B
«As
senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa
distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de
Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico
de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de
garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus púbis fossem
de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas,
gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de
caracol na murchidão das coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro, comiam a sopa
com a ponta dos beiços tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no
vértice dos sofás, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de bâton de que se evolavam
ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patrióticas, e
reencontrei-as no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-nos com
maços de cigarros Três Vintes
e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se
articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão: Sigam descansados que
nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.
E
com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes, em
relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas herniárias.
E
depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada
vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos
e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto. O espelho
do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um puzzle desarrumado, em que
a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz.
Um
dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava aos arrancos em palpitações
irregulares de motor de táxi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a
atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas
com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes
em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na
distância num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves
e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto
de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Verão,
sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos
cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da
avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. Como quando
se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da
própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao
pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.
Ao
segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas
a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde.
A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos como corujas
na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de
vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância, quando
na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante
as caretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando
cada colher com uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento
gritava: Cantem o Papagaio Loiro
que o miúdo está a puxar o vómito.
Em
resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em
uníssono como no naufrágio do Titanic,
de beiços arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho
a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao
prato um roldão de massa e arroz que me obrigavam a engolir, desta vez sem
coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos.
Agora,
percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor
do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do
Equador, mole e quente como as mãos do senhor Melo, barbeiro do avô, no meu pescoço,
na loja da Rua 1º de Dezembro, onde a humidade multiplicava o cromado das tesouras
nos espelhos canhotos, o que com mais veemência me apetecia era que, tal como
nesses tempos recuados, a Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino
num vagar feito da paciência da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados
pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os
fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam». In António Lobo Antunes, Os Cus de
Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
Cortesia DomQuixote/JDACT
JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita,