A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…)
O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o
rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à
paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas por enquanto essa geografia
de morte era ainda um segredo para nós. Pela sua fronte corriam torrentes de
suor e as faces estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue
do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de tosse, procurava
recuperar o fôlego. Andava a passear por aqui... só um passeio, disse ele em
português. Parei perto do rio, no Chafariz d’El-Rei a lavar as mãos.
Tia Ester desapertou-lhe a gola do gibão enodoado e
limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa. Reparei no traço
escuro de uma cicatriz antiga que tinha no peito, por baixo da clavícula, que
parecia ter sido escavada por algum bicho. Em torno a nós, começaram a
juntar-se vizinhos, a bisbilhotar entre si. Dois rapazes..., continuou Diego.
Começaram aos berros que eu estava a envenenar o poço com essência de peste.
Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras. Apanhem o rabino de
rabicho! Apanhem o rabino... Quem me salvou foi um homem moreno com um gorro
azul. Era alto, forte... No seu desespero, as últimas palavras procuravam o
socorro do hebraico. Fala português, murmurei-lhe, enquanto o deitávamos no
empedrado da rua.
O turbante de Diego tombou e reparei então pela primeira
vez, por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que começava a
rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a sua cabeça. Tinha-lhe caído
um papel dobrado. Pensando que podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de
orações que o poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e enfiei-o
na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao pescoço e me servia como uma
espécie de bornal. Judas encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o
sacudir para que fosse chamar o Doutor Montesinhos. Meu tio reuniu-se a nós e,
depois de uma breve oração, disse: Vou lá dentro ver se posso arranjar algum
remédio.
Ainda tentei manter fechado o lanho, com os dedos apertados
em torno da ligadura improvisada de minha tia, mas o tecido depressa ficou
tinto de sangue. Tia Ester foi a correr buscar água limpa, enquanto eu rasgava
tiras da minha camisa para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid.
Traziam extractos de consolda, bagas de loureiro, gerânio, goma e argila, goma
arábica e água sulfurosa. Mas apesar de todas estas substâncias adstringentes,
o sangue não coagulava.
É esta maldita barba!,
resmungou meu tio. Não
consigo chegar à ferida. O Doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba, disse ele para o ferido. Diego,
que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um empurrão. Não o permitirei!,
gritou em hebraico.
Tenho de ter barba. É proibido...» In Richard
Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN
978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,