«(…) Agradeci, voltando ao silêncio constrangido. Sentia todos os olhares sobre mim. Aguentava os reparos o melhor que podia, ainda não me fizera inteiramente ao papel de senhora do castelo, durante as ausências de meu pai e da mulher. Ele, em permanentes negociações ou conflitos, ela, noutro castelo dos senhorios dos Manuel. Fora custoso passar do cativeiro para a residência de meu pai, de uma magnificência que dir-se-ia superar a da corte de Afonso XI. A liberdade viera com encargos que me eram estranhos. Mas empenhava-me, lutando para mostrar dignidade, uma segurança que não possuía e um sorriso afável, que calava fundo nos que me reviam após anos de ausência. Era o dever que a estirpe me impunha, tão muito diferente de tantas mulheres que fizeram de Castela o que era no nosso tempo. Um reino de mulheres poderosas.
Terras de fronteira, com os seus
senhores enviados para auxiliar o rei nas guerras com os mouros, os castelos e
as povoações circundantes haviam crescido como pequenos reinos, onde as
mulheres asseguravam que o quotidiano não seria alterado durante as longas
ausências dos homens guerreiros, conservando as terras vivas e a organização
dentro das muralhas. Viajantes e convidados de outros reinos, até cavaleiros que
corriam o mundo cristão ou que aqui vinham para participar em torneios,
estranhavam o poder das mulheres castelhanas.
A segurança militar fora entregue
por meu pai a um alcaide que mantinha de reserva centenas de soldados e guardas.
Manter Peñafiel inviolável era a sua tarefa.
Regressei ao convidado que
merecera a honra de se sentar à minha direita, conforme as regras fixadas por
meu pai e de que o mordomo-mor de Peñafiel sabia todos os preceitos. Álvaro Nuñez
era um fidalgo da velha aristocracia castelhana e, como todos os outros,
olhava-me como um troféu apetecido, ocultando mal a gula pelo elevado dote que
poderiam levar para casa se a minha mão lhe fosse concedida. Nos cálculos dos
pretendentes, eu perdera valor com o repúdio do rei de Castela, como uma
mercadoria usada. Já qualquer um me podia reclamar para esposa, perdida a
esperança de um casamento numa família real. Mas não era esse o entendimento de
meu pai e nunca fora o meu. Segura de que a minha mão acabaria por ser dada a
quem valesse mais e não figurando Álvaro Nuñez nos pretendentes que o senhor
daquele castelo tinha em mente para â filha, deixei o orgulho responder:
Meu pai conserva a forte tradição
familiar de receber os seus convidados com os maiores obséquios. Ninguém deverá
sentir a esta mesa que pertence a uma estirpe inferior.
Se Álvaro Nuñez sentiu horror com
as minhas palavras não o mostrou, mantendo o sorriso elegante no rosto moreno e
esguio». In Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015,
A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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