segunda-feira, 5 de junho de 2023

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no Rossio, disse eu A menos de cem jardas do vosso destino. Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de altura…»

 

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…)  Há levitas sem barba, observei, mas Diego limitou-se a gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: Um ataque em pleno dia. É mau sinal. Mais umas semanas de seca e...  Como podes ter a certeza que não foi planeado?, disse meu tio num tom irado. Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo uma carruagem branca e dourada fitavam-nos do alto. Os capacetes prateados e as grevas cintilavam com os raios do sol. Pendões escarlates e verdes decorados com as armas do rei drapejavam na brisa seca.

Que desordem vem a ser esta?, perguntou asperamente um deles. Foi só nesse momento que reparei que meu mestre envergava ainda as suas vestes rituais, com um xaile azul e branco por cima dos ombros, o braço esquerdo envolvido nas fitas dos seus tefelins e uma caixinha de orações em couro colocada na fronte por cima do seu olho espiritual. Tal infracção podia valer-lhe o exílio como escravo na África portuguesa. Através de gestos nas costas, fiz sinal a Farid para o levar dali.

Feriram este homem’ disse eu. És cristão-novo?!, perguntou o cavaleiro. O meu coração deu um salto, quase me forçando a negar. Pelo canto do olho, avistei Farid arrastando consigo meu tio através da multidão. Perguntei-te se eras cristão-novo!, repetiu o cavaleiro num tom ameaçador. Atrás dele, a porta da carruagem abriu-se. Um silêncio cobriu a multidão. Vimos sair um homem magro, delicado, com uma túnica violeta e calças soladas de duas cores, preta e branca. A gola franzida de seda dourada parecia oferecer a sua face descarnada e maléfica como se fosse uma bandeja. Os seus olhos negros vigiavam a multidão como à procura de um inocente para o punir.

Levamo-lo connosco. Deve haver um hospital perto dos Estaus, disse num castelhano imperioso, agitando a mão onde se viam dois anéis de cabuchão de esmeralda do tamanho de amêndoas. O  Palácio dos Estaus, uma construção torreada de pedra cintilante, servia de pousada aos nobres em visita oficial a Lisboa.

Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no Rossio, disse eu A menos de cem jardas do vosso destino. Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de altura, e foi preciso um guarda e um dos cocheiros de ar mourisco para o conseguir levantar. No interior da carruagem, face ao fidalgo castelhano, sentava-se uma dama jovem com uma trança arranjada em bico e com um vestido de seda cor-de-rosa. Era loira, de tez clara e face redonda. Inclinou-se para Diego com uma expressão de genuína inquietação e o seu olhar inteligente fitou-me à procura de uma explicação.

Assaltado por marinheiros estrangeiros, menti. Impressionou-me o seu súbito olhar de surpresa, a impotência do seu desespero, e a familiaridade do seu rosto baniu a noção de tempo, tal uma intuição penetrante, uma shefa, um influxo da graça de Deus. Semelhava um versículo da Tora que subitamente se tivesse despojado das suas roupagens e se nos revelasse num rasgo de nu entendimento». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

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