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Filosofia e espiritualidade em S. António de Lisboa
«(…) Em todo o caso, para Santo António, como escreve no Sermão de
Domingo
de Pentecostes, o amontoar de riquezas não é mais do que amargura de tribulação
e de dor [...] o estrume reunido em casa exala mau cheiro, disperso, fecunda a
terra. Também as riquezas, quando se acumulam sobretudo do que não é seu, mas
do alheio, geram o mau cheiro do pecado e da morte. Se porém são dispersas
pelos pobres e restituídas aos próprios donos, fecundam a terra do espírito e
fazem-na frutificar. Na realidade, o ideal de pobreza interior, que acentuava a
humildade e, sobretudo, o ideal de fraternidade, no âmbito da relação com os
outros, prolongava-se num ideal de pobreza exterior, num quadro em que a
abertura à exterioridade, caracteristica do franciscanismo, não transfigurava o
amor às pessoas e ao conjunto das criaturas no apego à posse das coisas. Devemos
incluir aqui, como dissemos, as intensas críticas que dirige à riqueza dos
prelados e altos dignatários da lgreja, criticas nas quais se palpa a reivindicação
de autenticidade da vida religiosa, sobretudo no que se refere à dignidade da
vida dos prelados no âmbito de um vincado exemplarismo. Importa no entanto
vincar que os textos em que Santo António expressa essas mesmas críticas de
forma violenta e contundente não se destinavam a ser lidos perante as massas de
fiéis, mas constituíam, tal como a globalidade dos seus sermões, textos
destinados aos clérigos, a fim de que, tomando-os como base, elaborassem os
seus próprios sermões. Por outro lado, este tipo de crítica não era raro nos
sermonários da época, como justamente diz Gama Caeiro em referência aos sermões
universitários de Paris. Exemplo bem característico dessa sua dimensão
profundamente crítica é o Sermão do Nono Domingo Depois de Pentecostes, onde se
refere à terra que estremece com a insensatez dos que chegam à abundância, nomeadamente
os prelados da Igreja, saturados de alimento, gulosos e luxuriosos, de quem se
escreve nas parábolas: o que ama mesa lauta e o vinho não enriquecerá, a
saber com os bens espirituais. Também as cátedras eclesiásticas, diz Santo
António, não se devem amar como um fim, pois mais não são do que um ofício, ou
seja, um cargo que se exerce em favor de alguém e em nome de alguém, exigindo
por isso humildade e contenção. Não é a cátedra que existe para servir o
prelado mas o prelado para servir a dignidade da cátedra. Devem por isso os
altos prelados da Igreja ter consciência de que os bens da Santa Igreja não
pertencem aos ricos mas aos pobres, acautelando-se para que os prelados, com
o mau exemplo da sua vida não venham
a expulsar os fiéis do ninho da fé. Vimos como esta dimensão do
pensamento antoniano emerge da abertura solidária e fraterna aos homens, mas
essa interioridade extrovertida faz-se também em relação à natureza
física. Neste âmbito Santo António situa-se na continuidade de pensamento platónico
e agostiniano. A vertente criacionista que informa o seu pensamento vincará a
contingência das criaturas, não apenas quanto aos modos de ser ou à
substancialidade dos seres de acordo com os seus diferentes graus de participação
no inteligível da forma ou da ideia, como em Platão, mas sim uma contingência
mais radical, abarcando a própria existência dos seres, ou seja, uma
contingência que nos afirma não só que um ser poderia não ser tal qual é, mas
que, para além disso, poderia não existir. Nestes termos, a relação entre Deus
e as criaturas coloca-se ao nível da sua criação e também da sua conservação,
determinando o aparente paradoxo da inexistência de distância entre Deus e as
criaturas, mas da existência de uma distância infinita entre as criaturas e Deus,
ou seja, Deus está presente na natureza, mas a natureza não é Deus. Abre-se
aqui a possibilidade de uma leitura simbólica do livro da nafirreza, que nos
permite aceder ao conhecimento dos atributos do seu autor, desse modo
estruturando uma relação entre natureza, homem e Deus, na qual a natureza,
existindo para o homem, no âmbito do finalismo utilitário das criaturas, não se
reduz a um mero instrumento dos seus desejos de apropriação». In
Pedro Calafate, Metamorfoses da Palavra, Estudos sobre o pensamento português e
brasileiro, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998.
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