segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo…»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Apresentados todos e acabados de lhe beijarem as mãos, pareceu-lhes bem que se passassem a casa de Sebastião Figueira, que era duas ruas acima. Foram, mas pelo muito tráfego, não lhe pareceu bem a el-rei e pediu-lhes que se reunissem em rua mais escusa, por via do perigo que todos corriam. Dirigiram-se então a casa de dom João Castro.

Aquela noite saiu o mar Adriático do seu leito e já corria por muitas ruas de Veneza. Tiveram de fazer o percurso em gôndolas, pelas quais se distribuíram, que eram muitos. Temos de prevenir frei Estêvão Sampaio, lembrou Nuno Costa sem embarcar. Ide seguindo, que eu irei chamá-lo ao convento dos beneditinos.

Na gôndola da frente, com el-rei iam dom João e dom Cristóvão. Coisa nunca vista, senhores!, dizia o gondoleiro. E isto é só o princípio. E olhai o prejuízo que já está a causar!... Lojas alagadas, andavam os comerciantes, à luz de archotes, a tentar salvar ricos panos de seda, telas, brocados, peças de cristal finíssimo, especiarias... Isto é dano para mais de vinte mil cruzados. Podeis acreditar... Achais que as águas ainda vão subir mais?, perguntou el-rei. Por este andar! Os meus cabelos brancos não se lembram de cheia assim... E se chega ao tesouro da basílica? Nem quero pensar...

É esta a casa, disse dom João. Quem me houvera de dizer, dizia o gondoleiro, parando a uma porta, que havia de trazer a barca a navegar por cima de terra! Tende cuidado ao sair, que a maré já está muito alta. Saltaram à água, que lhes deu pela cintura, dom João e dom Cristóvão, fizeram Cadeira com os braços para que el-rei se não molhasse.

Arrivederci, buon uomo, disse el-rei. Arrivederci, signor, respondeu o gondoleiro, olhando o homem que de costas, sentado nos braços dos outros dois, se sumia casa adentro. Estas palavras e esta voz!, murmurou persignando-se e afastando-se.

Assentou-se el-rei ao lume e disse: Senhores. Sei muito bem que tendes uma lista dos sinais naturais do meu corpo, trazida de Lisboa por um dos vossos companheiros. Significa isso que vos quereis inteirar de ser eu ou não o vosso rei... Senhor, nós..., ia a entremeter-se dom Cristóvão, mas um gesto de el-rei calou-o: Pois Nosso Senhor foi servido de mos estampar no corpo, por eles se justificará a verdade que minhas palavras por si sós não podem autenticar... e, levantando-se, ante o espanto interdito de todos, despiu seu jubão, sua camisa, suas meias-calças e mostrou honestamente o seu corpo. Pôs-se de joelhos, para que vissem que era mais curto da parte esquerda que da direita... Dai-me a vossa chinela, dom João... Dom João tirou a chinela do pé e entregou-lha. Meteu-a el-rei debaixo do joelho esquerdo e logo o corpo se lhe endireitou.

Fez menção de tirar os cueiros que lhe tapavam as vergonhas, para que nada do seu corpo ficasse por vistoriar, mas não lho permitiu o respeito que os presentes tinham à sua qualidade real. De dor e compaixão, alguns não continham algum soluço abafado. Não nos tenhais, meu senhor, disse dom João Castro com a voz embargada, por tão desconfiados. Nós estamos crentes da verdade.

Cristo, respondeu el-rei, para inteirar a um só homem, descobriu-se e levou-o a meter a mão no lado chagado do seu peito. Então eu, um pecador, não hei-de dar satisfação de mim a tantos de vós?... e, chamando um por um, tomava-lhes das mãos e levava-os a palpar-lhe as feridas recebidas na batalha: ... aqui... isso sim... uma pelourada no bucho do braço esquerdo... não, não, não fiquei aleijado... aqui na sobrancelha direita, de um golpe de cimitarra... aí, aí, sobre a cabeça, da parte esquerda, de uma porrada com maça de armas que fez amolgadela no casco... e a mão direita maior que a esquerda... os dedos longos, unhas compridas... e o braço direito mais comprido que o esquerdo... e o corpo, dos ombros à cintura, dobrado e curto, e da cintura aos joelhos alongado... e a perna direita mais que a esquerda já sabeis... vede aí, no ombro esquerdo, junto ao fio do lombo, um sinal... pardo, com cabelos, como um vintém... e no direito, ao pé do pescoço... outro sinal, preto, como uma unha... e lentilhas nas mãos e sardas... não se enxergam bem... e as pernas encurvadas...

Tornou-se el-rei ao lume e assentou-se entre aqueles seus portugueses radiantes, de sorriso aberto. Dom João Castro ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo, enquanto ia falando: Para quem tantos anos já não falava português, pronunciais bem, meu senhor, embora com algum acento estranho, palavras que os estrangeiros não conseguem pronunciar.

Esforço-me por recuperar a boa fala... Mas vejo que no meu pé encontrastes o meu calo. Tendes ainda dúvida?... Oh, meu senhor! ... olhai aqui, dom João, e abria a boca quanto podia, na queixada direita... dom João espreitava: faltava a el-rei um queixal». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,