Madrugada. Os Pássaros da Bonança
«(…)
Dona Paula vai até à porta que dá para a capela certificar-se de estarem sós, com
o pretexto de ver se Sua Senhoria ordena alguma coisa. Começa por intriga-la a diferente
concentração que lhe nota, a rezar de cabeça meio levantada ligeiramente inclinada
para a esquerda, como se quisesse dar por tudo o que se passa à volta, mas
entende que é melhor não lhe interromper as orações. Torna à sacristia,
confiante, tomando o lugar no assento. Frei António arranjou entretanto o seu, um
caixote virado ao contrário que experimenta, divertido. Comentam agora a célebre
carta de dona Luísa Sigea ao papa Paulo III, sobre as regras da boa conversação,
o poema Sintra, os elogios à Senhora Infanta, o agrado que deu tanto ao
Santo Padre como a toda a corte pelo conteúdo, pela elegante fluência da
escrita. Divergem ainda sobre outros assuntos, a conversa animada a esquecer o correr
do tempo.
Frei António partilha alegremente
a cultura que vem adquirindo, sabe dosear a informação. Cada interlocutor é um universo
de formas de expressão, um cofre de intenções, e ele aprendeu a saber transmitir
o equilíbrio entre o que espera cada um e o que lhe é devido. A uma dama como
dona Paula, à mui nobre Infanta dona Maria de Portugal, pode abrir o coração sem
medo. Mas ainda que muito tenha ouvido a quem o ensina, e tenha paru dizer a quem
o ouve, com ninguém se atreve a falar mais do que convém. Bem sabe que o seu natural
encanto inspira sempre simpatia e não contando embora para a salvação das
almas, muito acrescenta ao brilho intelectual e até à falta dele, porém o
comedimento é uma das maiores virtudes e muito lhe tem aproveitado saber
usá-lo.
Sua Senhoria também se esqueceu deles,
em busca da concentração que tarda em chegar. Não é a piedosa postura das imagens
que lhe prende a atenção mais dó que o costume. Nem o fino debruado de talha à volta
da capela-mor. Será a mesa vestida com a toalha branca de finíssimo linho?...
Por ela se levanta logo que sua dama recolhe à sacristia. Passa os suaves dedos
pelo tecido bordado feito sobre uma das estampas, heiligen, de xilogravuras
vindas da Alemanha. Este motivo de S. Cristóvão a passar um rio com o menino ao
colo, chegou a desagradar à rainha por fugir à representação angelical das mais
v.ulgares. Mas depois, apesar da resistência aos elementos de forte inspiração
oriental, dona Catarina elogiou fartamente a obra acabada. Sua Senhoria analisa
cada pormenor, contente da escolha acertada do desenho, do mérito das bordadeiras
do seu paço. Porém conclui que não é a toalha que lhe tira a concentração, é uma
desconfiança...
Retrocede até à primeira fila de bancos,
do lado direito do pouco largo transepto. Ajoelha, de novo, sem saber porque não
flui a oração. Pensamentos desencontrados, ideias esfiapadas, já tinha dado por
elas, ainda que há pouco o passeio na muralha lhe trouxesse profundo ânimo, como
sempre. São tão gratos esses minutos ao raiar da aurora, ausência de ruído mas não
silêncio total, a discreta musicalidade da manhã em tons pastel, chilreios de pássaros
que agitam a copa das árvores antes das pessoas acordarem... Nenhum outro
momento lhe diz tanta paz, ao mesmo tempo que a inibe de expressão verbal
inteligível. Então porque é hoje tão débil a vontade de rezar?» In
Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, 2006, Saída de Emergência, 2006, ISBN
972-883-940-5.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT
JDACT, Camões, Maria Helena Ventura, História, Literatura, A Arte, MLAC, MLCT,