Crónica dos idos
«E eu vi deles a primeira dinastia.
Tinha-se muito recta pela madrugada e velava. Os céus estavam cerrados alto e os
ginetes faziam outras pequenas nuvens pelas narinas, fora do horto da ermida, casqueando
manso nos penedos seu sono de pé, enquanto eles lá dentro velavam seu sagrar-se
à desmesura, a sempre nova guerra.
Virgens, o olho à escuta e raiado
de sangue, os tão novos passavam a mão nos peitos luzidos de orvalho, ainda só disso,
e esperavam, montariavam golpes lá no rosar das nuvens do clarear, estremeciam no
dentro do dentro da sua novidão, Passavam a água em barros e pão ázimo, queriam
suster e viam e ouviam, sua língua de argila, os sons de muco e chão. Vos digo
claramente que não sabiam que nada, era só um mais ser, a princesia, ir descendo
nas terras um coro de ser eu.
De ferros, de burel, estamenha e lã
cardada, de patas e pés nus só enrolados, traça da mão e cuspo em tudo e tudo, eu
vi o punho cheio a pôr-se em terra, a inteirar-se. Ninguém não era irmão e era cedo.
Como do cru ao cru, todo o ar era tenro. Bestas e gente tinham cheiro, gemia um
só vagido e era a língua, o rude afago dela. Cera silvestre neles, bosta quente,
coalhado leite, dedos sem escrita, mãos de derramar. Todos eram primeiros, grossos,
unos.
Mais vi: as casas, os caminhos e as
fontes, o gado são, entrarem pelas barcas ao meio-dia. Vi os segundos como corvos
e tudo tendo a medo, conservando. Tinham seus paços postos sobre estacas e em baixo
eram o ouro fosco e a pimenta grumosa, restos de maresia, o agougar dos
caranguejos. Vi-os de negro e chapelão maldizerem as águas e os ares, montados sobre
as mais altas pontas de terra, espumando ao mar as suas próprias espumas. Vi as
mulheres, a enegrecer de trapos o todo corpo delas, gementes e chorantes em
nome de uns nomes ou de outros.
E vi-os engodar a própria morte, tecer
vaidades dela. E' ouvi a antiga renegada faladando vozes de mando por cima desses
brados altos. Até que se deitaram pelo chão, pelas terras todas e ficaram à escuta
do seu ronco. Até que se deitaram para as águas cuspindo os dentes e mordendo
as redes. Vi-os erguerem-se e só comerem estevas e roerem as mãos até aos punhos
para de novo ter nome.
Mais vi as armas que empunhavam, os
chuços e ancinhos para sempre. Vi-os ir de uma a outra casa, sempre sagradas santas,
a demandar caminhos, sem ninguém que ficasse em nome deles. Puseram-se então a triturar
o membro a todos os meninos, para que não fossem mais Por sobre a terra.» In Maria
Velho da Costa, Cravo, 1976, Morais Editores, 2024, Porto Editora, Assírio
& Alvim, ISBN 979-972-572-579-5.
Cortesia de A&Alvim/JDACT
JDACT, Maria Velho da Costa, Liberdade, 25 de Abril, Narrativa,