domingo, 13 de agosto de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Na sua casa era frequente, quando nos reuníamos de manhã para que me desse instruções se houvesse e, se não, para que discursasse um instante, encontrá-lo caído de barriga para cima…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas da primeira vez que lhe perguntei o que havia acontecido, como o olho calado havia emudecido, me respondeu, cortante como era certas vezes com a gente que o impacientava e raramente comigo, a quem costumava tratar com benevolência e afecto: Vamos ver se nos entendemos: não o tenho aqui para que me faça perguntas sobre questões que não lhe dizem respeito.

Nesse princípio não era muito o que me dizia respeito, se bem que isso logo tenha mudado, basta ter alguém disponível, à mão, à espera, para lhe ir confiando ou criando tarefas; e aqui significava na casa dele, de modo que após certo tempo passou a equivaler vagamente a do meu lado, quando tive de acompanhá-lo numa ou outra viagem, ou visitá-lo num set, ou quando decidiu me incluir em jantares e carteados entre amigos, mais para fazer número do que outra coisa, creio, e para ele ter uma testemunha admirativa a mais.

Quando estava em uma maré mais sociável, o que por sorte não era raro, ou haveria que dizer menos melancólica ou mesmo misantrópicas, ia com regularidade de um extremo a outro, como se seu ânimo vivesse num balanço geralmente pausado que às vezes se acelerava de repente diante da mulher, por causas que não me explicava e deviam ser muito distantes, gostava de ter público e ser ouvido, ou mesmo que o incentivassem um pouco.

Na sua casa era frequente, quando nos reuníamos de manhã para que me desse instruções se houvesse e, se não, para que discursasse um instante, encontrá-lo caído de barriga para cima no chão da sala ou do estúdio adjacente (as duas peças separadas por uma porta de folhas corrediças que quase sempre estavam abertas, logo as peças permaneciam unidas de facto, formando um espaço amplo e único). Talvez optasse por isso tendo em vista suas dificuldades para posicionar as pernas sentado e se sentia mais à vontade assim, de comprido sem impedimentos nem limites, tanto no tapete do salão como no soalho de tábua corrida do escritório. Claro que quando se deitava no chão não vestia os seus casacos, que muito se amarrotariam, mas camisa com colete ou suéter de gola em v por cima e, isso sim, sempre gravata, na sua idade devia lhe parecer imprescindível essa peça, pelo menos estando na cidade, apesar de, naqueles anos, as normas indumentárias já terem ido pelos ares.

Da primeira vez que o vi desse modo, estirado como uma cortesã oitocentista ou como um atropelado contemporâneo, foi uma surpresa e me alarmei, acreditando que tivesse sofrido um AVC ou que houvesse desmaiado, ou tropeçado, caído e não conseguisse se levantar. O que foi, d. Eduardo? Sente-se mal? Quer que o ajude? Escorregou? Me aproximei solícito, as mãos estendidas para levantá-lo. Depois de um leve esforço (ele insistia para que eu o tratasse de você), tínhamos combinado que eu o trataria de senhor sem o dom antes, mas me custava muito não o antepor, saía naturalmente e me escapava». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura,