terça-feira, 30 de agosto de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… ambos repararam que a rapariga galega parecia mais solta, talvez devido ao vinho, e sorria para os homens, pois vários lhe haviam dito que era a mais bela da tenda»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Os convidados emparelhavam-se, como era costume, comendo dois a dois de cada escudela de prata. Embora estivesse ao lado de Chamoa, Paio Soares ficou furioso quando compreendeu que era Afonso Henriques que formava par com a rapariga galega. Irritado, o nobre portucalense foi obrigado a partilhar a sopa com o conviva à sua direita, o pai de Chamoa, Gomes Nunes Pombeiro, enquanto escutava os sussurros trocados pelos apaixonados. Podemos voltar a passear, sugeriu Afonso Henriques, fixando os olhos verdes da rapariga. Chamoa corou, batendo as pestanas. O príncipe amava-a, queria voltar a encontrar-se com ela, e sentiu o coração acelerar. Nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer, o seu sonho de criança tornava-se realidade! Eufórica, sorriu e aprovou: Sim, iremos ao rio da Loba.

Afonso Henriques mergulhou a colher na escudela, enchendo-a de sopa e Chamoa imitou-o. Os dois encostaram os ombros, sentindo o calor do corpo do outro, e ela riu-se, divertida e enamorada. O príncipe levou a colher à boca, sorveu o líquido e depois sorriu-lhe, mas a rapariga franziu a testa. Com a mão direita pegou numa napeira, que estava pousada na mesa, e ergueu-a à boca de Afonso Henriques, limpando-a enquanto dizia: Tenho de cuidar de vós. O príncipe piscou-lhe o olho e acrescentou: Espero que a vida inteira. Chamoa riu-se e corou de novo, mas de repente alguém lhe lançou um elogio, talvez Gonçalo ou mesmo o Braganção e ela distraiu-se, enquanto continuava a comer a sopa. A seu lado, Afonso Henriques reparou que a mãe estava atarefada a verificar se as pedras serpentinas mudavam de cor quando mergulhadas nos caldos de amêijoa ou berbigão, vigiando possíveis envenenamentos. Abanou a cabeça, e piscou-me o olho, enquanto eu notava que o prudente Paio Soares não tornava público o seu agastamento, pois um desaguisado com Afonso Henriques colocaria em risco a sua iminente promoção a mordomo-mor. Em esforço, só vendo as costas de Chamoa, mordia o ciúme e conversava com o pai dela sobre a caça aos ursos em Tui.

Na tenda, as agrestes palavras de Teotónio começavam já a ser esquecidas, até porque o Trava, sempre sorrateiro, pedira aos taberneiros que juntassem menos água ao vinho, como se fazia na Galiza, e os efeitos sentiam-se, nobres e senhoras falavam mais depressa e riam mais alto. A crueldade dos súbditos suspende-se quando são bem tratados. No final do jantar, foram servidos o pão de ló e os biscoitos de flor de laranjeira, e dona Teresa, que se poupara no vinho sabendo que ia discursar, levantou-se e informou a alegre assembleia que Bermudo, marido de sua filha Urraca Henriques, seria o novo governador de Viseu, o que originou as primeiras palmas da tarde. O visado corou, ergueu-se e fez uma pequena vénia à sua antiga esposa, agradecendo a honra, e depois beijou a actual na face, o que a deixou também ruborizada. Preparava-se Bermudo para realizar um discurso de gratidão quando dona Teresa, revelando o apreço que sempre tivera por ele, mandou-o, com um gesto, sentar-se e calar-se, o que ele fez de pronto, mostrando a todos que nada mudara no trato entre os antigos, mas malsucedidos, amantes.

De seguida, dona Teresa encarou Paio Soares, que se levantou para que todos o pudessem ver, ao mesmo tempo que sacudia do balandrau as migalhas e os bocados de comida, por forma a que o seu reluzente tecido mais se realçasse. A notícia foi a esperada: iria ser o mordomo-mor do Condado! O senhor da Maia executou uma vénia pomposa, agradecendo o título ao mesmo tempo que exibia a vestimenta, provocando risinhos em Chamoa. Terminadas estas proclamações, entraram na tenda jograis, trovadores e músicos. Uma imediata tensão se apoderou de mim e dos meus irmãos quando vimos aparecer Ordonho e Fruela. Contudo, os bobos galegos eram gordos mas não estúpidos, e não repetiram as afiadas chalaças da véspera, brindando aquela nobre plateia com cantigas de amigo e trovas célebres da Galiza. A dado momento, relembraram El Cid, o valente combatente que décadas antes tinha batido os árabes, e declararam-se orgulhosos por estar entre eles um homem capaz de semelhantes feitos, uma óbvia e encomendada alusão a Fernão Peres Trava, que sorria, satisfeito.

A um canto da sala, Ramiro e Raimunda, cúmplices desde o dia anterior, observavam o florir do encantamento de Afonso Henriques por Chamoa. No entanto, ambos repararam que a rapariga galega parecia mais solta, talvez devido ao vinho, e sorria para os homens, pois vários lhe haviam dito que era a mais bela da tenda». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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