadas em favor de uma origem compósita,
nomeadamente a consideração separada das quatro sequências que tratam de Afonso
Henriques (a morte do conde Henrique, as lutas contra dona Teresa e Afonso VII,
o Bispo Negro e o desastre de Badajoz), não invocam argumentos
suficientes para negar a coerência global da narrativa. Pelo contrário, diz o autor;
os indícios de unidade redactorial prevalecem sobre os que apontam para a
origem independente das quatro sequências. Não vai até ao ponto de admitir essa
possibilidade, mas o que lhe interessa é demonstrar a unidade e coerência da
obra no seu conjunto. Tendo sublinhado os pontos em que me parece que a obra de
Filipe Moreira constitui um efectivo avanço em relação ao estado de
conhecimentos anterior, não deixarei, porém, de manifestar a minha discordância
em alguns pontos, ou as minhas dúvidas acerca de problemas que me parecem
insuficientemente esclarecidos. Comecemos pelos últimos.
A
tese de António José Saraiva a respeito do carácter épico do texto que
intitulou Gesta de Afonso Henriques está hoje desacreditada. Como autor
do artigo a ele consagrado no Dicionário de Literatura Medieval Galega e
Portuguesa, devo lembrar que já nessa altura manifestava dúvidas a respeito de
tal classificação, remetendo todavia o leitor para a leitura da obra de
Saraiva. Na verdade, durante as décadas de 1920 a 1950 a autoridade de Ramón
Menéndez Pidal acerca da literatura épica castelhana e da sua relação com a
historiografia hispânica medieval exerciam tal fascínio sobre os medievalistas,
que se procuravam por toda a parte vestígios de cantares de gesta. Sabe-se
hoje, porém, que muitas narrativas medievais recolhidas por obras de outros
géneros têm origens muito variadas. Aceite-se, pois, sem dificuldade, a
classificação da estória de Afonso Henriques como simples narrativa. Mas não basta a classificação deste texto para
desprezar o problema da sua origem. Com efeito, nem todos os argumentos de
Filipe Moreira para o secundarizar me parecem justos. As reminiscências das
lutas entre clero de simpatia ou origem moçárabe contra o clero de observância
romana, institucionalmente prolongadas pelas violentas controvérsias entre a
comunidade de Santa Cruz, simpatizante do primeiro, e os cónegos da Sé,
representantes do segundo, criaram em Coimbra um ambiente que não é lícito
ignorar se se pretende conhecer o sentido do episódio. Todavia, o teor da
estória tal como é relatada na Primeira
Crónica Portuguesa (não hesito em adoptar este título) manifesta uma
origem não clerical; o seu autor não parece conhecer suficientemente as
instituições eclesiásticas para utilizar o vocabulário adequado, e interpreta o
conflito dando um sentido simbólico aos pormenores escolhidos. Mas seria um
anacronismo atribuir-lhe um pensamento anticlerical. Neste ponto discordo por
completo da opinião de Filipe Moreira. O papel negativo cabe ao papa e aos seus
representantes; não ao clero português ou coimbrão no seu conjunto. Também não
me parece de modo algum que a escolha desta narrativa se destine, na mente do
redactor, a completar uma definição da autoridade do rei para com a primeira
das três ordens. Com efeito, na opinião de Filipe Moreira, depois do
episódio em que o conde Henrique, moribundo, recomenda ao filho que seja companheiro
a filhos d’algo e faça honra aos concelhos, fora definida a sua
autoridade para com a segunda e a terceira das três ordens; faltaria
marcar a sua supremacia para com o clero. Acontece, porém, que não consigo
descobrir nenhum vestígio de tipo redactorial para sustentar tal tese. Pelo
contrário: se não me parece haver dúvida que o papel do rei para com os nobres
e os concelhos, tal como é definido no princípio da primeira sequência, se inspira
no princípio de que deve haver uma verdadeira partilha de funções e um
exercício do poder condicionado pelos privilégios dos nobres e a autonomia
relativa dos concelhos (e não numa autoridade absoluta do rei sobre eles), já o
relato do seu comportamento para com o clero tem um sentido muito diferente.
Com efeito, o narrador, atribui a Afonso a plena autoridade (isto é exercida
sem prévia consulta dos representantes da primeira ordem) sobre a
escolha do bispo, e não hesita em ameaçar de morte o legado papal, reclamando
assim uma posição acima do próprio papa. Não há, pois, nenhum paralelismo entre
o sentido da primeira sequência do texto e o sentido da terceira. O conceito de
poder régio é completamente diferente nas duas secções do texto. Para mim é,
pois, evidente que a Crónica se baseou em narrativas diferentes e procedentes
de meios socais distintos». In José Mattoso, A Primeira Crónica
Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Número 6, 2009, Instituto de Estudos
Medievais, Lisboa, ISSN 1646-740X.
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