«Às nove da noite estávamos mortos de cansaço. Glauser-Róist localizara algumas pobres referências às cicatrizes. Explicou-me, que tentou uma pesquisa religiosa circunscrita a uma franja da África Central na que, por desgraça para nós, não ficava a Etiópia. Nessa área, pelo que entendi, as tribos primitivas se acostumaram a friccionar com certa mistura de ervas as incisões da pele, feitas geralmente com umas pequenas canas tão afiadas como facas. Os motivos ornamentais podiam chegar a ser muito complexos, mas, em essência, respondiam a formas geométricas de simbologia sagrada, muitas vezes com relação a algum rito religioso.
Isso é tudo...?
Perguntei desenganada, ao vê-lo fechar a boca após o exíguo relatório. Bom, há
algo mais, mas não é importante. Os queloides, ou seja, as cicatrizes mais
grossas e avolumadas são um autêntico atractivo sexual para os varões quando as
mulheres as exibem. Ah...! Respondi com um gesto de estranheza. Isso tem graça!
Jamais me teria ocorrido.
De modo que...
Prosseguiu indiferente. Que continuamos sem saber por que essas cicatrizes
estão no corpo desse homem. Acho que foi então quando me fixei, pela primeira
vez, que seus olhos eram cinza claro. Outro dado curioso, ainda que também
irrelevante para nosso trabalho, é que ultimamente esta prática está em moda
entre os jovens de muitos países. Chamam-na body art ou performance
art, e um de seus defensores é o cantor e actor David Bowie.
Não posso crer...
Suspirei, esboçando um sorriso. Quer dizer que deixam fazer esses cortes por
gosto? Bem... Murmurou tão desconcertado como eu. Tem algo a ver com o erotismo
e a sensualidade, mas não saberia explicar. Nem tente, obrigada dispensei,
extenuada, me pondo de pé e dando por terminada aquela primeira e esgotadora
jornada de trabalho. Vamos descansar capitão. Amanhã vai ser outro dia muito
longo.
Permita-me que a leve
a sua casa. Estas não são horas para que ande sozinha pelo burgo.
Estava demasiado
cansada para negar, assim arrisquei de novo minha vida dentro daquele carro tão
espectacular. Ao nos despedir, agradeci, com algo de má consciência por minha
forma de tratá-lo, e rechacei educadamente sua oferta para vir me apanhar na
manhã seguinte; estava há dois dias sem ouvir missa e não estava disposta a
deixar passar nem um mais. Levantaria cedo e, antes de recomeçar o trabalho,
iria à Igreja de Sant Michele e Magno. Ferma, Margherita e Valéria estavam vendo
um velho filme na televisão quando entrei pela porta. Tiveram o detalhe de
guardar o jantar quente no micro-ondas, de modo que tomei um pouco de sopa, sem
muita vontade; vira demasiadas cicatrizes nesse dia, e pensava ficar um tempo
na capela antes de ir dormir. Mas, naquela noite não pude me concentrar na
oração, e não só porque estivesse demasiado cansada, e estava, mas, também porque
três de meus oito irmãos resolveram telefonar da Sicília para me perguntar se
eu iria à festa de São Giuseppe, que organizávamos todos os anos para o nosso
pai. Disse aos três que sim e fui para a cama, desesperada.
O Capitão
Glauser-Róist e eu vivemos umas semanas frenéticas a partir daquele primeiro
dia. Fechados em meu escritório desde as oito da manhã até as oito ou nove da
noite, de segunda a domingo, repassávamos os poucos dados que tínhamos à luz
das escassas informações que íamos obtendo dos arquivos. Resolver os problemas
das letras gregas e do Lábaro foi relativamente simples em comparação com o
titânico esforço de resolver o enigma das sete cruzes.
No segundo dia de
trabalho, ao chegar ao escritório, quando fechei a porta e vi a silhueta de papel
colada na madeira, a solução das letras gregas me golpeou o rosto como a luva
de um desafiode honra. Era tão evidente, que não podia crer que na noite
anterior não o tivesse visto, ainda que me justificasse lembrando o muito
cansado que estava: lendo da cabeça até as pernas, da direita para a esquerda,
as sete letras formavam a palavra grega STAUROS, cujo significado era, obviamente, CRUZ. A essas alturas, era
inquestionável que tudo o que havia naquele corpo estava relacionado com o
mesmo tema.
Alguns dias mais tarde, após estudar várias vezes do direito e do
revés, sem êxito; consultar a história da velha Abissínia (Etiópia); conferir a
mais variada documentação sobre a influência grega na cultura e na religião no
dito país; após ficarmos longas horas examinando cuidadosamente dezenas de
livros de arte de todas as épocas e estilos, extensos relatórios sobre seitas
remetidos pelos diferentes departamentos do Arquivo Secreto e exaustivos
informes sobre lábaros que o capitão conseguiu através do computador, nós fizemos outra descoberta significativa:
o monograma do Nome de Cristo que o etíope tatuara sobre o peito e o
estômago, correspondia a uma variedade conhecida como Monograma de
Constantino e que seu uso na arte cristã desaparecia a partir do século VI
de nossa era». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom
Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.
Cortesia de EDQuixote/JDACT
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