«(…) O dia 17 de Fevereiro de 1941 foi uma segunda-feira. De manhã fazia um frio horrível, 14 graus abaixo de zero. Stefa estava com dor de garganta, febre e uma irritação na pele do peito que mais parecia acne. Finalmente, concordou que Adam podia ficar em casa e faltar à escola. Mas não estava disposta a juntar-se a nós e tirar o dia de folga. Tomou umas aspirinas e, apesar das minhas ameaças de amarrá-la à cama, empurrou-me para o lado e esgueirou-se para o trabalho. Embrulhei Adam numa pilha de cobertores e, por insistência dele, pus a gaiola de Gloria mais perto do aquecedor, aos pés de nossa cama. Depois da sopa de couve que fiz para o almoço, que ele e eu comemos ainda de luvas, Adam pôs na cabeça o cocar que a mãe fizera para ele com penas de galinha e anunciou que ia sair. Uma ova!, desiludi-o. Mas estou entediado! E eu, com uma periquita aleijada e um garotinho atrevido de 9 anos como única companhia, acha que não estou? Lançou-me o seu habitual olhar assassino. Bela tentativa, Winnetou, disse eu, usando o seu nome índio, mas o mau-olhado dos Cohen não funciona com outros membros da tribo. Vá ler um livro.
Estou
farto de ler! Lágrimas de chantagem brilharam-lhe nos olhos. Ouça, Adam, disse
eu, mais suavemente, quando conseguirmos arranjar um pouco de carvão, você
poderá sair outra vez. Para tentá-lo, acrescentei: Posso começar a ensinar-lhe álgebra
hoje, se quiser. Álgebra é para estúpidos! Então dê alguma comida à Gloria. Ela
pareceu estar com fome, da última vez que a vi. E tenho certeza de que está ainda
mais entediada do que você. Para dizer a verdade, Gloria tinha ares de quem
precisava de um banho quente seguido de uns bons goles de uísque, mas, por
outro lado, o mesmo se podia dizer de quase todo mundo que eu conhecia.
O
menino me fez uma careta e me virou as costas; segurei-o pelo braço. Quando se
libertou, se debatendo, senti a fúria invadir-me como metal derretido e dei-lhe
uma palmada no traseiro com mais força do que pretendia, atirando-o contra as estantes.
O cocar caiu, e uma pena da frente soltou-se. Ficamos olhando um para o outro,
paralisados, como se um meteoro tivesse caído entre nós dois. Deixei-me cair no
chão como um enorme trapo amarrotado. Minhas lágrimas o assustaram. Veio sentar-se
de mansinho no meu colo, pedindo desculpa. Murmurei que a culpa não era dele e
apanhei o cocar. Disse-lhe que podia ir brincar lá fora se se vestisse o mais
quente possível. Quando foi buscar o gorro de lã e eu o enfiei em sua cabeça, obriguei-o
a prometer que não sairia da nossa rua nem que os marcianos aterrassem na
Grande Sinagoga e o chamassem pelo nome para negociarem um tratado de paz.
Quando
percebi que o sol já se tinha posto, pousei o livro e olhei para o relógio:
eram exatamente 16h27. Nunca me esquecerei dessa hora. Adam já tinha saído
havia mais de duas horas. Deixei um bilhete em cima da cama de Stefa dizendo
que tinha ido à procura dele e preguei outro na porta da entrada, avisando a
Adam que fosse pedir a outra chave a Ewa, na padaria, se chegasse em casa antes
de mim. O menino não estava na nossa rua, e não consegui encontrá-lo em nenhum
dos terrenos cobertos de ervas em que costumava brincar, por isso fui ao
apartamento dos pais de Wolfi, mas quando bati à porta ninguém respondeu.
Consegui localizar Feivel e outros dois amigos de Adam, mas não o tinham visto.
Quanto aos lojistas da zona, todos menearam a cabeça. No caminho para casa,
comecei a imaginar que ia encontrar Adam esquentando as mãos junto ao nosso
aquecedor, com Gloria pousada na cabeça. Eu lhe diria que nunca mais o deixaria
se perder de vista, o que, na minha opinião, era a moral da história.
Mas
o apartamento estava vazio. Para me acalmar, tomei os meus últimos comprimidos
de Veronal. Teria continuado a tentar contactar os pais de Wolfi, mas a essa
altura os nazis já tinham cortado nossos telefones. Quando Stefa chegou, ficou
furiosa comigo por ter deixado o menino sair do apartamento. Apesar da sua
febre e das minhas súplicas, saiu porta afora à procura dele. As roupas de Adam
estavam sempre espalhadas pelo nosso quarto, por isso comecei a recolhê-las.
Quando estava dobrando o pijama, ergui o casaco de flanela e enterrei a cabeça
nele, inspirando o seu perfume de lavanda. O pânico que apertava minhas
entranhas me dava a sensação de estar me afogando. Arrumei as roupas na cômoda
dele e fiz uma sopa de cebola para o jantar. Quando ficou pronta e a mesa,
posta, sentei-me com seu livro de esboços à frente e passei os dedos sobre os
desenhos que ele fizera de Gloria até ficar com as pontas dos dedos todas
manchadas de azul e amarelo.
Num
dos esboços, ele desenhara Gloria com um longo cachimbo castanho no bico e um
tufo de cabelo grisalho e espetado no topo da cabeça. Fiquei olhando fixamente
para aquela página, tentando em vão afastar os pesadelos que minha mente ia inventando:
Adam espancado por um guarda nazista, atropelado por uma carroça… Stefa voltou
para casa sozinha, pouco depois da meia-noite. Tinha inchaços em volta dos
olhos, de pura aflição. Desapareceu, disse-me, deixando-se cair sentada ao meu
lado na cama. O pânico pairava à volta dela como uma bruma fria». In
Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn
978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.
Cortesia de ERecord/Porto Editora/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, Conhecimento, Literatura,