A Ponte dos Suspiros
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Um rei sem reino, sem trono, coroa, manto, ceptro... não tenho eu tantas vezes
dito que sou um rei nu?... Pois agora... o meu corpo que nem meu pai nem minha
mãe conheceram, só raros, pouquíssimos amigos deixei, em minha câmara real, que
vestissem, despissem, ataviassem, lavassem, enxugassem, perfumassem... minha
intimidade que eu só permiti fosse tocada por aquela princesa de uma noite de
refrega em Santa Justa... Violeta! Tão recatada que não me quis revelar o seu
nome... Meu pobre corpo devassado por carcereiros estranhos!... E, de repente,
epifania! Desataram a fazer-me vénia, a tratar-me como arremedo de quem sou...
Acreditaram finalmente? Que aconteceu?... Mudaram-me da enxovia lá de cima,
para aposento mais honrado algures no palácio e, de minha miséria, dão-me agora
para o prato seis cruzados cada dia e vestimenta mais decente... Só me não
deram a liberdade. Porquê?... É um compartimento sem janelas exteriores. Uma
fresta mal coa a luz do dia. Não vejo o céu, não sinto a maresia, não me
visitam as gaivotas, as pombas, os pardais. A quem darei agora as minhas migalhas?...
O bafio das horas ganha bolor, perco o pulsar do tempo no relógio do coração. Carcereiro,
digo-lhe, quando um dia me vem trazer o comer. Que há? Sabeis de alguém que
precise de ajuda? Olha-me espantado: Quem aqui precisa de ajuda senão vós? Aí
bate o ponto, amigo. A ajuda de que necessito negam-ma: a liberdade... Não é da
minha conta. ... e os seis cruzados que me... enfim, por esmola, cada dia...
olhai, sobejam-me.
Sim,
tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que comeis! Pão e água...
debicar, bebericar... Viu-se lá coisa assim!... Dirigia-se para a porta, parava
na soleira: Estais a juntar pé-de-meia? Para casardes, quando daqui sairdes? Não.
Vinde cá. Fechava a porta e chegava-se ao pé de mim a escutar. Não vos
perguntei eu se sabíeis de alguém que precisasse de ajuda? Sim. Aí está. Com o
dinheiro poupado, poderia eu, em desconto dos meus pecados, fazer bem a
outrem... casar, por exemplo, uma órfã... Olhou-me o homem nos olhos como se
buscasse ver-me no chão do meu ser e disse muito sério: órfãs, e bem
necessitadas, e que desejam casar-se, conheço eu duas. Se quiserdes... E como
poderei eu proceder, se estou aqui manietado? Isso não sei. Mas... Não podereis
dar parte da minha tenção ao senhor juiz Quirini? Acho que sim, senhor. -
Então... Está bem. Quanto antes? De imediato, se puder». In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,