quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Deana Barroqueiro no 31. O Corsário dos Sete Mares. «E Iria? Que parte teve nessa história?, pergunta a mulher do mercador, enfadada com os desvios que os homens davam constantemente à saborosa prática sobre as cativas…»

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Cochim

«(…) E como haveis de o matar?, perguntara el-rei, rindo. Senhor, de um só golpe todo o matarei. Assi!, respondera dom Lourenço e, levantando a alabarda, desferira um golpe no chão com tamanha força que a lâmina toda se meteu pelo sobrado dentro, arrancando muitos aplausos e brados de espanto aos assistentes. Não há dúvida que com tal golpe já todo o fogo será morto, felicitara-o Huriabem, encantado.

Senhor, eu bem vejo que não posso escapar das chamas, dissera dom Francisco, em tom de profunda tristeza, aproveitando a boa disposição d’el-rei e dos cortesãos para apresentar um novo pedido. Mais tarde ou mais cedo, o fogo queimará as casas onde guardo as fazendas d’el-rei de Portugal, vosso irmão, e os aparelhos dos navios da armada, que será a maior perda. Eu fui criado na guerra e nunca tive receio dela, mas agora tenho medo do fogo que qualquer mouro de Calecut me poderá pôr na porta, o que não me deixa repousar nem de noite nem de dia. Rogo a Vossa Alteza, por grande mercê, que, em lugar das casas de canas e ola que nos arderam, mas deixe fazer de pedra e telha, à nossa maneira, onde tudo esteja seguro. Porque, se o não puder fazer, ainda que eu e todos os portugueses estejamos prontos para morrer por vosso serviço, teremos de ir invernar em Angediva. Huriabem acabara por ceder aos rogos do príncipe e dos caimais, para que não fizesse inimigos daqueles poderosos estrangeiros que o haviam socorrido na guerra, e dera o seu consentimento ao vizo-rei para a construção da fortaleza em pedra, com a condição de não cobrir imediatamente os edifícios com telha, a fim de não escandalizar os seus súbditos. Dom Francisco lançara logo mãos à obra, pondo a gente comum e os fidalgos a trabalhar lado a lado, sem lhes dar descanso, a acartar e assentar pedra, a escoar com baldes a água das fundações, que eram muito próximas do mar, ou a fazer qualquer outra tarefa necessária. O rajá e o príncipe vinham visitar as obras e pasmavam de ver os fidalgos cobertos de lama a partir pedra ou vergados sob o peso de cestos e baldes. Nobres cavaleiros a trabalharem como escravos!, exclamara Huriabem. Quem me dera ser rei de tal gente que assi se sacrifica pelo seu soberano, mesmo quando se acham no outro lado do mundo, longe das suas vistas!

Só lhes faz bem, Alteza, rira-se o vizo-rei, porque ficam com os braços mais compridos, o que lhes dará vantagem na guerra, quando empunharem a espada ou a lança. Vestido, como sempre, de um saio de lã e boleta aberta do mesmo tecido, carapuça branca na cabeça e uma caninha na mão, dom Francisco distinguia-se pela simplicidade do trajo e nobreza da figura, a percorrer a obra cada dia, provendo a todos e tudo vigiando. Dava pressa aos homens, ansioso por terminar os panos das muralhas e as fortificações, não fosse o rajá mudar de aviso e suspender as obras, escondendo as bombardas que mandava trazer desmontadas das naus, durante a noite, para não criar alarme nos gentios e mouros que poderiam denunciá-lo a Huriabem. A conclusão dos trabalhos, em tão breve tempo que aos próprios construtores admirara, fora festejada com procissão, muitos comeres, música e danças de moças gentias.

E Iria? Que parte teve nessa história?, pergunta a mulher do mercador, enfadada com os desvios que os homens davam constantemente à saborosa prática sobre as cativas, para murmurarem das invejas dos capitães e das lutas pelo poder. Contai-nos, por vossa vida, o resto da sua lenda. De início, como vos disse antes, a vida parecia correr-lhes bem, mas quando começaram as guerras entre Afonso Albuquerque e o bando de Cochim, Iria Pereira apartou-se de António Real ou ele dela…

O som de um apito interrompe-o e o grumete, que acaba de virar a ampulheta, diz com voz entoada: Uma hora passou,/ outra começou/ melhor há-de ser/ se Deus quiser. E logo brada: É meia-noite. A pé, grumetes, qu’é o quarto da modorra, a pé! Por momentos a Cisne anima-se com o movimento dos matalotes que trocam de turno e alguns dos assistentes erguem-se com pena de deixar a história por acabar. Bento Castanho conforta-os: Vejo que se fez tarde, meus amigos. Ide dormir, que amanhã aqui estarei para contar a história de Iria, se houver quem ainda me queira ouvir. Com muitos risos, bênçãos de bem haja!, Deus vos bendiga! e desejos de uma santa noite, todos se recolhem às câmaras, catres ou recantos onde têm lugar para estender a esteira ou a rede de dormir. Céu salteado, vento fresco e variado!, entoa ao longe uma voz, que muitos já não ouvem». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica,