Cortesia de doportoenaoso
A Corte de D. Manuel
«Boa terça parte da população de Roma, por 30 mil pessoas, andava nas ruas para ver o desfilar do préstito; e ao rumor, aos vivas, às exclamações do povo, juntavam-se o estrondo das salvas de artilharia e o cântico metálico dos sinos de todas as igrejas, repicando e dobrando com furor. Chegada a procissão em frente do castelo de Santo Ângelo, o papa, com os seus cardeais, apareceu na varanda a recebê-la; e o elefante, molhando a tromba, como hissope, numa bacia de água perfumada, aspergiu por três vezes, primeiro o papa, depois o povo. Singular cerimónia, extravagante sacerdote!
À água abençoada de virtudes místicas, Roma preferia as essências do Oriente; e um elefante de Ceilão valia muito mais, para a sua curiosidade naturalista, do que o fúnebre acólito, à entrada da nave obscura do templo cristão. A Igreja triunfante era aclamada na varanda de Santo Ângelo.
Cortesia de jorieos
É verdade que D. Manuel pedia, ou afectava exigir, que se reformassem os abusos da cleresia, que se moralizassem os costumes, e intimava com Gil Vicente:
Feirai o carão que trazeis dourado,
Ó presidente do crucificado;
Lembrai-vos da vida dos santos pastore
Do tempo passado!
Mas se Leão X, o magnífico papa, não quis ouvi-lo, é fora de dúvida que o esplendor da embaixada traduzia mais o amor pagão da vida do que o fervor místico da pobreza virtuosa, da caridade humilde do cristianismo legendário.
Não foi mais feliz o rei na pretensão que tinha de intervir nas pendências internacionais da Europa, propondo a liga contra o Turco e advogando a ideia quimérica da Idade Média, em que se abrasava o misticismo espanhol. O rei levava nisto, porém, um motivo interesseiro, porque abater o sultão na Europa era libertar a sua Índia das esquadras dos rumos do Egipto. Ninguém já na Europa tinha ódio ao Turco; e D. Manuel podia ostentar a riqueza oriental, mas não podia impor a sua vontade à Itália, à França, à Alemanha, como o fez mais tarde Carlos V, o grande imperador.
Nem se fez o Concílio, nem se reformaram as coisas da Igreja, nem menos se pôs em obra a guerra contra os Turcos.
A embaixada ficaria como uma ópera magnífica, uma exibição deslumbrante da riqueza oriental, uma satisfação estéril da vaidade portuguesa, se o papa não acedesse às outras pretensões da coroa. Conseguiu-se o padroado pedido para a Ordem de Cristo, coisa fácil; obteve-se a colecta das terças dos rendimentos eclesiásticos; e além disso a cruzada, que o núncio trouxe, e na execução da qual, diz Damião de Góis:
«por mau resguardo, culpa e demasiada tirania dos oficiais dela, foi o reino muito avexado, e sobretudo a gente popular, a quem faziam tomar por força as bulas, fiadas por certo tempo, no cabo do qual, se não pagavam, lhes vendiam seus móveis e enxovais publicamente em pregão, por muito menos do que valiam: pela qual desumanidade os mais dos executadores desta cruzada houveram mau fim».
Não era, decerto, repetindo em casa o que já levantara as cóleras e indignações da Europa, que o rei podia obrigar o papa a reformar a Igreja; antes a venda das bulas trazia para Portugal o fermento de um protesto, que o espírito da nação não podia, é verdade, fazer levedar.
As questões religiosas, acordadas na Europa, tinham em Portugal um carácter particular. Na Península, a constituição acabada do poder monárquico, obra em que o rei D. Manuel trabalhou com afinco (na série de fenómenos que caracterizam a política centralizadora, iniciada por D. João II e seguida por D. Manuel, está em primeiro lugar o abandono das convocações de cortes nacionais), dava às nações uma coesão orgânica bastante para impedir as revoluções anárquicas da França e da Alemanha, a cuja sombra medrava o protestantismo; e essa circunstância favorecia as tendências, evidentemente católicas, do espírito colectivo. Por outro lado, a questão dos judeus complicava os problemas da reforma da religião, dando força à ortodoxia; porque o povo, sendo contra esses hereges, de uma espécie diversa, é verdade, encontrava, porém, nisto mais um motivo para condenar o género de heresia». In História de Portugal, Oliveira Martins, Europa-América edição nº 140823/5304, adquirido em Janeiro de 1993.
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