«Talvez se tenham consolado com a esperança, não de todo impossível, de virem a almoçar com o meu primo, que se proclamou a si mesmo guarda-mor florestal sem necessidade de trâmites. Não espero que nenhum destes acontecimentos passe à História mas, a definição que deu de mim o tão citado vencedor (a quem, a partir de certa página, chamarei, de preferência, a Águia do Leste), por se ter infiltrado nos meios diplomáticos de toda a Europa e pelo facto de o texto da carta figurar, tanto nos comunicados confidenciais, como nos arquivos da coroa, o cognome de tonto é do domínio comum e não haverá já quem se atreva a arrebatar-mo. Nem destronado o perdi. É certo que, no dia em que me expulsaram da minha casa e me acolheu no seu reino o meu bom vizinho Christian, este último, depois de me dar as boas-vindas e um abraço, disse-me, em confiança: Tu não és tonto como dizem, pois não Ferdinando?, mas eu pedi-lhe que guardasse segredo e ele, não só ficou silencioso a esse respeito, como continua a chamar-me tonto quando eu não estou presente. Christian comporta-se como um amigo leal; devo-lhe o meu pão e a terra que piso, a liberdade com que me movo e a anonímia em que me permite viver: Christian tem a suprema galanteria de não contar comigo para nada, evitando-me, assim, o tão penoso papel dos príncipes destronados nas cortes caritativas. O pobre Ferdinando Luís, tonto como era! Pois, até nem o fazia nada mal, apesar de ser tonto. Como podia ele fazer alguma coisa mal, se não fazia nada...? Não seja injusta, minha senhora. Fez pelo menos duas filhas. Acredita que sim, marquês?
Duvida-se que a segunda seja
dele. Ah, sim? Não me diga! Há quem pense que é de Lizst, o músico, mas todos
julgam que é de Bismark. Bismark! Mas, sobre isto, ainda não há nada escrito.
As crianças das escolas daquele que foi o meu país estudam História em livros
onde sou referido (sempre em notas de pé de página) como Ferdinando Luís, O
Tonto, sem referências à minha vida privada e, como tal, sou dado como morto.
Mas, como o meu país já não é sequer um país, mas sim uma parte esquecida do
país do meu primo, os livros de História do ensino obrigatório são elaborados
na longínqua Corte Imperial, a mais imperial de todas as cortes do mundo, incluindo
a de Tombuctu e, os súbditos dessa extremidade do mundo não têm nada a dizer:
por alguma razão não somos mais do que uma Finisterra, isso que, noutros tempos,
era ser alguma coisa, pelo facto de ter tão à mão o Mistério mas, hoje, se nos conhecem,
é pelo nome de um cabo: o Mistério caiu em desuso. Chamam-me O Tonto? Está bem,
e depois? Não fiz outra coisa na vida (não convém exagerar: na minha vida fiz
um pouco mais do que isso) a não ser organizar e preparar a difusão, entre os
que representam a opinião de todos, desse embuste tão cómodo como é a minha
tolice. O facto de ser assim chamado nos livros de História, por muito que os
seus textos sejam elaborados com as piores intenções pelos esbirros
intelectuais do meu primo, constitui o meu triunfo: secreto, mas de íntimas
satisfações.
Não sei porquê, parece-me que vou
ter que contar várias vezes a história do meu destronamento, ainda que, espero,
de modo diferente de cada uma delas; quero dizer, as mesmas coisas com
distintas palavras e a partir de pontos de vista variados; se calhar ainda me
engano, porque não tenho muito claro aquilo que vou contar. Na realidade, neste
caderno não se encerra senão a recordação, um tanto arrevesada, do meu destronamento,
ainda que esse não seja o facto mais importante dentre os que aqui se contam e,
sim, o seu pretexto e a sua trama. Mas convém não esquecer que o narrador sou
eu, e que conto como me apetece: ainda que isso não tenha importância, às vezes
gosto de fazer crer que sou aquilo a que se chama uma personagem histórica ou
de me dar ares disso, ainda que das de menor vulto, muito abaixo dos
imperadores. Não é possível desempenhar um papel suficientemente digno quando
nos encontramos, pelo nascimento, em categorias tão intermédias e estou até
persuadido de que semelhante papel não só se pode como se deve fazer: mesmo que
isso acarrete consigo o risco de o representar com dignidade idêntica e a mesma
solenidade que os verdadeiros protagonistas da História e que, inclusivamente,
possa acontecer que o secundário supere o principal nesses matizes de estilo:
tenho visto cada príncipe consorte...! O meu primo Carlos Frederico Guilherme
passeia pela Europa com todas as plumas que o seu capacete de guerreiro pode suportar
para se sentir alto; uma vez fotografámo-nos juntos e eu excedia-o nas plumas e
na distinção». In Gonzalo Torrente Ballester, A Rosa dos Ventos, 1995, Difel, ISBN
972-290-326-8.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Gonzalo Torrente Ballester, Literatura,