A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…)
Há levitas sem
barba, observei, mas Diego limitou-se
a gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: Um ataque em pleno dia. É mau
sinal. Mais umas semanas de seca e... Como podes ter a certeza que não foi planeado?,
disse meu tio num tom irado. Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra
projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo
uma carruagem branca e dourada fitavam-nos do alto. Os capacetes prateados e as
grevas cintilavam com os raios do sol. Pendões escarlates e verdes decorados
com as armas do rei drapejavam na brisa seca.
Que desordem vem a ser esta?, perguntou asperamente um
deles. Foi só nesse momento que reparei que meu mestre envergava ainda as suas
vestes rituais, com um xaile azul e branco por cima dos ombros, o braço
esquerdo envolvido nas fitas dos seus tefelins e uma caixinha de orações em
couro colocada na fronte por cima do seu olho espiritual. Tal infracção podia
valer-lhe o exílio como escravo na África portuguesa. Através de gestos nas
costas, fiz sinal a Farid para o levar dali.
Feriram este homem’ disse eu. És cristão-novo?!, perguntou
o cavaleiro. O meu coração deu um salto, quase me forçando a negar. Pelo canto
do olho, avistei Farid arrastando consigo meu tio através da multidão. Perguntei-te
se eras cristão-novo!, repetiu o cavaleiro num tom ameaçador. Atrás dele, a
porta da carruagem abriu-se. Um silêncio cobriu a multidão. Vimos sair um homem
magro, delicado, com uma túnica violeta e calças soladas de duas cores, preta e
branca. A gola franzida de seda dourada parecia oferecer a sua face descarnada
e maléfica como se fosse uma bandeja. Os seus olhos negros vigiavam a multidão
como à procura de um inocente para o punir.
Levamo-lo connosco. Deve haver um hospital perto dos Estaus,
disse num castelhano imperioso, agitando a mão onde se viam dois anéis de
cabuchão de esmeralda do tamanho de amêndoas. O Palácio dos Estaus, uma construção torreada de
pedra cintilante, servia de pousada aos nobres em visita oficial a Lisboa.
Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no
Rossio, disse eu A menos de cem jardas do vosso destino. Diego tinha uma
compleição de urso, com mais de seis pés de altura, e foi preciso um guarda e
um dos cocheiros de ar mourisco para o conseguir levantar. No interior da
carruagem, face ao fidalgo castelhano, sentava-se uma dama jovem com uma trança
arranjada em bico e com um vestido de seda cor-de-rosa. Era loira, de tez clara
e face redonda. Inclinou-se para Diego com uma expressão de genuína inquietação
e o seu olhar inteligente fitou-me à procura de uma explicação.
Assaltado por marinheiros estrangeiros, menti. Impressionou-me o
seu súbito olhar de surpresa, a impotência do seu desespero, e a familiaridade
do seu rosto baniu a noção de tempo, tal uma intuição penetrante, uma shefa, um
influxo da graça de Deus. Semelhava um versículo da Tora que subitamente se
tivesse despojado das suas roupagens e se nos revelasse num rasgo de nu
entendimento». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,