A Invasão Francesa
30 de Setembro de 1808 (dia da morte
de Ana)
«(…) Talvez o coraçã dela tenha
parado, avança Francisca Tava tã mal, tadita. Na véspera, Ana desejara morrer,
mas também fugir para França, enquanto falava com um homenzinho que só ela via,
sentado ao canto do quarto. Ter-se-á matado?, questiona Miguel. A ameaça
suicida andara sempre presente nos berros de Ana, um aviso que ele ignorara,
atribuindo a causa de tais dislates à evidente loucura dela. Tinha terror de
ser presa, lembra Francisca, como a outra...
A rapariga refere-se à condessa
da Ega, que alinhou com os franceses e que o povo considera uma traidora à pátria.
A Ega não é uma mulher, reflecte Miguel, é uma cama de estalagem, tantos são os
que já se deitaram em cima dela. Mas era a melhor amiga de Ana e esta receava
ser também acusada de traidora. Talvez..., especula Miguel. Mas matou-se como?
Não há sangue na cama, nem se vê por perto algo com que se pudesse magoar. Na
mesa-de-cabeceira apenas moram um copo e um jarro com água, um frasco com o
xarope que Charles lhe deixou e a colher que Ana usou para o tomar. Coisas que
já lá estavam nos últimos dias, nada de novo.
Tinha muitas dores, tadita,
recorda Francisca… As na cabeça eram as piores. Por isso, a ausência de luz, as
cortinas corridas, os xaropes para dormir. Terá sido por causa do que eu fiz ou
do que lhe disse?, questiona-se Miguel em silêncio. Os franceses deram cabo
dela, proclama Francisca. Ana deu-se bem com os invasores do reino. Foi amiga
de Junot, o comandante dos exércitos de Napoleão, mas também dos generais
Kellerman e Delaborde, talvez até do nefasto Maneta. E ontem Miguel chegou a
temer que Ana tivesse privado com o Príncipe de Salm, um terrível assassino que
degolou centenas. Foi o demónio, repete Francisca. Qual deles?, filosofa Miguel.
Estiveram cá tantos. Em dez meses, pela vida de Ana passou muita gente má. Uma
confraria de generais cruéis, cuja aura empestou o ar do palacete. Diz-se que a
morte ronda os que convivem muito com ela.
A pescada previu isto, recorda
Miguel. Ana adivinhou grande infortúnio no peixe que examinou na véspera,
enviado pela condessa da Ega. As duas amigas acreditavam piamente nas vísceras
das pescadas, nos veios das conchas, em cometas e em profecias cantadas pelos
populares nas ruas de Alfama. Miguel não crê nessas tolices, mas pode ter-se
enganado. A verdade é que o infortúnio está ali, à sua frente. Temos de
informar o general Galopim. Mal o ouve, Francisca empalidece em sofrimento. Não
quer ser ela a avisar o pai de Ana. Deixai comigo, acalma-a Miguel. Ide chamar
o médico. Quando Francisca lhe sorri, aliviada, admira a beleza dela. Cabelo
claro, sangue celta, olhinhos azuis brilhantes e agora já com menos medo. O que
se esteve para perder... Ide rápido, arranjai um cocheiro!, ordena. E o menino?,
pergunta Francisca. O dono do palacete lembra-se pela primeira vez do filho de
quatro anos e tem pena. A criança vai ficar órfã e bem mais cedo do que Ana,
que perdeu a mãe só aos doze. Deixai-o com a cozinheira». In Domingos Amaral, Napoleão Vem
Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.
JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,