A Invasão Francesa
30 de Setembro de 1808 (dia da morte de
Ana)
«Naquela manhã, pelas nove e
meia, um grito estridente acorda Miguel. Ainda estremunhado, pensa tratar-se da
mulher, que passa a vida numa berraria. Mas afinal quem o chama é Francisca, a criada,
dizendo-lhe que Ana morreu. Tá fria e cadáver!, garante a rapariga, à porta do
quarto. O dono do palacete pressente que lhe anunciam a verdade e o seu coração
divide-se entre a tristeza e um inesperado alívio. Tendes a certeza?, questiona,
enquanto se levanta, à pressa. Francisca leva a mão à cara, onde está desenhada
uma feia cicatriz, que vai do canto do olho direito até ao queixo. A realidade da
morte de Ana é tão palpável como aquela ferida. Tã certo como isto! Já vi muitos
assim, tá morta!
De roupão, Miguel avança pelo
corredor em passo rápido, enquanto examina o estranho e misto sentimento que o invade.
Ana é a mãe do seu filho, estão casados há uma década, devia amá-la. Mas não
pode mais. Aquela louca decepcionou-o profundamente. Ontem, odiou-a ao ponto de
desejar matá-la e agora sente-se livre, com uma vida nova pela frente. Tá ali, indica
Francisca. Ao entrar no quarto da mulher, Miguel estranha a luz. Nas últimas
semanas, Ana não abria os reposteiros e o sol, que agora irrompe pela janela e
ilumina a cama, nunca ali entrava. Com ela viva, o quarto parecia um túmulo, mas
esta manhã, quando é finalmente um jazigo, apresenta-se radioso. Tá morta!, repete
Francisca.
Miguel aproxima-se da cama, aonde
há muitos meses não se deita. Ana está tombada ligeiramente para a direita, próxima
da cabeceira do mesmo lado. De olhos fechados. Já estava assim? Francisca jura que
jamais seria capaz de cerrar as pálpebras da senhora, não tem coragem para
coisas dessas. Ana está como a encontrou. Chamou-a várias vezes, mas não lhe tocou.
Até abri as cortinas, prá ver melhor! Depois, assustou-se e fugiu a correr. Foi
o demónio, murmura Francisca.
Miguel toca na mão direita e depois
no nariz da mulher. Sente urna opressão no peito, mas não se emociona. As perturbações
da véspera sobrepõem-se Tanta desilusão e raiva. O demónio... repete em voz baixa.
Nos últimos dez meses, o inferno esvaziou-se e os demónios vieram todos para Portugal.
Desde que os exércitos de Napoleão invadiram o reino, o sangue correu pelas
ruas, os massacres multiplicaram-se, houve assassinos à solta, destruição e saque
geral. No país e em sua casa, onde os diabos também estiveram. Temos de chamar
um medico, diz.
Quem tratava Ana era um francês,
Charles BonHomme, mas ele partiu hoje para França, de barco, por isso terão de
procurar um médico português, daqueles a quem Ana chamava poltrões. Não respira,
confirma Miguel. Afasta os dedos do nariz dela e observa os lábios escuros e a boca
finalmente fechada. A historia de Ana foi a história dos seus gritos, permanentes
e insuportáveis. Gritos às criadas, ao filho, ao pai, aos cocheiros. Nunca mais
os dará». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN
978-989-661-041-8.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,