segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Vi Afonso Henriques piscar o olho à minha prima Raimunda, agradecendo-lhe a informação preciosa. A sua mãe estava aflita, e o Trava também devia temer a contestação dos portucalenses»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126

«(… ) Rapidamente os presentes retiraram as suas conclusões. Para os galegos e para os restantes apoiantes da rainha e do Trava, aquele ataque religioso confirmava a divisão cavada na corte e o ódio larvar sentido pelos portucalenses. Para estes, exceptuando Paio Soares, a ameaça de excomunhão era uma bem-vinda vantagem moral de quem não tinha ainda força militar para mais. Contudo, poucos ficaram convencidos de que aquela forte repreensão fosse suficiente para alterar as ideias futuras do casal régio. dona Teresa já antes fora excomungada, já mandara prender o arcebispo de Braga, já lutara contra a irmã Urraca, já afrontara Afonso de Aragão e também o arcebispo de Compostela, e nada a fizera parar. Não seria o discurso de Teotónio, por mais veemente que fosse, que lhe mudaria o carácter ou os propósitos.

A rainha limitou-se, portanto, a suspirar quando o prior de Viseu informou a congregação de que avisaria Roma daquela excomunhão. Até que o Papa se pronunciasse, havia de correr muita água debaixo das pontes. Levantando-se, a rainha sorriu a Teotónio, com uma desfaçatez magnânima, e abandonou a missa alegre e bem-disposta, de braço dado com o Trava. Depois de a igreja esvaziar, Soeiro Mendes e os irmãos Moniz de Ribadouro, bem como Afonso Henriques e seus amigos, dirigiram-se a Teotónio, para lhe beijar a mão, como era costume na Páscoa. Contente, Egas Moniz afirmou: O Trava ficou sem pinga de sangue. Os outros acenaram com a cabeça, concordando, e o prior resmungou as suas fúrias, que só terminaram quando pousou uma mão carinhosa no ombro do príncipe e disse: Querem tirar-vos o Condado. Mas nós não deixaremos. O meu grande amigo Afonso Henriques, apesar de muito respeitar Teotónio, a quem considerava um santo, calou a sua descrença nos resultados deste público vexame. Embora captasse o febril ambiente conspirativo entre os portucalenses, sentia-se estranhamente desinteressado. Como me confessou depois, queria ir ter com Chamoa, não voltara a falar com ela desde a véspera e só a vira na igreja, sempre linda, sorridente, sardenta e apetitosa, de touca no cabelo e botinhas de couro de cervo. Mas, quando saímos, foi Raimunda quem apareceu, exaltada.

A rainha fez de conta, mas está morta de medo! Diz que a querem envenenar. Obrigou os cozinheiros a provarem o jantar à frente dela! Quer chifres de unicórnio nas sopas, e ágatas e línguas de serpente nos molhos das carnes e dos peixes, para ver se mudam de cor! Dona Teresa tinha o pavor dos envenenamentos, e muitas vezes mandara para trás travessas repletas de manjares por suspeitar do cheiro, da cor, ou por ter apenas um poço de medo no lugar do coração. Banquetes reais já haviam sido amputados das melhores iguarias só porque ela temia o aspecto de uma vianda de leite, de uma peixota, ou de uma carne estufada. Devido ao que acontecera ao marido, em Astorga, tais receios não eram de estranhar, mas naquele dia lembro-me de que comentei: Ela que coma só passas! Gonçalo protestou de pronto: Que dizeis, só frutos secos? Cruzes, estamos pior do que os apóstolos, na Última Ceia!

Vi Afonso Henriques piscar o olho à minha prima Raimunda, agradecendo-lhe a informação preciosa. A sua mãe estava aflita, e o Trava também devia temer a contestação dos portucalenses. Animado, abraçou-me e a Gonçalo, e dirigimo-nos para a tenda onde decorreria o jantar de Páscoa. Quanta ilusão tínhamos...» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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