«(…)
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio [...].
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas. (HELDER, 2004)
Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. (Ibid.)
Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz. (Ibid.)
Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu
suicídio
a bater com os nós dos dedos pelas paredes [...]
e foi-se vendo pelo seu rosto que não era fácil tomar a cargo
a coruscante caligrafia do mundo
mas ele tomou-a até onde pôde e o corpo era já
o outro lado da agonia um texto monstruoso que se decifrava
apenas a si próprio (Ibid.)
Eu poderia contar gemeamente duas
histórias: uma afro-carnívora, simbólica, a outra silenciosa, subtil,
japonesa. De cada uma delas acabariam por decorrer um tom e um tema. A história
carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeita uma tribo que sepultava
os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o
nome do povo: baobab, devoravam os
cadáveres, deles iam urdindo a sua
própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se
nas transmutações gerais: a morte levava
o nome, e o nome,
activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo
das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento
das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. (HELDER, 1985)». In João P.
Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.
Cortesia de FCSH/JDACT
JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,